2015: o pior ano de todos (até aqui)

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Rodolfo Salm
23/12/2015

Um rio majestoso tomado pela lama produzida em nome do “desenvolvimento”, barragens e mineração; peixes morrendo aos montes, espécies condenadas à extinção e os habitantes de suas margens que precisam do velho rio para viver desamparados, desesperados.

 

Imagino que quase todos os leitores, diante desta trágica descrição, pensarão no rompimento da barragem da Samarco em Mariana, que devastou o rio Doce. Mas ela também vale para o Xingu em 2015. Nunca vi tanta destruição por aqui. Faz anos que acompanho de perto a construção da hidrelétrica de Belo Monte em Altamira (PA), mas só agora no fim da sua construção é que a devastação na região atingiu proporções apocalípticas.

 

O mais difícil foi acompanhar a devastação da ilha do Arapujá, que até dois meses atrás preservava uma linda floresta em frente à cidade. Fomos obrigados a testemunhar a derrubada dessa mata por tratores e sua queimada dia e noite durante semanas. Escrevo especificamente sobre essa ilha porque vejo-a todos os dias, mas foram centenas de ilhas como esta devastadas.

 

Os animais, desesperados, morreram queimados ou à mingua no deserto da floresta devastada. Havia equipes de resgate da fauna, é verdade. Mas insignificantes diante da magnitude da devastação. Na verdade, essas equipes existem apenas para dar a impressão de que a barbárie da devastação seja menor do que realmente é. Aliás, isso acontece com todas as condicionantes da barragem: todas elas pura maquiagem.

 

Quem está por perto sabe que a cidade está caótica, na saúde, segurança, na preservação das vias públicas. Em tudo, afinal. E finalmente, apesar disso tudo, foi recentemente aprovada a Licença de Operação da usina. Ou seja, foi autorizado o enchimento do lago e a Volta Grande do Xingu já sofre com a falta de água. Os relatos são de que os peixes já estão morrendo aos montes no leito do rio seco.

 

Belo Monte, para mim, é o símbolo maior do desprezo dos governos do PT pelos povos indígenas e o meio ambiente. Alguém sempre pode dizer que a construção da barragem é uma política de Estado e que o projeto de barrar o rio Xingu também andou nos governos do PSDB. Mas o Lula presidente soube como ninguém cooptar e desmobilizar os movimentos sociais de forma que a obra saísse do papel.

 

São inúmeros os exemplos que demonstram essa atitude do PT diante dos índios e do meio ambiente. O mais recente é a absurda Medida Provisória que pretende liberar a exploração de terras indígenas por meio de compensação financeira, e que pegou os índios de surpresa nesse fim de ano, sendo objeto de protesto do cacique Raoni na Cúpula do Clima (COP-21), em Paris.

 

Aliás, o grande marco para o planeta no ano que passou foi o fato de termos cruzado a barreira simbólica das 400 ppm (partículas por milhão) de concentração de carbono na atmosfera. Neste contexto, a meta brasileira de cessar os desmatamentos ilegais na Amazônia até 2030 é ridícula! Se são os desmatamentos ilegais que estão em questão, porque não tentar pará-los imediatamente? É como se de repente “resolvessem” acabar com o tráfico de drogas ou com os homicídios, estabelecendo um prazo de 15 anos!

 

As bobagens ditas nos discursos da presidente foram um capítulo à parte neste ano. Elas derivam em parte de sua inabilidade em fazer discursos de improviso, mas na minha opinião são consequência principalmente de seu inconfessável desprezo pela questão ambiental. Dois exemplos que ficaram famosos: a saudação à mandioca e a problemática de se “estocar vento”. A primeira pérola foi proferia no discurso de abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, 23 de junho, em Brasília.

 

A grande contribuição das sociedades indígenas atualmente prestada ao nosso país sem dúvida está na preservação das florestas contidas em seu território, sobretudo na região Amazônica. Se temos alguma floresta preservada na bacia do Xingu hoje em dia, é quase exclusivamente por conta deles. Isso deve ser louvado por toda a humanidade. Mas na concepção retrógrada da presidente esse é justamente o seu problema, pois eles impedem o avanço do agronegócio, da mineração e das hidrelétricas. Sem poder louvar o que deve ser louvado, nem confessar seus sentimentos mais profundos, sobrou à “mulher sapiens” a opção de falar bobagens. Daí o discurso da mandioca.

 

O segundo caso é igualmente grave. O mundo inteiro vem reconhecendo cada vez mais a importância de uma matriz energética diversificada para o atendimento de suas necessidades. Dentro deste contexto, as energias solar e eólica vêm ganhando mais e mais importância. Mas o governo brasileiro, mais do que não incentivar essas fontes, taxa-as pesadamente, impedindo seu desenvolvimento pleno. Por outro lado, insistem na ideia de que a hidrelétrica é uma “energia limpa”. Sabemos que não é, pois gera fortes danos socioambientais e também gera grande quantidade de gases-estufa através da matéria orgânica em decomposição nos lagos das barragens.

 

A coisa do vento faz parte de um discurso pronto dos barrageiros para desqualificar a energia eólica argumentando que a água pode ser “estocada” enquanto que o vento seria imprevisível. Na verdade as hidrelétricas, por exigirem a realização de obras colossais, são ideais para as empreiteiras e para os esquemas de corrupção que financiam campanhas eleitorais.

 

Além de toda a ação destrutiva gerada diretamente pelo homem, este ano entramos em um fortíssimo período El Niño que, se por um lado trouxe fortes chuvas para o Sul e Sudeste, por outro tornou muito mais severa a seca no Norte e Nordeste. Desde agosto não tivemos praticamente nenhuma chuva por aqui, na beira do Xingu. Então, à devastação derivada de Belo Monte somam-se as queimadas resultantes dessa seca exacerbada. Coloco o El Niño como uma força independente da ação humana, mas não é bem assim. É verdade que ele sempre existiu, mas vem se tornando mais frequente e mais intenso com o aquecimento global. E a seca que gera no leste da Amazônia e parte do Nordeste também é fortemente determinada pelos desmatamentos na região.

 

A interação entre esses três fatores é muito bem conhecida pela ciência, e fico revoltado pela forma como os climatologistas brasileiros frequentemente descartam o desmatamento na Amazônia como um dos fatores determinantes da seca. O resultado da seca são incêndios como aquele que devastou boa parte da Chapada da Diamantina (BA), ou o que destruiu boa parte da Terra Indígena Araribóia (MA), ameaçando inclusive os últimos índios isolados da região.

 

O estado do Pará está nesse momento (começo de dezembro) coberto por uma espessa camada de fumaça. E é de dentro de toda essa fumaça que temos que ler notícias do Príncipe Charles elogiando a política do governo brasileiro de combate ao desmatamento da Amazônia. "Tudo é possível quando vontade política e liderança se somam à mobilização da iniciativa privada e da sociedade civil”, teria dito. Parece piada. Trata-se, de uma política “para inglês ver”, literalmente.

 

Como se vê, sob o ponto de vista ambiental, a coisa aparentemente não poderia ser pior. Infelizmente, não é bem assim e em se tratando de meio ambiente sempre pode-se piorar. As previsões são de que o El Niño estará ainda mais forte no ano que vem trazendo, por um lado, mais secas ao Norte e Nordeste, com mais incêndios e falta d´água, e, por outro lado, tempestades e inundações no Sul.

 

Catástrofes como aquela de Mariana também só devem se tornar mais prováveis à medida em que as leis de licenciamento ambiental vão se tornando menos rígidas. No Xingu, depois de Belo Monte, pretende-se instalar uma mineração de ouro que acumulará rejeitos altamente tóxicos, como o cianeto, capazes de colocar a lama de Mariana no chinelo.

Leia também:

‘Belo Monte é muito criminoso, chocante e indignante’ – entrevista com Antônia Melo

 

Rodolfo Salm é PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará, por onde desenvolve o projeto Ecologia e Aproveitamento Econômico de Palmeiras.

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