Delfim Netto ainda é aquele

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João Paulo Stuart
07/02/2013

 

 

 

Evento emblemático aconteceu em São Paulo na semana em que, a 13 de dezembro, completaram-se 44 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5), que fechou o Congresso Nacional e acirrou a repressão e a tortura da ditadura civil-militar instalada no Brasil pelo golpe de abril de 1964. Em seu encontro anual, a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM), fundada no ano do golpe, contratou palestra de Delfim Netto, signatário do AI-5, sobre perspectivas da economia brasileira.

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Economista formado pela USP em 1952, Delfim participou com destaque de todos os governos ditatoriais, de Castello Branco (1964-1967) a Figueiredo (1979-1984), tendo sido ministro da Fazenda com Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1973).

 

A ação do Estado sob a ditadura e, mais especificamente, sua orientação na economia, indicam como central o aspecto repressivo, subordinando o que muitos identificam como caráter “indutor” de um Estado que buscava orientar os rumos da economia.

 

De forma muito direta, Delfim Netto sintetizou esta orientação repressiva em sua breve declaração de voto, no dia 13 de dezembro de 1968, favorável ao AI-5:

 

“(...) Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Este é realmente o objetivo básico. Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa-de-força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. Mais do que isso, creio que, institucionalizando-se tão cedo, possibilitou toda a sorte de contestação (...). É por isso, senhor presidente, que eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência, ao presidente da República, a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez. Eram essas as considerações que eu gostaria de fazer”.

 

De certa forma, a exacerbação dos poderes concentrados no presidente da República que advogava Delfim deve ter contribuído para seu apoio à sanha repressiva fora de qualquer amarra institucional que teve na Operação Bandeirantes (OBAN) sua síntese perfeita: o poder repressivo comandado e financiado diretamente pelos donos do capital, sem mediações, e executado pelos agentes fardados do Estado, com inteligência da CIA.

 

O excelente documentário “Cidadão Boilesen”, lançado em 2009 e dirigido pelo cineasta Chaim Litewski, mostra a estruturação e o financiamento por empresários e banqueiros paulistas da OBAN, centro de investigações e torturas montado pelo Exército brasileiro em 1969 para combater organizações de esquerda que confrontavam o regime ditatorial. A OBAN foi o laboratório que geraria, pouco tempo depois, o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna).

 

O caso de Henning Boilesen, o cidadão Boilesen do título, é exemplar. Dinamarquês naturalizado brasileiro, trabalhou durante 19 anos no grupo químico Ultra, tendo sido presidente da Ultragaz. Anticomunista ferrenho, ligou-se a grupos militares e paramilitares e, sádico, tinha prazer especial em acompanhar sessões de tortura.

 

Segundo Elio Gaspari, a primeira reunião organizada para captação de recursos para a OBAN foi convocada por Delfim Netto e contou com a participação de 15 empresários, em sua maioria banqueiros, como Gastão Bueno Vidigal, dono do banco Mercantil de São Paulo (A ditadura escancarada, p. 61-62).

 

O banqueiro Vidigal era também presidente do ainda hoje elitista clube Paulistano. Lá, às quintas-feiras, costumava promover almoços com empresários e não raro convidava Delfim Netto, então ministro da Fazenda, para apresentar análises de conjuntura econômica e responder a perguntas dos presentes. Ao final da palestra, eram recolhidas as colaborações para a OBAN.

 

Pery Igel, dono do Grupo Ultra e patrão de Boilesen, foi certamente um dos mais destacados financiadores da OBAN, ao lado de executivos das montadoras de automóveis estadunidenses Ford e General Motors, e da empreiteira Camargo Correa.

 

Boilesen foi assassinado em 15 de abril de 1971, em São Paulo, numa ação conjunta envolvendo militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes). Delfim compareceu ao enterro e levou consigo Roberto Campos, amigo de ambos.

 

Panorama do “modelo” brasileiro sob o Estado repressor

 

Delfim foi o operador do modelo econômico da ditadura, num contexto em que as corporações industriais dos EUA buscavam expandir seu domínio sobre a América Latina, para enfrentar a crescente concorrência das corporações europeias reconstruídas no pós II Guerra e barrar o avanço da influência política dos países comunistas.

 

A entrada das transnacionais na economia brasileira representa um novo deslocamento dos centros de decisão, do Estado para estas empresas privadas. O Estado deixa de ser o ponto de confluência das tensões políticas que condicionam a orientação do desenvolvimento e, posto que essa passa ao controle das transnacionais, o Estado torna-se mero gestor técnico e, sobretudo, um órgão repressivo. Nas palavras precisas de Celso Furtado:

 

“(...) as grandes empresas norte-americanas terão necessariamente que transformar-se em um superpoder em qualquer país latino-americano. Cabendo-lhes grande parte das decisões básicas com respeito à orientação dos investimentos, à localização das atividades econômicas, à orientação da tecnologia, ao financiamento da pesquisa e ao grau de integração das economias nacionais, é perfeitamente claro que os centros de decisão representados pelos atuais Estados nacionais passarão a plano cada vez mais secundário. (...) Em realidade, se se consegue subtrair ao Estado grande parte de suas funções substantivas na orientação do processo de desenvolvimento econômico e social, seria de esperar que a atual ‘fermentação’ política, que caracteriza muitos dos países latino-americanos, tenda a reduzir-se, passando os governos a atuar principalmente no plano técnico. (...) Com efeito, a penetração indiscriminada em uma estrutura econômica frágil de grandes consórcios, os quais se caracterizam por elevada inflexibilidade administrativa e grande poder financeiro, tende a provocar desequilíbrios estruturais de difícil correção tais como maiores disparidades de níveis de vida entre grupos da população e rápida acumulação de desemprego aberto e disfarçado. (...) O resultado último seria um aumento real ou potencial das tensões sociais na América Latina. Como as decisões econômicas de caráter estratégico estariam fora do alcance dos governos latino-americanos, tais tensões tenderiam a ser vistas, no plano político local, tão somente pelo seu ângulo negativo. A ação do Estado teria que ser de caráter essencialmente repressivo” (Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, p. 44 e 45).

 

Como resultado, aprofundam-se a inadequação tecnológica e os efeitos da existência do excesso estrutural de trabalhadores disponíveis: os salários permanecem determinados pelo custo de reprodução da população do campo – agravado pela interrupção da reforma agrária – e, portanto, há concentração de renda, que condiciona a estreiteza do mercado face aos problemas de escala de produção. Por isso, a concentração de renda é pressuposto e resultado do processo e gera agravamento das tensões sociais e a necessidade de repressão política. Daí, a confluência entre o sentido da política econômica de Delfim e a repressão da OBAN financiada pelo empresariado paulista.

 

O modelo econômico da ditadura é implantado logo nos primeiros meses após o golpe, e pode ser analisado a partir das reformas contidas no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), inicialmente elaborado por Roberto Campos e Octávio Bulhões. O sentido principal do PAEG era adequar o marco institucional ao deslocamento dos centros de decisão, às necessidades das transnacionais – coadunar estabilização política e econômica por meio do vínculo entre militares e tecnocratas. Para isso, realizou reforma fiscal instituindo sistema tributário regressivo para compensar o déficit público, com redução do consumo, notadamente dos trabalhadores; reforma trabalhista que consistiu em arrocho salarial – através de política salarial que substituía as negociações coletivas por índices de reajuste determinados pelo governo; fim da estabilidade no emprego; e, sobretudo, intervenção e repressão política aos sindicatos.

 

O PAEG completava-se com uma reforma monetária e financeira que, com a desculpa de aumentar a poupança, significou a abertura da economia nacional ao sistema financeiro internacional: fim da lei da usura que estabelecia teto às taxas de juros e flexibilidade para instituições financeiras e empresas captarem recursos fora do país. O resultado de tamanha flexibilização é o mesmo que verificamos com a eclosão da crise de 2007 nos EUA e Europa: estavam colocadas as bases institucionais para a escalada do endividamento externo posterior, que lançaria o Brasil na longa década de estagnação de 1980.

 

Os resultados do PAEG, portanto, só poderiam ser a concentração de renda, pela queda dos salários reais, e o estreitamento do vínculo do sistema econômico nacional com o sistema financeiro internacional, que viabiliza o financiamento das transnacionais e as remessas de lucros para suas matrizes no estrangeiro.

 

A partir destas “contrarreformas de base”, pavimentou-se o caminho para a gestão de Delfim Netto na economia durante o governo Médici, os anos do chamado “milagre econômico”, que cabe aqui, brevemente, recuperar em seu sentido mais amplo. Tratava-se de fazer avançar a industrialização fundada na mimetização dos padrões de consumo (bens duráveis), combinado a uma necessária mudança no perfil da demanda através de transferências de renda dos trabalhadores às classes médias mais elevadas, a fim de viabilizar um mercado ao novo padrão de industrialização. Para tanto, expandiu-se o gasto público e o crédito ao consumo das classes médias, via nexos com o sistema financeiro internacional, e aumentou-se a pressão pelo rebaixamento dos salários.

 

O “milagre” resultou em aumento da concentração de renda e crescimento desproporcional da produção de bens não-duráveis, que estimulou importações igualmente excessivas de bens de capital (máquinas e equipamentos para a indústria), que expressam o nexo das filiais brasileiras das transnacionais com as unidades produtoras de tecnologia no exterior.

 

A cópia dos padrões de consumo (mimetização) leva a um crescimento econômico que reproduz os mesmos desequilíbrios: supõe e reproduz a concentração de renda nas classes médias para consumirem os automóveis, as geladeiras, as televisões, e o endividamento financia o crescimento do consumo e das importações de bens de capital sem elevar a capacidade de autotransformação do sistema. Em suma, na análise precisa de Celso Furtado, a velha herança colonial se atualiza: dependência e subdesenvolvimento reforçam suas conexões fundamentais.

 

O ato final da gestão econômica da ditadura foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), uma resposta à crise gerada pela elevação do preço do petróleo, que procurava enfrentar os estrangulamentos causados pelo déficit comercial e avançar na indústria de bens de capital e intermediários, tentando reorientar a inserção externa da economia brasileira para a exportação de produtos industrializados. Para isso, o II PND contou com elevação do financiamento público através das estatais e mais concentração de renda para viabilizar investimentos. Gasto público para empresas privadas e repressão sempre caminhando juntos.

 

O II PND acirrou a mimetização dos padrões de consumo e a dependência tecnológica e financeira, resultando em aumento do endividamento e das importações necessárias à reprodução desse padrão de industrialização, em total consonância com as estratégias das transnacionais.

 

Eis o legado da gestão econômica de Delfim: a política econômica torna-se função da reciclagem da crescente dívida externa acumulada no período; as garantias cambiais ao fluxo financeiro retiram autonomia da política cambial; política de subsídios para o setor exportador retira parte da autonomia da política fiscal; endividamento manipulado por instituições financeiras compromete o controle do Estado sobre a liquidez e retira autonomia da política monetária.

 

De forma estrutural, a centralidade do endividamento e a perda de autonomia da política econômica tornam a economia brasileira prisioneira da política monetária dos EUA. A crise da dívida dos anos 80 foi o destino desta marcha da insensatez.

 

O modelo econômico da ditadura significou, em síntese, a consumação do deslocamento dos centros de decisão em favor das corporações transnacionais e do sistema financeiro internacionalizado. Isso potencializou os desequilíbrios estruturais herdados do período precedente: dependência tecnológica e financeira e concentração de renda – na base da inadequação tecnológica e da mimetização dos padrões de consumo. Há crescimento, mas não desenvolvimento. O Estado – não mais centro de decisão – tornou-se órgão técnico para gerir o modelo ditado pelas transnacionais e órgão repressivo para sufocar os conflitos políticos daí decorrentes. O saldo foi o crescimento momentâneo, funcional à transnacionalização produtiva e financeira, e subordinado à política dos EUA; a crise da dívida no momento de reversão da política econômica dos EUA; e duas décadas posteriores de estagnação. Evidentemente, o modelo corroeu as bases da sociabilidade no Brasil e fez avançar a barbárie.

 

Em resumo, Delfim Netto ainda é aquele

 

Que Delfim siga sendo referência para o empresariado no Brasil não é de espantar. Causa espanto, entretanto, que sindicatos de trabalhadores e lideranças políticas que sofreram com a repressão da ditadura o tenham como analista progressista da economia. Causa estranhamento que tenha espaço para publicar artigos numa revista que se propõe crítica e contra o arbítrio, como Carta Capital. Quem mudou?

 

Delfim apresenta-se hoje – como o fez no encontro da ABIQUIM – como defensor do modelo de desenvolvimento estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que ele define como tendo objetivo de “melhorar o padrão de vida numa sociedade aberta” em que se soma Estado e economia de mercado. Para Delfim, República significa todos os cidadãos sujeitos à lei, “sob comando do STF”; democracia resume-se a eleições periódicas e justiça social equivale à igualdade de oportunidades num ambiente de plena liberdade de iniciativa e garantia de apropriação privada dos direitos daí decorrentes.

 

A hegemonia do capital sobre o Estado e o trabalho, resultado de anos de ditadura e propaganda ideológica liberal, fez enfraquecer a contestação sindical e popular ao modelo econômico brasileiro, ao passo que naturalizou o caráter repressor do Estado, fazendo-o prescindir de aparatos clandestinos como a OBAN.

 

A Comissão Nacional da Verdade, instalada em março de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff, deveria convocar Delfim Netto para que fale sobre sua participação no financiamento à OBAN. O exemplo já foi dado pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, de São Paulo, que aprovou convocação de Delfim em agosto de 2012, seguindo sugestão do advogado Fabio Konder Comparato: “A Comissão Municipal da Verdade não deve se limitar a ouvir advogados, deputados e agentes políticos. O objetivo dela deve ser desmoralizar a oligarquia dominante, os empresários coligados a militares. É preciso mostrar o caráter hediondo da tortura, pois é isso que acaba desmoralizando. Além disso, a tortura continua acontecendo nas delegacias”.

 

A Comissão Nacional tem manifestado que pretende dar atenção e identificar os rastros do financiamento da OBAN pelos banqueiros e industriais paulistas. Se assim fizer, legará um serviço inestimável ao Brasil, sobretudo aos que hoje enfrentam os mesmos grupos econômicos forjados e impulsionados pelo Estado repressor de Delfim. Sejam os grupos nacionais – como o Ultra de Boilesen e Igel, e a Braskem, braço petroquímico da empreiteira Odebrecht, criado no final da década de 1990 no rastro das privatizações de FHC e que hoje monopoliza importantes segmentos industriais no setor –, sejam os transnacionais: a alemã BASF, maior indústria química global, que no Brasil fatura alto com os agrotóxicos que produz, assim como Monsanto, Bayer, Syngenta, entre outros.

 

Talvez o rastro que ligue o Estado repressor às fabricantes de agrotóxicos possa também ser explicado por Delfim, nem tanto por sua breve passagem de quatro meses como ministro da Agricultura no governo Figueiredo, mas pela subordinação da economia nacional aos interesses do capital estrangeiro que impôs ao Brasil como agente do Estado repressor. Esta orientação impulsionou a mal chamada “revolução verde” no campo, o que deu as bases para o agronegócio, que hoje é comandado pelos grandes produtores de commodities, como soja, pelas transnacionais fabricantes de agrotóxicos e sementes transgênicas, e pelas corporações que comercializam as exportações para o resto do mundo.

 

Para manter a hegemonia deste modelo de crescimento econômico fundado numa agricultura dependente de quantidades cada vez maiores de agrotóxicos – que afetam a saúde do solo, dos trabalhadores rurais e dos consumidores –, as indústrias utilizam diversos meios de propaganda. Por exemplo, no Carnaval carioca de 2013, o desfile da Vila Isabel será bancado com 18 milhões de reais por uma transacional alemã fabricante de agrotóxicos.

 

Delfim, a barbárie e o capitalismo dependente seguem sendo os mesmos no Brasil. Até quando?

 

João Paulo Stuart é escritor.

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