Meu caro amigo Lucio, Ciao

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Gregório Carboni Maestri
16/03/2012

 



Quando eu era criança, imaginava que tudo na Itália tinha o cheiro e a forma das músicas de Lucio Dalla. Do primeiro Lucio Dalla.

 

Hoje, Dalla representa um pouco a imagem triste da decadência da parte mais bela do país onde escolhi viver. Um pouco como aquelas virgens deprimidas e infelizes que a religião católica impõe aos seus fiéis.

 

Na gênese, Lucio Dalla era de esquerda, genial, "malgré lui". Em 1976, pouco antes que eu nascesse, seu amigo Chico Buarque, que o tinha conhecido quando exilado na Itália, lhe escreveu uma carta sobre um Brasil em plena ditadura. Uma das músicas mais visionárias da história da MPB: "Meu Caro Amigo".

 

Meu caro amigo me perdoe; por favor, se eu não lhe faço uma visita; mas como agora apareceu um portador; mando notícias nessa fita. Aqui na terra tão jogando futebol; tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; uns dias chove, noutros dias bate sol; mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta; muita mutreta pra levar a situação; que a gente vai levando de teimoso e de pirraça; e a gente vai tomando que também sem a cachaça; ninguém segura esse rojão. Meu caro amigo eu não pretendo provocar; nem atiçar suas saudades; mas acontece que não posso me furtar; a lhe contar as novidades. Aqui na terra tão jogando futebol; tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; uns dias chove, noutros dias bate sol; mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta; é pirueta pra cavar o ganha-pão; que a gente vai cavando só de birra, só de sarro; e a gente vai fumando que, também, sem um cigarro; ninguém segura esse rojão. Meu caro amigo eu quis até telefonar; mas a tarifa não tem graça; eu ando aflito pra fazer você ficar; a par de tudo que se passa. Aqui na terra tão jogando futebol; tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; uns dias chove, noutros dias bate sol; mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta; muita careta pra engolir a transação; e a gente tá engolindo cada sapo no caminho; e a gente vai se amando que, também, sem um carinho; ninguém segura esse rojão. Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever; mas o correio andou arisco; se me permite(m), vou tentar lhe remeter; notícias frescas nesse disco. Aqui na terra tão jogando futebol; tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; uns dias chove, noutros dias bate sol; mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta; a Marieta manda um beijo para os seus; um beijo na família, na Cecília e nas crianças; o Francis aproveita pra também mandar lembranças; a todo o pessoal; Adeus.


Em 1979, Lucio respondeu, com outra “carta”, uma das mais belas músicas italianas, de sempre, "L'Anno che verrà" (O Ano que chegará). Nesta música surreal, sem sequer falar de política, e talvez sem o querer fazer, Lucio falava da Itália como nenhuma outra música conseguiu, nem conseguiria, fazer. Porque Dalla era a Itália. Como se sua poesia musical conseguisse, ao par de seu amigo Chico, ir além dele e cantar a história de uma época. Nesta carta musical, sentem-se os anos 70 que estavam terminando, a classe operária que começava seu refluxo, derrotada pela onda de choque do golpe no Chile, pela estratégia da tensão e o terrorismo de Estado e pelo Partido Comunista italiano. Tinha passado a poucos centímetros de uma fase pré-revolucionária, a poucos metros do poder, o respiro suspenso, como no verão quente e silencioso de 1968, sentindo inconscientemente que, de agora em diante, tudo iria ser diferente para ela, mas sem entender exatamente o que.

 

Podia-se começar uma festa, uma embriagadora festa de prazeres que ia durar três décadas, na qual ia perder tudo o que lhe restava. Lucio, nesta música, prenunciava a "magia" demoníaca que ia invadir a população, as ilusões políticas do moderno socialismo anticomunista de Craxi e do nascente Berlusconi com suas novas televisões. Lucio Dalla transformava em poesia a tristeza de uma Itália que estava enterrando uma das experiências culturais e políticas populares e difusas mais ricas e férteis de sempre. O sol vermelho do comunismo italiano desaparecia atrás dos montes de Bolonha para ver o nascimento do vermelho da Ferrari e do AC Milan, das "United Colors" of Benetton, do azul da Inter, da Fiat Uno, carro da Itália, "quinta potência mundial".


A partir daqueles anos, a classe operária italiana, entre as primeiras em termos de poder aquisitivo na Europa, perderia, ano após ano, até os dias de hoje, força e representatividade. Foi a fase chamada de refluxo. A consciência das massas, pela força do coletivo, seria vencida pelo auto-referencial, pelo individualismo, pelo egocentrismo, pelo espiritualismo irracional, pelo religioso, pelo formalismo. Preparava-se a Itália de hoje, feia, corrupta, vazia, tele-dependente, reacionária, racista, conservadora, triste e ignorante. Lucio cantou tudo isso ao seu amigo Chico de forma visionária e poética, sem falar de nada disso.

 

Caro amigo, te escrevo, assim me distraio um pouco; e, como você está muito distante, vou escrever mais alto. Desde que você partiu, houve uma grande novidade; o ano velho agora acabou; mesmo assim, as coisas ainda não vão bem. Se sai pouco à noite inclusive nos feriados; alguém colocou até sacos de areia perto da janela; ficamos sem falar durante semanas; assim, aqueles que não têm nada a dizer têm muito tempo sobrando. Mas na televisão disseram que o novo ano trará alguma transformação; e todos nós já estamos esperando. Será três vezes Natal, e feriado todos os dias; cada Cristo descerá da sua cruz; e os pássaros retornarão; se terá o que comer e também luz o ano todo; até os mudos poderão falar; enquanto que os surdos já o fazem. E cada um fará amor como bem entender; até os padres poderão se casar, mas somente depois de certa idade. E, sem grandes problemas, alguém desaparecerá; os muito espertos talvez; e os cretinos de qualquer idade. Veja, caro amigo, o que te escrevo e te digo; e como estou contente de estar aqui nesse momento. Veja, veja, veja, veja... veja, caro amigo, que coisa é preciso inventar; para poder achar graça e continuar a esperar. E se esse ano passasse em um instante; veja, meu amigo, como se torna importante que, nesse momento, eu também esteja aqui. O ano que está chegando, daqui a um ano, terminará. Eu estou me preparando, é esta a novidade.


A seguir, Lucio Dalla tornar-se-ia cada vez mais despolitizado, iria sempre mais à direita, como um pouco todos na Itália. Suas músicas, sim, continuaram belas, mas jamais tão belas como tinham sido. E nós, mesmo os jovens, sempre a cantar as velhas, como uma cara lembrança. Ele era a imagem de sua Bolonha, do Partido Comunista Italiano que, a partir de 1989, se transformou em Partido Democrático da Esquerda, a seguir em Democratas de Esquerda e agora, simplesmente, em Partido Democrático. Um partido vazio, como sua Bolonha. O partido, como a cidade, ficou feio, sujo, inútil, dentro e fora. Sim, Ci eravamo tanto amati! (Nós tínhamos nos amado tanto!).


Em 1999-2000, Lucio Dalla ganhou visibilidade na televisão, vendido para uma publicidade da Telecom Itália (recém-vendida por poucos tostões aos capitalistas da esquerda caviar), cantando a música "ciao". No vídeo da publicidade, Lucio Dalla canta num velho barco de carga pós-soviético caindo aos pedaços, ele sentado ao lado de uma transexual feia, felliniana, lendo jornais russos. Os dois estão sentados em cadeiras de praia na areia, navegando por um mundo global, de Hong Kong (com os arranha-céus do capitalismo vencedor) ao Brasil amazônico, com povos indígenas, puros, pobres, mas felizes. Uma música bela, mas inútil. Uma espécie de despedida triste. Mais uma vez – agora a serviço do novo capitalismo italiano pós-industrial –, Lucio cantava "malgré lui", numa outra despedida da Itália. Como se o que restava deste país, o pouco que sobrava da herança dos anos setenta, estivesse se despedindo definitivamente do futuro.


Naqueles anos, o impossível tinha se tornado real: depois do bolonhês de centro-esquerda Romano Prodi, um pós-comunista ateu, Massimo D’Alema, tinha se tornado primeiro-ministro na Itália. Eram os anos da "nova economia", das grandes privatizações, da Itália que, junto com a OTAN, bombardeava seus vizinhos e irmãos da Iugoslávia. Era Bolonha ao poder. No vídeo, Lucio Dalla fazia ciao (tchau) com a mão.

 

Foi como um relâmpago, lá no céu, azul cobalto, liso, suave, sem pêlos. A cidade estava em um berço, o pôr do sol, o rastro de um avião, fez o mundo mais bonito, do esforço de poetas, jornalistas, mídia, putas e habitantes do Kosovo, e outras raças misturadas contavam as estrelas, as primeiras a terem chegado, então a voz de um velho, que saudava todos dizendo Tchau! (não sei de quem é a culpa) Tchau! (não sei de quem é a culpa) Tchau! (não sei de quem é a culpa) Tchau! (...). A praia de Riccione, na Emília-Romanha, milhões de pessoas, as barrigas debaixo do sol, o sorvete e o guarda-sol, os bronzeados como idiotas, você não tinha ainda entendido que sempre estivemos em guerra, mesmo em 15 em Viserba, em guerra com nós mesmos, entre vídeos e jornais, e nós sempre mais cozidos deixando-nos ser enrolados, com a nossa indiferença, a paixão pelas coisas das quais não podemos viver sem (...)

 

"Vogliamose tutti bene", com sotaque romano, é uma expressão que quer dizer "amemo-nos todos", até mesmo entre inimigos... Na Itália dos últimos 20 anos foi o ritmo dominante. Nos anos 2000, quando o que parecia impossível tornou-se realidade, quando a prefeitura de Bolonha passou à direita pela primeira vez em 60 anos, Lucio Dalla apoiou o novo prefeito, um açougueiro reacionário, um tal Guazzaloca. Alguns anos depois, declarou: "Eu? jamais fui comunista", confessando sua íntima religiosidade e seu apoio – a seguir desmentido – ao movimento Opus Dei. Sim, é tudo igual. Aplausos à direita do teatro, meu caro Lucio. Você, homossexual jamais declarado abertamente, foi finalmente aceito pela comunidade.


E agora ele se foi, assim, em silêncio, porque agora ele era isso, silencioso, mesmo quando cantava. Como tudo numa Itália que não sabe mais cantar as músicas da resistência ao fascismo, como "Bella ciao", que não lê mais os jornais de esquerda, que deixa morrer o jornal "Il Manifesto" sem entender que está morrendo com ele. Lucio Dalla cantava a coluna sonora da Itália que eu, quando pequeno, idealizava: (um pouco) vermelha, (mais ou menos) verdadeira, (muito) bela. Popular também, com o cheiro de tortellini al brodo recém feitos, um sábado de manhã, frio mas com sol, esperando que voltem todos da praça, cheia de gente, humana e bela, em uma manhã de sábado, manhã fria mas com sol, manifestando por um futuro melhor, bandeiras vermelhas ao vento. Não sei se os leitores brasileiros conseguem entender qual era o cheiro e a cor daquela Itália, qual era o gosto daqueles tortellini. E o que foram, para três gerações de italianos "daquela" parte do país, as músicas de Lucio Dalla. Era uma Itália cheia de defeitos, imperfeita, magnífica. Como uma mulher feia da qual nos apaixonamos sem saber por quê.

 

Agora Lucio morreu, e eu estou aqui, numa Itália sem futuro, que não quer mais cantar nem amar o imperfeito, porque não o entende mais. Um país que hoje sabe o próprio hino, depois de décadas de sadia amnésia. Eu não sei nenhum dos três hinos de meus três países. Prefiro Bella Ciao e as universais Internacional e Marselhesa, ou a Grandola Vila Moena da Revolução dos Cravos, ou Cálice-Cale-se, do Chico. E conservo meus hinos interiores, os do dia-dia, como as músicas do Dalla, do primeiro Dalla. O único do qual eu tenha comprado todos os discos, eu que nunca compro. Não, não sei os hinos, eles têm um cheiro de vômito e jamais os cantarei. Não, não acredito em deus, porque deus não existe, mas sempre vou cantar a música que Chico e Lucio cantaram, em português e em italiano, sobre um Jesus nascido das cinzas da segunda Guerra Mundial. “Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar. Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar. (...) Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente; e minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, laiá, laiá”.


Hoje (11) é domingo e seria o aniversário do Lucio. Em Bolonha, milhares de pessoas em frente à Catedral. A Igreja Católica homenageia um homossexual que jamais se declarou oficialmente. Seu namorado, que está fazendo um discurso comovido, é identificado como o “amigo” de Lúcio em todos os jornais, mesmo no La Repubblica. Mesmo no amor, Lucio Dalla não teve a coragem de declarar (e aceitar) o que era no seu eu mais profundo: gay, comunista, fraco, sensível.


A Igreja homenageia um bom "convertido" à normalidade burguesa, ele que voltou rapidamente à disciplina político-ideológica, no silêncio envergonhado e disciplinado de quem viu a virgem pelo que ela era, mas não teve coragem de dizer para ninguém por medo de ter que enfrentar o peso das próprias idéias. Era uma virgem feia, transexual, pobre e desempregada, que, ao olhar para Lucio Dalla, deve ter dito, como na sua música Disperato Erotico Stomp: "O que? Você nunca viu uma puta otimista, e de esquerda?".

 

Gregório Carboni Maestri, 34, arquiteto, filho de italiana e brasileiro, nasceu em Bruxelas, Bélgica, e reside em Milão, Itália.

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