Vida, luta e martírio do sargento Manoel Raimundo Soares (4)

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Mario Maestri e Helen Ortiz
30/04/2009

 

Acidente de trabalho

 

Após acompanhar as investigações sobre o homicídio, o promotor Paulo Cláudio Tovo propôs uma provável sequência para os fatos: "[...] a vítima teria sido passível de ‘banho’ ou ‘caldo’, por parte dos agentes do DOPS [...], processo despótico que consiste em mergulhar o paciente nas águas do rio, quase até a asfixia, para dele extorquir a confissão [...]. Nesse ‘trabalho’ [...] realizado dentro de uma lancha – pois na época fazia frio – com a vítima segura pelos pés e o restante do corpo mergulhado na água, seus torturadores teriam lhe deixado escapar, por [...] ‘acidente de trabalho’ não conseguindo mais encontrá-la [...]."

 

Não é de se afastar igualmente a hipótese de uma execução do prisioneiro, devido a sua negativa em fornecer as informações exigidas, para aterrorizar seus companheiros ou por qualquer outra razão desconhecida. É também possível que Manoel Raimundo tenha morrido afogado inadvertidamente durante a tortura, sendo após lançado ao rio. O fato que os responsáveis pelos atos não tenham jamais sido levados a julgamento impede a possível elucidação da seqüência precisa do assassinato.

 

Não há sequer informação precisa sobre o dia da morte de Manoel Raimundo, ocorrida entre os dias 13 e 20 de agosto. Em data de 19 daquele mês, telegrama do STM, encaminhado primeiramente ao diretor da ilha do Presídio e, no dia seguinte, ao DOPS, pedia informações urgentes sobre Manoel Raimundo para fins de habeas corpus. Enquanto o DOPS permanecia em silêncio, em 20 de agosto, com outros dois indivíduos, o delegado e diretor da Divisão de Segurança Política e Social, José Morsch, entrou no necrotério do Instituto Médico Legal, à procura de cadáver de identidade ignorada.

 

Mascarando os fatos

 

Foi em vão a tentativa do delegado José Morsch de localizar o corpo de Manoel Raimundo, pois, como referido, só seria encontrado no dia 24, por moradores da ilha das Flores. Entretanto, o ato registrou o conhecimento anterior ao achado, pelas autoridades, da morte do prisioneiro político. Mesmo após o corpo ser encontrado e identificado como sendo de Manoel Raimundo, os agentes do DOPS seguiram teimando que nada sabiam sobre os acontecimentos.

 

Na época, havia ainda liberdade de informação relativa. Nas páginas de Zero Hora, de 2 de setembro de 1966, o jornalista e humorista Carlos Nobre comentava irônico e indignado: "O troféu bolha da semana é para o DOPS porque, segundo o delegado Delmar Kuhn, os agentes levaram o sargento Manoel Raimundo Soares para a Ilha do Presídio, dias depois ele aparece morto, boiando no rio Jacuí com as mãos atadas e o DOPS diz ignorar qualquer violência na vítima [...]".

 

Os assassinos de Manoel Raimundo tentaram mascarar os fatos, com a ajuda de alguns jornalistas de grandes meios de comunicação. Foi longamente divulgado que a morte do sargento faria parte de "trama subversiva diabólica" "para fins de propaganda anti-revolucionária", ou seja, contra o governo ditatorial. A versão oficial dizia que ele fora posto em liberdade em 13 de agosto, apoiada em documento de soltura pretensamente assinado pelo sargento. No livro de registros de presos da Ilha, constava que Manoel Raimundo fora retirado de lá naquele dia. No livro de ocorrências do DOPS podia-se ler: "Às 13:30 horas foi liberado por este DOPS, o detido MANOEL RAIMUNDO SOARES." A seguir, o documento discriminava os poucos bens pessoais devolvidos ao libertado.

 

Acidente ou execução?

 

Na época, a proposta de libertação, em 13 de agosto, de Manoel Raimundo, foi defendida para negar a responsabilidade do Exército e da Polícia. O que sugere que a assinatura tenha sido forjada pelas autoridades, preventivamente, após o "acidente de trabalho" no rio Jacuí, talvez sob a injunção dos pedidos prementes de informação determinados pelos habeas corpus impetrados em favor do prisioneiro.

 

Entretanto, a assinatura foi autenticada pela perícia. Caso ela realmente pertencesse ao prisioneiro, se fortalece a hipótese de execução através de afogamento, realizada, talvez, após o ministro forçado de bebida alcoólica. Araken Galvão, ex-sargento e seu companheiros de luta, subscreve a tese do assassinato. "Aplicaram-lhe injeções de álcool nas veias para embriagá-lo – ele que nunca colocara na boca uma taça de vinho sequer – quando viram que ele não delataria ninguém [...] jogaram, depois de uma terrível sessão de torturas, ainda vivo no Rio Guaíba [...]. "Nesse caso, o único acidente teria sido o lançamento de Manoel Raimundo com os pés e as mãos amarrados, o que tirava credibilidade à tese de suicídio ou acidente devido à embriaguez. O registro da libertação teria sido medida preparatória à execução".

Manoel Raimundo não foi positivamente libertado às 13h30. Em depoimento de 3 de novembro de 1966, o guarda civil Gabriel Medeiros de Albuquerque Filho afirmou que viu o ex-sargento em uma das celas do DOPS, na noite de 13 de agosto, quando prestava serviço naquele local. Esta informação foi também confirmada pelo então estudante Luis Renato Pires de Almeida, detido à mesma época naquela prisão.

 

Um último encontro

 

Araken Vaz Galvão relata sobre a viagem de Elizabeth a Porto Alegre, onde chegou em 30 de agosto de 1966: "Quando a notícia de sua morte chegou ao Rio [de Janeiro] eu recebia de Amadeu Felipe a missão de acompanhar Betinha até Porto Alegre e, durante a viagem, já ir preparando o seu espírito para amortecer o impacto da tragédia. Foi a mais ingrata tarefa que recebi na minha vida. Não sei, acho que só me saí bem em parte, pois a deixei, já informada, em mãos seguras na capital gaúcha."

 

No necrotério, Elizabeth fez o reconhecimento do cadáver. De pequena estatura, acabrunhada pela morte, a jovem mostrou grande decisão e coragem na defesa da memória de seu esposo e na exigência do castigo dos culpados. Em entrevista à jornalista Tânia Faillace, em 2 de setembro de 1966, em Porto Alegre, falou do companheiro desaparecido, da vida simples e feliz que conheceram após o rápido namoro e casamento.

 

Ao registrar a ida quase diária ao cinema, lembrou como haviam gostado do filme italiano ‘Os companheiros’, de Mario Monicelli. Recordou o apreço de Manoel Raimundo pela música clássica, com destaque para Mozart e Bach. Araken Galvão relata que, anos antes do golpe, procurando-o introduzir no gosto pela música clássica, Manoel Raimundo convidara-o "a sua casa" para que ouvisse o Bolero de Ravel, "o que ele chamou de ‘uma peça bastante simples" que o amigo compreenderia "perfeitamente".

 

Em 2 de setembro, o enterro de Manoel Raimundo foi acompanhado por pequena multidão. Por onde passava o cortejo triste, as lojas fechavam em sinal de homenagem ao combatente caído. Trabalhadores da Carris tomaram o caixão pela alça e o carregaram até a Pira da Pátria, no Parque Farroupilha, onde foi exposto, por alguns momentos, ao lado da bandeira nacional, símbolo do país poderoso, justo e solidário com que o sargento sonhava. Já no cemitério, um estudante gritou para policial que vigiava à paisana o ato fúnebre: "Assassinos!" O cadáver de Raimundo Soares foi depositado, finalmente, no Cemitério São Miguel e Almas.

 

Presente à última despedida, a jovem Elizabeth Challup Soares não teve forças para acompanhar a longa marcha fúnebre, pois há "três dias não comia e quase não dormia". Uma semana depois, também não compareceu à missa de sétimo dia de falecimento. Por outra razão, desta vez. Em ato de vilania inusitada, após vitimarem o jovem suboficial, os esbirros da ditadura voltavam-se agora contra sua esposa, golpeada pela perda irreparável. Elisabeth fora convocada para depor na Secretaria de Segurança naquela data, sendo interrogada por cinco horas pelo comissário Vargas.

 

Total impunidade

 

A Procuradoria Geral do Estado designou o promotor Paulo Cláudio Tovo para acompanhar as investigações sobre o crime. Mesmo pressionado pelo Secretário de Segurança, ele concluiu relatório em inícios de 1967, produzindo provas fundamentais. A Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul instaurou também comissão parlamentar de inquérito para averiguar as circunstâncias da morte e a forma como eram tratados os presos políticos, que resultou em valioso relatório publicado no Diário da Assembléia, em junho de 1967.

 

Divulgado amplamente por dias pelos meios de comunicação, o homicídio de Manoel Raimundo chocou profundamente a sociedade sulina e brasileira da época. A ilegalidade do ato, as torturas praticadas, a violência com que fora tratado anunciavam, porém, as práticas e as armas que o governo militar empregaria nos anos seguintes contra seus opositores, agora sob a proteção do amordaçamento absoluto da imprensa.

 

Até hoje, não houve elucidação precisa da execução de Manoel Raimundo Soares. Os responsáveis denunciados jamais foram punidos, seguindo suas carreiras encobertados e protegidos pelas autoridades civis e militares superiores, sob as ordens das quais cometeram aquelas e tantas outras violências. Sequer após a redemocratização do país, em 1985, seriam levados à Justiça.

 

Impunidade

 

Em agosto de 1973, a viúva Elizabeth Chalupp Soares ajuizou ação indenizatória pelo assassinato de seu esposo contra a União, o Estado do Rio Grande do Sul e alguns militares do Exército Brasileiro. Transferido da Justiça estadual para a federal, o processo tramitou por mais de 30 anos! Quando, em dezembro de 2000, a autora conseguiu sentença favorável, a União recorreu da decisão. Somente em setembro de 2005, a ação foi julgada procedente pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região.

 

À Elizabeth foi garantido pela Justiça o direito à pensão mensal vitalícia (retroativa a 13 de agosto de 1966, relativa à remuneração integral de segundo-sargento) e ressarcimento por gastos à época com viagem, hospedagem, alimentação, funeral e luto de família. Foi-lhe determinado pagamento de indenização por dano moral. Porém, o processo criminal ajuizado foi arquivado por caducidade, garantindo a impunidade dos torcionários e executores de Manoel Raimundo.

 

Na obra ‘Segurança Nacional’, ao enumerar medidas necessárias para reduzir o poderio e privilégio dos militares na Nova República, Roberto Martins alerta para que "sejam desvendados os crimes contra os direitos humanos. Se a impunidade for mantida, muito fácil será no futuro repetir os mesmos crimes. Sem justiça, será falsa qualquer democracia implantada".

 

Para ler a primeira parte do artigo, clique aqui.

 

Para ler a segunda parte do artigo, clique aqui.

 

Para ler a terceira parte do artigo, clique aqui.

 

Mário Maestri, 60, historiador, é doutor em História pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

Helen Ortiz, historiadora, é mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF), no Rio Grande do Sul.

 

Publicado em: O direito na história: o caso das mãos amarradas. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4 Região, 2008. pp. 177-200.

 

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