Mensalão e (En)Cena(ção) Política

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Renato Nucci Jr.
29/11/2013

 

 

José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno, condenados pelo STF, tiveram, na semana em que se comemorava a Proclamação da República, decretada suas prisões. Decisão do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), que cada vez mais se enxerga como um super-herói da Liga da Justiça, ganhou destaque midiático. Seu objetivo, contudo, muito longe de pretender fazer justiça, faz parte da disputa eleitoral de 2014. Com uma oposição de direita sem rumo, desprestigiada e caminhando para uma nova derrota eleitoral, as prisões são estratégias, usadas para fustigar o PT e, quem sabe, amealhar alguns votinhos a mais em 2014.

 

Até aí, estamos de acordo com a esquerda governista, que acusa as condenações dos “mensaleiros” e as prisões dos petistas de servir a propósitos que guardam pouco interesse em combater a corrupção. É no mínimo estranho que no país onde as classes dominantes gozam de tremenda impunidade, a justiça seja rápida para prender Dirceu, Delúbio e Genoíno, mas deixa em liberdade Maluf e tantos outros criminosos de colarinho branco.

 

Divergências com a esquerda governista

 

As divergências com a esquerda governista começam quando tenta transformar os presos em heróis de toda a esquerda; em vítimas das perseguições e intolerâncias das elites tupiniquins. Realmente, Dirceu e Genoíno têm uma trajetória de luta por demais conhecida. Não vamos repisá-la. Porém, como muita gente de sua geração, tornaram-se aqueles sujeitos que possuem um “grande passado pela frente”. Presos, perseguidos, banidos e torturados pela ditadura empresarial-militar, utilizam-na como um capital simbólico para justificar todas as questionáveis e oportunistas opções políticas do presente.

 

O uso do capital simbólico na cena política, ainda que não com esse nome, já tinha sido detectado por Marx em meados do século XIX. Com impressionante argúcia, em O 18 Brumário, Marx identifica a existência de duas frações da classe dominante divididas por formas próprias de acumulação e de propriedade. Os orleanistas, representantes do capital financeiro, comercial e industrial, e os legitimistas, representantes dos senhores de terra.

 

Na cena política a disputa entre essas frações se manifestava por meio de debates sobre a quem cabia o direito de sucessão ao trono francês. Os partidários dessa ou daquela casa real, iludidos com suas fantasias e lealdades políticas, não compreendiam que suas diferenças estavam nas frações dominantes que cada dinastia representava.

 

E na cena política burguesa tem de ser assim. Ela precisa esconder e dissimular para muitos de seus partidários os reais interesses em disputa das classes e frações de classes. As verdadeiras intenções têm de ser apresentadas sob as vestes dos grandes ideais e dos discursos grandiloquentes. Do contrário, restaria o cinismo, trazendo como consequência uma grave perda de legitimidade para a dominação política. Trata-se o capital simbólico, portanto, de um conjunto de ideias, valores, pré-conceitos, ilusões, fantasias etc., que formam aquilo que podemos chamar de senso comum.

 

O preço das opções políticas

 

No caso em tela, especialmente Dirceu e Genoíno, mais do que vítimas da perseguição das elites, estão pagando o preço de suas opções políticas. Ambos foram os principais responsáveis por guinar o PT, ao longo da década de 1990, ao centro do espectro político. Construíram uma máquina partidária cujo funcionamento se tornou cada vez mais dependente de gordas contribuições de capitalistas. Desconsideraram as orientações das bases do próprio partido e foram os grandes artífices da aliança com a burguesia interna na eleição vitoriosa de 2002, colocando José Alencar, mega-capitalista e senador da República, como vice de Lula.

 

Também foram responsáveis, junto com o ex-ministro Palocci, pela Carta ao Povo Brasileiro, onde prometeram (e cumpriram) manter intactos os interesses da burguesia associada, especialmente de sua fração financeira, prometendo (e também cumprindo) melhorar as posições da burguesia interna nos arranjos do bloco no poder. Já com a esquerda, estivesse ou não no PT, agiram com extrema arrogância. Usaram a vitória eleitoral de Lula como prova de sua sagacidade política.

 

Aos críticos dos descaminhos petistas e dos riscos representados por essas alianças espúrias, e aqui nos referimos aos críticos colocados à esquerda, a cúpula petista respondia com desdém. Justificavam-nos ora alegando a existência de uma correlação de forças desfavorável para se empreenderem aventuras rupturistas, ora a necessidade de se superarem os devaneios infantis presentes em setores da esquerda brasileira. Em nome da real politik, da necessidade de se ter uma maioria congressual, entre tantas outras, por suas mãos o PT se enredou ainda mais nas tramas de um poder burguês sujo e corrupto.

 

Tudo corria bem até que Roberto Jefferson (PTB), membro importante da base aliada, em cujo currículo constava ter pertencido à tropa de choque de Collor e acusação de envolvimento no escândalo do Orçamento, em 2004, resolveu dar com a língua nos dentes. Tendo seu nome envolvido em um esquema de corrupção nos Correios, resultando em uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), foi abandonado pelos seus aliados do Planalto. Reagiu denunciando um esquema de compra de votos no Congresso por ele apelidado de mensalão. As alianças com a burguesia cobraram sua conta. E as advertências dos “esquerdistas”, até então desdenhadas, cumpriram-se.

 

Ao aceitarem jogar o jogo da nossa corrompida democracia, Dirceu, Genoíno, Delúbio e tantos outros contavam com a complacência da grande burguesia. Afinal, pensavam: se estamos administrando o Estado para os interesses deles, podemos adotar as mesmas práticas deles que nada nos acontecerá. Quanta ingenuidade! Mostraram-se mais infantis do que os esquerdistas, cuja persistência em defender os ideais tradicionais da esquerda, como igualdade e solidariedade, foi diagnosticada por Lula como sintoma de alguma patologia psíquica.

 

Alianças com PMDB e com a burguesia

 

Após o escândalo do mensalão, o PT passou a depender ainda mais do PMDB para alcançar maioria congressual. Hoje, essa dependência institucional ampliou-se. Ela envolve os ruralistas comandados pela senadora Kátia Abreu e figuras obscurantistas como o pastor Marco Feliciano, a quem a bancada do PT na Câmara dos Deputados entregou a Comissão de Direitos Humanos, em troca de maior apoio da bancada evangélica ao governo Dilma.

 

Essa aliança institucional refletiu o aprofundamento de outra aliança, mais oculta, feita com a grande burguesia. Para garantir sustentação política aos mandatos petistas exigiu destes cada vez maiores concessões. Aprofundaram-se as privatizações, o desmonte dos serviços públicos, as renúncias fiscais para o capital manter seus lucros, a paralisação completa da Reforma Agrária, entre tantos outros. E tudo foi entregue sem grandes problemas, pois acima de tudo era preciso garantir a governabilidade. Esse ciclo regressivo de reformas foi contrabalançado por causa da onda de crescimento econômico observada no segundo mandato de Lula, em que a geração de empregos e os salários, mesmo relativamente baixos, atenuaram os conflitos sociais e serviram para apassivar temporariamente os trabalhadores. Incapaz de oferecer uma cidadania de direitos, os mandatos petistas ofereceram a cidadania de consumo, sustentado pela ampliação do crédito e grande endividamento familiar.

 

O resultado de todo esse transformismo petista, para o qual Dirceu e Genoíno contribuíram decisivamente, foi o de ter levado não só o PT a uma crise. A história mostrou que esta, quando atinge grandes referenciais políticos e ideológicos da esquerda, respinga em todos os que compartilham de seu projeto, mesmo aqueles colocados na esquerda revolucionária. A queda do socialismo no leste europeu é um bom exemplo. Isso decorre do fato de o capital simbólico não girar tão somente em torno de ideias positivas. As fraquezas, debilidades e contradições também criam um capital simbólico negativo que se torna uma arma nas mãos dos adversários políticos. E a esquerda que não se entregou a essas práticas também sofreu, ao ver seus propósitos colocados na mesma vala comum.

 

Apesar dessas considerações não é o caso, em absoluto, de comemorar as prisões de Dirceu e Genoíno. Mas também não é o caso de colocá-los como vítimas de uma perseguição das elites, insatisfeitas com possíveis interesses e privilégios ofendidos. Na cena política, espaço por excelência da simulação de interesses, essa ideia pode ter seus adeptos, que não são poucos, mas não expressa o que de fato ocorre na realidade. Nunca antes na história desse país os bancos lucraram tanto, assim como também foram enormes os lucros das empresas industriais e do agronegócio. E o Estado brasileiro continuou a ser administrado para atender dois interesses precípuos de qualquer Estado capitalista em qualquer lugar do mundo: manter o processo de acumulação e reprodução ampliada funcionando no interesses das frações burguesas hegemônicas, ao mesmo tempo em que se deve manter a estabilidade política e social, apassivando as classes dominadas, seja pela coerção seja pela cooptação.

 

Poulantzas: uma pista para entender o por quê das prisões

 

Como explicar, então, a sanha de parcelas da burguesia em mandar para a cadeia dois próceres do petismo? Poulantzas, em seus estudos sobre as relações entre o poder político e as classes sociais, trabalha com o conceito de classes reinantes. Frações da burguesia podem ser politicamente dominantes, mesmo sem ter presença marcante na cena política e detendo diretamente o poder de Estado. Isso se torna possível, pois, ao ser capaz de blindar o Estado às pressões reformistas vindas dos de baixo, ela pode muito bem terceirizar sua gestão para outras classes sociais, preocupando-se com assuntos para ela mais importantes, como ganhar (muito) dinheiro.

 

Fica o controle dos aparelhos de Estado com a pequena burguesia reacionária ou mesmo com as camadas burocratizadas da classe trabalhadora, caso da socialdemocracia. Mudam, obviamente, alguns aspectos, como a forma de responder aos desafios conjunturais impostos ao processo de acumulação e reprodução ampliada e a forma de se relacionar com as classes dominadas no sentido de apassivá-las – na forma como ela dosará a coerção e a cooptação. Porém, sem alterar o pano de fundo, que é o de manter o Estado funcionando no interesses das frações hegemônicas da burguesia.

 

Do mesmo modo que o jogo sujo, as pequenas tramoias, os golpes de mestre etc., as prisões movidas contra Dirceu e Genoíno têm de ser vistas nesse contexto. É parte de uma disputa feroz de duas classes reinantes pelo controle dos vértices dos aparelhos de Estado. A voracidade em se mandar Dirceu e Genoíno para a cadeia é parte da luta desencadeada pela classe reinante organizada em torno do PSDB visando retomar o controle do aparelho de Estado em 2014. Com um governo dito de esquerda, que realiza um programa que não mexe nos interesses das frações hegemônicas da burguesia, a oposição de direita perdeu seu discurso. O único meio de retomar o controle dos aparelhos de Estado foi o de utilizar o discurso moralista, de forte traço udenista, do combate à corrupção.

 

Assim, não se pode admitir a hipótese de que Dirceu e Genoíno são vítimas da intolerância da “casa-grande”, pois ousaram mexer, ainda que só um tiquinho, no interesse das nossas elites. Do mesmo modo, tampouco podemos admitir o discurso tucano de que, enfim, os corruptos estão sendo presos, de que o mensalão é o maior escândalo de corrupção da história do Brasil e que as ordens de prisão mostram que a justiça está sendo feita, e outros blá-blá-blás. Basta lembrar que o know-how do mensalão surgiu no governo tucano de Eduardo Azeredo, em Minas, e que não gozou no STF, até agora, do mesmo empenho investigativo e punitivo que se abateu sobre os petistas.

 

Do mesmo modo, não se pode tratar as prisões como parte de um movimento que visa perseguir toda a esquerda. Primeiramente, teríamos que perguntar de que esquerda estamos falando. Dirceu, “aquele garoto que ia mudar o mundo”, hoje, assessora grandes empresas capitalistas estrangeiras que fazem ou pretendem fazer negócios no Brasil. Delúbio Soares, por sua vez, atua no ramo imobiliário. Trata-se, como se vê, de uma esquerda bem adaptada à ordem burguesa, mas bem capaz de manipular referenciais simbólicos gelatinosos, usados nas disputas travadas na cena política pelo controle dos aparelhos de Estado.

 

Porém, já com aquela esquerda que nunca deixou de lutar contra o capitalismo e a burguesia; que não sucumbiu aos encantos do oportunismo pragmático; para quem a política é a arte de transformar o impossível em possível; desprezada e acusada de infantil por ter a ousadia de se manter fiel a princípios; esta foi espancada e presa nas manifestações que sacodem o Brasil desde junho. E para ela coube o silêncio e mesmo o desprezo de muitos dos que hoje defendem Dirceu e Genoíno a qualquer custo. A esquerda que junto com massas de jovens e trabalhadores tomou às ruas foi acusada, por parcelas da esquerda governista, de pertencer a uma classe média insatisfeita com a ascensão do subproletariado, não passando de inocentes úteis na mão da direita.

 

Não se devem festejar as prisões. Não somos abutres vorazes em busca de carniça. Genoíno sofre de doença grave e pode morrer sob a custódia do Estado brasileiro. Deve ser tratado com humanidade e respeito, assim como todo e qualquer cidadão privado de sua liberdade. Mas também não somos ingênuos. É preciso que a esquerda que defende ambos, colocando-os como vítimas da perseguição das elites, compreenda os seus papéis históricos e veja que a condição vivida por eles atualmente é fruto de suas opções políticas. De opções cujo preço todo o povo brasileiro tem pagado alto preço.

 

Por Renato Nucci Jr. é membro da Organização Comunista Arma da Crítica.


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