O voto de minerva e o fim da tragédia (2)

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Ari Marcelo Solon
19/09/2013

 

 

O gênero literário da tragédia, certamente um dos mais significativos legados culturais dos gregos antigos para a cultura ocidental, baseia sua dramaticidade, de modo geral, no choque pontual, mas devastador, entre duas posições antagônicas extremadas. Não é de se admirar, portanto, que uma das mais célebres obras trágicas, Eumênides de Ésquilo, situe sua ação em um julgamento.

 

Mas, se em outras tragédias, como a Antígona de Sófocles, o embate entre visões de mundo se desenvolve até as últimas e mais insustentáveis consequências, com repercussões de gravidade irreversível e arrebatadora, Eumênides nos apresenta um desfecho otimista e conciliador.

 

O conflito tratado na peça é o debate entre as Erínias, deusas incansáveis da vingança e símbolo das forças do direito formal, e Apolo, personificação do direito pautado segundo uma noção substancial do justo, e não apenas por regras formais. O objeto do debate é a condenação ou absolvição de Orestes, acusado de ter cometido matricídio para vingar o homicídio do pai, assassinado pela esposa e seu amante ao regressar da Guerra de Tróia.

 

Como conciliar os mandamentos sagrados que simultaneamente obrigam ao respeito filial e à vingança do sangue paterno? As Erínias clamavam pela condenação do jovem; Apolo, em conformidade com sua ética de consequências, propugnava pela absolvição de Orestes. Como se vê, os fatos eram incontroversos: o filho matara a mãe. Toda a questão se centrava na avaliação dos aspectos jurídicos do problema.

 

O impasse é resolvido com o voto decisivo da deusa Palas Atena. Sua decisão, que viria a ser imortalizada na expressão "voto de Minerva", promove a reconciliação das forças cósmicas e o prosseguimento coerente da vida por meio da absolvição do réu e da concomitante glorificação das Erínias como Eumênides, doravante não mais forças punitivas selvagens e violentas, e sim potências divinas pacificadoras.

 

Se Hegel enxergou na Oresteia, graças à solução harmônica promovida pelo voto de Minerva, um aspecto sintomático do precoce ocaso da tragédia grega, a decisão sobre o cabimento dos embargos infringentes no caso do "mensalão", também deixada para o desempate por meio do voto final, aponta para a oportunidade de se situar a questão no âmbito da filosofia da história. Repete-se o dilema entre legalidade e afetividade, outrora resolvido por meio da ação de Atena entre a normatividade formal das Erínias e o amor lúcido de Apolo, de modo que sua justa imparcialidade conduzisse à síntese hegeliana ao promover a reconciliação simbolizada na transmutação das Erínias em Eumênides.

 

No plano hermenêutico, tem-se que o exemplo de Atena deveria pautar o ideal de imparcialidade atribuído à atuação do juiz. Com efeito, ao expor marcadamente a polarização entre as teses de aceitação e rejeição do recurso, o julgamento do STF parece refletir de maneira descabidamente subjetiva uma cisão entre os discursos extremos daqueles que exigem o imediato cumprimento das penas com base em uma pretensa justiça apolínea e daqueles outros que, aferrados à legalidade estrita, vislumbram na verdade a oportunidade para, se não a absolvição, ao menos a protelação dos efeitos da condenação.

 

A hermenêutica tradicional, contudo, carece da radicalidade necessária para operar o direito de maneira transformadora, por conta da centralidade que confere à pretensão de construir uma metodologia de interpretação das normas por meio de cânones que em nada mais se comunicam com a dinâmica que se estabelece a cada dia entre as inúmeras variáveis da vida humana, conformando-se com o vão esforço de garantir o mito da segurança jurídica.

 

Resulta deste quadro a ideologia do julgador que declara não poder se deixar afetar pelo clamor popular no momento da decisão. Com isso, o juiz dá as costas ao aspecto afetivo ou emocional do julgamento em favor de sua concepção do que seria a melhor interpretação do texto normativo e renuncia a qualquer possibilidade de construir, à maneira de Atena, novas compreensões do justo.

 

O simples ato interpretativo é desprovido de qualquer potencial pacificador, pois não propicia a composição entre as partes em disputa. O bom julgamento de Atena é possível graças à sensibilidade da deusa, atributo que não é devido a uma idealização de sua feminilidade, mas à sua condição de patrona das artes guerreiras. Atena é a medida, a reflexão e a legalidade, mas também é a valentia guerreira e o entendimento da mutabilidade da vida. Todos estes aspectos encontram sua síntese no espírito substancial livre da pólis.

 

Ao julgador que se escora na hermenêutica tradicional falta o pathos, o sofrimento no ato de julgar do guerreiro, uma vez que ele se encontra ilusoriamente confirmado pela fixidez da norma e pelo tecnicismo da interpretação. Renuncia-se, portanto, a catalisar por meio da função julgadora a síntese hegeliana entre forças contrapostas e a condenar de maneira inequívoca, no momento único do julgamento, não apenas a corrupção do caso em comento, mas a corrupção como uma prática disseminada e encarnada em nossa sociedade, já condenada de forma contundente pelo povo no plano emocional.

 

Leia também O voto de Minerva porá fim à tragédia?

 

Ari Marcelo Solon, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Artigo escrito com a colaboração de Leonardo Passinato e Silva.

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