Salvador: uma cidade oposicionista

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Milton Pinheiro
31/10/2012

 

O segundo turno das eleições seguramente servirá para analisarmos a conformação dos blocos políticos que se movimentam na cidade de Salvador, suas contradições e a ocupação da cena política por um sujeito coletivo de caráter indefinido: as massas fatigadas pelo comportamento errático dos polos governistas, que praticam conluios e disputas momentâneas.

 

Salvador, marcadamente oposicionista no começo da década de 80 do século passado, elegeu, em 1982, uma grande bancada de vereadores, fazendo o enfrentamento ao carlismo e ao prefeito biônico da época. Salvador era um baluarte da mudança, que tinha a oposição do imenso interior baiano, que havia acabado de eleger o representante da ditadura, o indicado do líder político, ACM.

 

Em 1986, nas eleições para governador, Salvador lideraria a luta oposicionista do estado, elegendo Waldir Pires. O campo oposicionista já havia tido um grande reforço com a eleição de Mário Kestész, um desafeto de ACM, em 1985. Consolidava-se, assim, um projeto de oposição, agora na gerência do aparato de Estado. No entanto, em terras baianas, a ação de “cooptação” não guarda respeito ao que se pensa do ponto de vista político-ideológico. Os novos aliados vêm para garantir maiorias e, sendo assim, Waldir Pires governou com o mesmo bloco do poder.

 

Em 1988, as massas oposicionistas, na contramão dos acertos sem princípios, escolheram Fernando José, a voz do rádio, o comunicador que a todos satisfazia sem precisar dizer o que pensava sobre o poder local.

 

Novos acertos fatiaram o bloco que saíra coeso da ditadura militar. Tivemos várias posições naquele momento: Waldir Pires, comunistas, o campo da frente democrática e ex-carlistas ficaram com Virgildásio de Senna.  ACM, sobreviventes da Arena, aliados de Sarney e congêneres, com Manoel Castro. O prefeito Mário Késtesz, segmentos de negócios (Pedro Irujo) e o fisiologismo da pequena política, com o vitorioso. E o PT, sem qualquer influência no processo, apenas querendo marcar posição para se consolidar à esquerda.

 

O governo Waldir Pires conformou-se em um projeto sem substância política, indefinido ideologicamente e frágil do ponto de vista da gerência do aparato de Estado; foi assim identificado pelas massas, que cerrou fileiras, em toda a Bahia, ao lado do modelo conservador de operar e gestar a política e, novamente, liderado por um Salvador oposicionista, votou em ACM.

 

A velha política retornou ao governo. Rearticulou o bloco no poder e partiu para reafirmar o consórcio do empresariado local, no controle do Estado. Exercitando a truculência como forma de mediação, a velha política consolidou um “jeito de governar”, de triste memória para a Bahia.

 

Nas eleições de 1992, pautada pelas lutas nacionais, a oposição encontrou ressonância para as suas palavras nas massas insatisfeitas com o poder local: a gestão de Fernando José havia sido um caos e o governo do estado assistiu de camarote. A pauta nacional, as contradições do grupo carlista e o caos em Salvador fizeram com que o aceno da oposição encontrasse na subjetividade das massas soteropolitanas um forte alento, que levou ao governo Lídice da Mata.

 

O cerco do governo ACM à gestão de Lídice, a incapacidade da administração municipal de romper, via articulação política e social, esse cerco, levou à derrota das forças contraditórias ao carlismo em Salvador, em 1996. Novamente as massas, pautadas pelo caráter despolitizado da alternância, votavam enquanto oposição no projeto que feria gravemente os interesses populares. No campo da esquerda não sobressaía nenhuma perspectiva de poder: nem na social democracia tardia, representada pelo PT, muito menos no espólio pessedista representado por Waldir Pires, comunistas e variantes do centro democrático.

 

As contradições do capitalismo, a fadiga das massas com o projeto conservador representado por FHC e seus aliados, o avanço das lutas sociais, a esperança dos trabalhadores na possibilidade de um futuro melhor e a capitulação da social democracia tardia (PT) aos ditames da ordem permitiram o surgimento de uma cena política que movimentava o alicerce oposicionista de Salvador. E assim ocorreu: a cidade votou em João Henrique para prefeito e em Wagner para governador.

 

A gestão de João Henrique avançou para o caos gerencial, e a população tem sido penalizada. Ao lado desta questão, temos um governo estadual que age de forma errática do ponto de vista político, quando se pauta pela acumulação de aliados, sem observar as contradições desses grupos e personagens no processo político e social; sendo incapaz de compreender a subjetividade dos subalternos diante da crise em que se encontra a cidadania soteropolitana.  O PT, partido chefe da coalizão no governo, faz uma articulação política conservadora, típica do presidencialismo de coalizão, onde o mais importante é colocar ao seu lado parlamentares e grupos políticos custeados pela pequena política. Afastando-se da sua base social originária, e agindo de forma truculenta no processo de relação com os lutadores sociais: seja no setor público ou forçando, no setor privado, o apassivamento daqueles que reivindicam melhorias.

 

Que fazer diante de uma força política que aposta, em tão curto período, em aliados tão contraditórios e diferenciados? O PT apoiou João Henrique, participou do governo, saiu do governo, disse que aceitaria o apoio do prefeito, atacou o prefeito. O deputado Pelegrino há muito se afastou da base social de onde falava, operando no campo dos interesses policlassistas. Sem entender o sinal que as massas oposicionistas lançavam reiteradamente, continuava a política de somar apoios sem olhar para o que representavam esses grupos e políticos. Nesse cenário, as massas oposicionistas souberam fazer o seu tradicional discernimento: votaram naquele que entendeu o sinal de alerta.

 

Com a eleição de ACM Neto, não muda o bloco no poder na gestão municipal, que apenas vai ser dirigido por um segmento mais à direita do espectro político.

 

Os programas que disputaram a prefeitura se pautaram no atendimento ao interesse de consumo manifestado pelo cliente. Sendo assim, o povo escolheu um projeto que atendeu ao seu desejo de alternância, por mais conservadora que seja. Por outro lado, afirma-se, com pequenas diferenciações, uma política e dois partidos. O povo novamente perdeu, mas continua oposicionista.

 

Milton Pinheiro é cientista político e professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

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