O Sorriso de Isabella

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Maria Clara Lucchetti Bingemer
22/04/2008

 

Alegre, puro, inocente. Todos esses adjetivos são poucos e parcos para dizer desse sorriso que há quase um mês enche os olhos, o coração e os lares brasileiros. O rostinho de Isabella virou personagem obrigatório da leitura dos jornais diários, da escuta do Jornal Nacional. Mais que isso, tornou-se figura central das indagações interiores, dos medos, dos fantasmas de todo cidadão deste país.

 

No sorriso de Isabella, de repente todos nós vimos aterrados os rostos de nossos filhos, netos, sobrinhos; filhos e netos de amigos ou crianças várias a quem queremos bem.

 

Todos tomamos consciência de que Isabella é qualquer criança brasileira ameaçada por uma fatalidade impensável, que chega e ceifa sua vidinha que mal começa a brotar, sem explicações. Isabella é o retrato da infância do Brasil e do risco que representa ser criança hoje, aqui e agora.

 

Não se trata de uma criança de rua, abandonada, que tem de lutar desde cedo pela sobrevivência. Pelo contrário. As fotos que circulam pela internet, nos blogs e na mídia, nos enchem os olhos com uma menina que possui todos os objetos de desejo com que sonham as crianças de hoje. Vê-se também que os que a cuidavam se preocupavam com suas roupas, seu cabelo. Veste-se de princesa, estréia sapatos novos, arruma-se para ir a um aniversário ou a uma festinha.

 

Tampouco é uma criança a quem faltou afeto. Aparece abraçada à mãe, aos avós, à tia. As manifestações destes familiares por ocasião de sua morte nos dão a certeza de que Isabella certamente foi muito amada por muitos nos cinco curtos anos em que viveu.

 

Deixou muita saudade, lágrimas, pena atrás de si. Por isso mesmo é maior a perplexidade quando nos perguntamos: quem pode ter assassinado essa criança, meu Deus? A quem interessaria acabar com essa vidinha que a ninguém ameaçava e que tinha a fragilidade e a vulnerabilidade próprias da infância?

 

A perplexidade triplica e começa a receber tintas de verdadeiro horror quando os principais suspeitos passam a ser o pai e a madrasta da menina. O tempo passa, os dois negam e colaboram com a polícia. Mas o fato é que estão sozinhos no cenário do crime. E à medida que o cerco se fecha, mais e mais se vai chegando à conclusão de que naquela noite, naquele apartamento de São Paulo só havia três personagens: o pai, a madrasta e a criança a quem tristemente coube o papel de vítima.

 

A perplexidade e o horror se tornam ainda mais complexos quando no vídeo resgatado pela polícia do supermercado onde a família foi horas antes do crime, Isabella é vista no colo do pai, andando à vontade entre os irmãos e de mãos dadas com a madrasta.

 

Como podem poucas horas transformar tão totalmente carinho e harmonia em ódio e violência mortal? O que terá havido entre o supermercado e o edifício London para que o desfecho tenha sido tão trágico?

 

São perguntas que nos habitam e nos tiram o sono de noite e de dia. E tão intrigados nos deixam pelo fato de Isabella ser tão próxima de nossa realidade e, por isso, tão íntima que parece que a conhecemos desde que nasceu. Trata-se talvez de mais uma criança inocente que, de repente, se vê como pivô de um conflito amoroso ou passional.

 

Uma criança a mais que se vê dilacerada entre dois amores, duas famílias. Isabella repartia seu tempo e seu coração entre a mãe, com quem vivia, e o pai e a madrasta, com quem convivia a cada quinze dias

 

Em meio aos amores frustrados, às uniões fracassadas, às novas uniões problemáticas e conflitivas, Isabella flutuava como um anjo até a hora em que se encontrou talvez no momento errado no meio de uma explosão de afetos mal resolvidos. Isso lhe custou a vida. Os dias passam e a palavra final sobre o crime ainda não foi dita. No fundo de meu coração, rezo e espero que os culpados não sejam o pai e a madrasta. Isabella, que agora está em paz, não merece ter vivido em seus últimos momentos o terror de ver a figura do pai ou da madrasta, que horas antes a acariciavam, agredindo-a, machucando-a e matando-a.

 

A Justiça prossegue sua pesquisa e seu caminho. Nós, que a tudo assistimos, continuamos com nossa perplexidade e nosso horror. O sorriso de Isabella nos persegue, lembrando-nos que a vida é bela e deliciosa. Mas a vida do outro, sobretudo do outro pequeno e indefeso, que não pode falar por si ou defender-se, é algo de extrema seriedade, que não pode ser colocada em risco quando os conflitos e os problemas pessoais explodem como bombas traiçoeiras.

 

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio e autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.

 

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