Uma reforma tributária progressiva

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Altamiro Borges
18/02/2008

 

Não é apenas no diagnóstico sobre a perversidade do sistema tributário nacional que há consenso entre as forças progressistas. Também nas propostas para a superação desta injustiça histórica há inúmeros pontos de convergência. O manifesto "por uma reforma tributária justa", divulgado em janeiro e assinado por lideranças populares, religiosas e por intelectuais – entre eles, Dom Tomas Balduino (CPT), Marcelo Crivella (Igreja Universal), João Pedro Stedile (MST), Lúcia Stumpf (UNE), José Moroni (Abong), Plínio Arruda Sampaio, Fernando Morais, Laura Tavares e Emir Sader –, conseguiu reunir distintas forças políticas na defesa de alguns destes pontos comuns.

 

Diante do rombo anual de R$ 40 bilhões causado aos cofres públicos com a extinção da CPMF e da sistemática ofensiva da direita para diminuir ainda mais os tributos cobrados dos ricaços e das corporações, o manifesto fez um apelo à mobilização urgente da sociedade. "O Brasil precisa de uma verdadeira reforma tributária, que torne mais eficaz o sistema de tributação. Hoje, 70% dos impostos são cobrados sobre o consumo e apenas 30% sobre o patrimônio. É preciso diminuir o peso sobre a população e aumentar sobre a riqueza e a renda". Esta síntese, mesmo que genérica, expressa a demanda de amplas forças políticas por uma reforma tributária progressista no país.

 

1- Tributar o capital e a renda

 

Devido à regressividade da tributação, que penaliza principalmente os assalariados e as camadas médias, à farra das isenções e elisões fiscais (brechas legais) e à própria sonegação, os ricos são os que menos pagam, proporcionalmente, impostos no Brasil. Já na ponta da tributação direta, as alíquotas sobre as pessoas físicas são as mais injustas do mundo. Na Alemanha, por exemplo, os mais endinheirados chegam a pagar 42% de imposto sobre a renda; na Dinamarca, a carga atinge 59% sobre a renda dos bilionários; na França, 40%; até nos EUA, tão endeusados pela burguesia nativa, o imposto de renda ainda preserva uma alíquota de 35% sobre os mais ricos. No Brasil, o IRPF tem apenas três faixas (zero, 15% e 27,5%), uma verdadeira aberração tributária.

 

Um reforma progressiva deveria reduzir a tributação indireta sobre o consumo e, para compensar a perda de receita, elevar os impostos diretos sobre a renda e as riquezas dos bilionários. De cara, seria necessário ampliar as faixas do imposto de renda, diminuir a alíquota dos assalariados – que tem o desconto automático na folha de pagamento – e aumentar a carga sobre a renda de pessoas físicas mais abastadas. Outra medida urgente é a da regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas. Este tributo, já incorporado na maioria dos países "civilizados", foi contemplado na Constituição de 1988, mas até hoje não virou lei. No mesmo sentido, dever-se-ia elevar o Imposto sobre Heranças, atingindo os mais ricos, o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto Territorial Rural (ITR) dos grandes latifundiários e dos barões do agronegócio.

 

2- Desonerar o setor produtivo

 

Estes últimos impostos atingem diretamente o patrimônio acumulado em séculos de exploração. O seu aumento teria como efeito minorar, em perspectiva, a péssima distribuição de riquezas no país. Como argumenta Alexandre Mazza, professor de Direito Administrativo da PUC-SP, a não regulamentação do Imposto sobre Fortunas e o minguado Imposto sobre Heranças perpetuam o poder econômico nas mãos dos que dominam o Brasil há mais de 500 anos. A resistência a estes tributos da mesma elite burguesa que se traveste de ética é brutal e conta com seus apaniguados no Congresso Nacional. "A discussão sobre patrimônio é a primeira a ser derrubada no plenário em qualquer tentativa de levar adiante a reforma tributária", adverte a professora Leda Paulani.

 

Vários tributaristas também sugerem a redução das taxas que incidem diretamente sobre o setor produtivo, tendo efeito nocivo sobre a geração de empregos e renda. Muitos destes tributos são em cascata e, no final da linha, encarecem o produto e reduzem o consumo. É o caso do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Até a CPMF, que incidia em 72% sobre as empresas e ajudava no combate à sonegação, tinha este efeito colateral. "Os 0,38% sobre R$ 100 numa garrafa de champanhe do rico é igual a 0,38% sobre R$ 100 em alimentos básicos dos pobres", alega o economista Reinaldo Gonçalves. Ácido crítico, ele mesmo relativiza: "Por que não defender a CPMF com alíquota progressiva?".

 

Ao mesmo tempo em que desonera o setor produtivo, a reforma tributária também deveria elevar as contribuições da ditadura financeira – até como forma de estimular que o capital seja investido na produção e não na especulação e nos paraísos fiscais. A partir de 1995, o governo FHC impôs várias medidas legislativas de redução dos tributos dos bancos e rentistas. O economista Evilásio Salvador, num artigo no Le Monde Diplomatique, defende que sejam eliminadas de imediato tais concessões, com o fim da isenção dos lucros e dividendos e da dedução dos juros sobre o capital próprio. "O segmento mais beneficiado por esta renúncia fiscal são os bancos. Só a revogação destes dois mecanismos permitira ao governo uma arrecadação de pelo menos R$ 10 bilhões".

 

3- Aliviar a carga dos trabalhadores

 

Além de penalizar os ricaços, que transformaram o país num paraíso do consumo de alto luxo e num oásis da especulação financeira, uma reforma progressista deveria aliviar a carga tributária dos trabalhadores. Num minucioso estudo técnico, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) sugeriu várias medidas para beneficiar os que produzem as riquezas da nação. Lembra que o Brasil já teve 16 faixas do Imposto de Renda, mas que nos anos sombrios do neoliberalismo elas foram drasticamente reduzidas – para nove no governo Collor e para três no reinado de FHC. Neste período a tabela também foi congelada, o que gerou perdas de 17,5% nos rendimentos dos trabalhadores entre 1996 e 2002 e a redução do limite de isenção.

 

Conforme lembra o Dieese, o governo Lula deu início à correção do IRPF, mas a tabela continua defasada. Diante desta injustiça, ele propõe "o aumento da faixa de isenção do IRPF com vistas a permitir a elevação da renda disponível das famílias; diminuição da alíquota da primeira faixa de contribuição com o objetivo de desonerar o trabalhador de menor renda; aumento do número de faixas de rendimentos, associando-as com alíquotas que recuperem o caráter progressivo do imposto; criação de alíquotas intermediárias entre os atuais 15% e 27,5% de maneira a melhor corresponder à estruturação de renda atual; garantia de que o estabelecimento das alíquotas das faixas de rendimentos superiores não resulte em maior evasão fiscal".

 

Urgência da pressão das ruas

 

Num esforço para agregar as propostas de uma reforma tributária "justa", a Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) produziu há alguns anos uma pauta básica de exigências. Muitas das propostas, conforme registrou, até poderiam ser implantadas por meio de legislação infraconstitucional, sem a necessidade de reformas na Constituição. A pauta possui 16 itens, que ainda permanecem atuais e indispensáveis para superar a crônica injustiça tributária:

 

1 - Extinguir a tributação em cascata;

2 - Revogar a dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio;

3 - Garantir que os rendimentos do capital sejam submetidos à tabela progressiva anual;

4 - Revogar a isenção na distribuição de lucros e dividendos;

5 - Tributar as remessas de lucros ao exterior;

6 - Corrigir regularmente a tabela progressiva do imposto de renda;

7 - Revisar e ampliar as deduções do imposto de renda da pessoa física;

8 - Não tributar a renda mínima existencial;

9 - Isentar os alimentos da cesta básica;

10 - Recuperar a alíquota de 35% para rendas elevadas ou acentuar a progressividade;

11 - Aumentar a tributação sobre o patrimônio rural;

12 - Não conceder anistia fiscal para as empresas;

13 - Fortalecer a fiscalização tributária;

14 - Controlar o fluxo financeiro para os paraísos fiscais;

15 - Criar uma força tarefa para combater a lavagem de dinheiro;

16 - Combater efetivamente a sonegação.

 

No momento em que o presidente Lula garante que enviará uma proposta de reforma tributária para ser debatida no parlamento, seria interessante consultar tais fontes. Do contrário, o governo poderá incorrer novamente no erro da "reforma do possível", do início de 2003, que pecou pelo pragmatismo tacanho e pela visão tecnocrática. Este tema mexe com poderosos interesses, que estão bem incrustados no parlamento. Para avançar na superação do perverso e injusto sistema tributário, será necessária convicção de projeto e forte pressão social. Sem o povo nas ruas, o ônus desta reforma estratégica recairá, mais uma vez, nas costas dos trabalhadores.

 

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB e autor do livro "As encruzilhadas do sindicalismo" (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição).

 

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