Ganância privada e omissão pública resultaram em caos aéreo

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Valéria Nader
27/07/2007

 

O último e trágico acontecimento no setor aéreo em Congonhas, na seqüência não somente de uma crise que se arrasta há tempos, mas também de outras ocorrências dramáticas, vem sendo alvo de uma série de análises com os mais variados enfoques.

 

Se é compreensível que a comoção pela tragédia enseje, especialmente em um primeiro momento, uma dispersão de opiniões na busca de sua explicação e também pelos culpados, chama atenção o maniqueísmo que vem predominando nas análises sobre o caos aéreo, tanto na imprensa como entre especialistas. O perigo é caminhar-se para uma esquizofrenia, que será tanto mais inócua na busca de qualquer solução quanto menos se fizer perceber.

 

O que está verdadeiramente acontecendo na aviação de nosso país? Essa é a pergunta que faz toda a população brasileira que acompanha os problemas aéreos desde que o acidente com a Gol, em setembro de 2006, abriu a caixa-preta da aviação no Brasil.

 

Gol: sem conspirações

 

O emergir à época de uma crise aguda em céu, até então, de brigadeiro, no país em que a aviação civil e a comercial se notabilizavam como pontuais, eficientes e portadoras de tecnologia de ponta, deixou atônitos todos os que assim se apercebiam da infra-estrutura aérea de que se utilizavam. Não poderiam pensar ou agir de outra forma os leigos, diante de uma imagem tão bem construída e também operante.

 

Mas já nesse momento começaram a emergir problemas reais que há anos vem enfrentando o setor e, para cuja explosão, o acidente da Gol fora somente a gota d’água. Analistas, especialistas e profissionais sérios, que antes do acidente não teriam, obviamente, a menor chance de furar o bloqueio das arraigadas estruturas de poder e dos meios de comunicação para expor as mazelas do setor, viram-se na contingência de o fazer em função das frestas que se abriram diante da gravidade do quadro.

 

Já no começo desse ano de 2007, não poderia mais restar dúvidas quanto às deficiências que há anos vêm sendo represadas. Em abril, Uébio José da Silva, presidente do Sindicato dos Aeroviários de São Paulo, em conversa com o Correio, constatava que “o acidente com o grupo Mamonas Assassinas, ocorrido há dez anos, foi um erro de controle do tráfego aéreo, que poderia ter corrigido a rota e evitado sua colisão”.

 

Especulações quanto a eventuais conspirações que estariam sendo tecidas pelos controladores do tráfego aéreo, ou outras quaisquer, já aí se desmascararam: “o que ocorreu é que os controladores se viram à mercê de serem responsabilizados penalmente por homicídio culposo devido ao acidente da Gol, e isso foi a gota d’água para que se abrisse a caixa-preta da aviação civil no Brasil”, ressaltou Uébio em abril.

 

Especulações, ademais, quanto à responsabilidade da atual gestão já aí também ficaram delimitadas, vez que a derrocada aérea, sem dúvida alguma, transcende o governo Lula. No entanto, é também inegável, segundo narrou o próprio Uébio, que a atual gestão não ficou devendo nada às anteriores, na medida em que se perdeu por completo, empurrando os problemas com a barriga. Sem qualquer plano para implementar no setor, sem qualquer gestão conjunta entre o governo federal, o Ministério da Defesa, a Infraero e a ANAC (a Agência Nacional de Aviação Civil), envolvendo todos os seus atores, as soluções anunciadas não passaram de bravatas inconseqüentes.

 

TAM: quais os novos “sofismas”?

 

E agora, com mais um trágico acontecimento em menos de um ano, até agora o maior na história do país, e onde provavelmente mais de 200 vidas foram ceifadas, quais seriam as novas formulações? Há ainda margem para especulações, divagações, a exemplo daquelas que ainda ressoam?

 

Abriu-se, certamente, um cenário mais cristalino, que literalmente desabou sobre a cabeça da população, tornando-se difícil mascará-lo. Mas, por isso mesmo, um cenário mais intrincado, e onde “sofismas” podem aparecer, e já estão aparecendo, de forma mais sofisticada.

 

De um lado, mediante a realidade cabal, alguns dos maiores veículos de comunicação, os grandes sustentáculos do status quo, estampam daqui e dali análises questionadoras do enorme volume de recursos que vem sendo despendido no pagamento de juros da dívida pública – dos quais os maiores beneficiários são os especuladores -, em detrimento dos investimentos na infra-estrutura do país. Muito provavelmente não com esse propósito explícito, insinua-se aí um questionamento ao modelo econômico dominante, que não foi nem mesmo arranhado em suas linhas mestras pelo ex-operário e atual presidente Lula.

 

Por outro lado, vêm sendo a cada dia mais freqüentes críticas à “esquerda” do espectro político, denunciando propósitos “golpistas” que estariam a caminho por parte da grande mídia e dos antigos grupos de poder, aproveitando-se do atual acidente para imputar culpas e desestabilizar o atual governo. Ainda que sejam cabíveis tais alertas, não se afiguram como essenciais. Tornam-se mesmo inócuos em um momento com a gravidade do atual, por pelo menos três fatos incontestáveis.

 

Em primeiro lugar, conforme já acima salientado, quaisquer análises minimamente sérias não deixam dúvidas quanto às origens remotas da atual crise, transcendendo a atual gestão. Além disso, não se trata da primeira e nem da última vez que a grande mídia se aproveita de um episódio para vingar a pedra no sapato que para ela representa a chegada de um homem de origem popular à presidência. Mas, por último, e preponderando sobre essa constatação, não se pode deixar de levar em conta a relação esquizofrênica que essa própria mídia mantém com um mandatário que - segundo reconhecido até entre as hostes políticas aliadas ao governo Lula – manteve até agora intactas as bases essenciais de sustentação das elites dominantes no país.

 

Seria, assim, no mínimo arriscado apostar no poder e na disposição “golpista” daqueles que são historicamente “poderosos”.

 

O que está em jogo

 

Para que se tenha um diagnóstico sério e, acima de tudo, efetivo da calamidade que vem atravessando o país no setor aéreo, importa buscar o reconhecimento de suas raízes mais profundas, que agora se projetaram de modo contundente e incontestável na conjuntura imediata.

 

O entrelaçamento dos interesses privados aos públicos, de forma quase sempre a usurpar os últimos, não constitui uma novidade no Brasil. Notoriamente presente desde que se intensificou o projeto nacional-desenvolvimentista, já fora largamente definido na ditadura como a “privatização do Estado”, na medida em que este assumia os ônus do crescente endividamento externo. Daí em diante, ao passo em que o projeto neoliberal assolou os quatro cantos do mundo, os países emergentes foram palco de benesses cada vez maiores do setor público em prol do setor privado, assumindo o último papel preponderante na condução das diversas economias.

 

Constituiriam, nesse sentido, meras coincidências, em nosso país especificamente, o apagão elétrico, a crise do racionamento de energia, o escândalo das termoelétricas – que se provaram desnecessárias e acabaram por ser assumidas pelo Estado, através da Petrobras -, a degringolada das rodovias e da infra-estrutura portuária, a cratera do metrô de São Paulo e, agora, o apagão aéreo? Seguindo-se quase ininterruptamente um ao outro, poderiam ser designados de fatalidades esses acontecimentos?

 

Se uma rápida retomada histórica sugere que pensar em fatalidade seria uma forma primária de encarar a situação, o diretor de Segurança do Vôo do Sindicato Nacional dos Aeronautas e comandante da Varig, Carlos Gilberto Camacho, em uma entrevista ao Correio sobre o último acidente da TAM em Congonhas, reforça essa apreensão, ao deixar claro com seu depoimento alguns determinantes básicos que concorreram para o caos atual.

 

Inadequação de Congonhas e/ou ganância das empresas?

 

Em face do atual acidente, a inadequação do aeroporto de Congonhas para a quantidade de operações a que vinha sendo submetido é uma das causas mais exploradas pela mídia - em um claro viés, deve-se admitir, de culpabilização das autoridades e suavização da responsabilidade das empresas aéreas.

 

Não há dúvidas, segundo ressalta Camacho, quanto à sobrecarga em Congonhas: “o aeroporto de Congonhas perdeu, ao longo do tempo, sua vocação, que era atender a vôos regionais com até duas horas de duração. No limite, uma aeronave poderia decolar de São Paulo, pousar em Salvador e retornar. Hoje, o aeroporto é um hub de distribuição de vôos nacionais e internacionais; há um excesso em sua utilização exatamente por conta da oferta e da demanda, uma equação que tem uma capacidade de equilíbrio incrível. Se for levado em consideração que o aeroporto tem limites e restrições, particularmente no que diz respeito à sua operacionalidade, é um aeroporto que pode sim ser utilizado. Porém, devem ser alterados os tipos e o peso das aeronaves que o utilizam e, em dias de chuva, o aeroporto sequer deve ser operado”.

Ainda segundo Camacho, no ano de 2006, houve quatro grandes derrapagens no aeroporto, que foram a antecipação da tragédia. “Fomos avisados; a natureza não nos enganou”.

 

Por que então tamanha insistência em arriscar? O motivo não é nada gratuito. “A ganância das empresas aéreas é um complicador grande, pois, se pararmos para analisar, o aeroporto poderia muito bem atender às pontes aéreas de São Paulo até o Rio, Belo Horizonte, Curitiba e Brasília, por exemplo. Mas trata-se de um aeroporto que está saturado, e as autoridades responsáveis sofrem diversos tipos de pressões. Temos, basicamente, a lógica do lucro; se o capital não é contido ao ocupar o seu espaço e lugar, ele vai avançando. Ou seja, o capital tem a necessidade de aferir cada vez mais lucratividade e quem deve regular esse modelo é a sociedade. No aeroporto de Congonhas, que é um dos aeroportos mais lucrativos do mundo, logicamente iria haver, pela lógica do mercado, essa concentração de vôos. Quem tem o papel de regular isso são as autoridades, nossos representantes legais. Quando não o fazem, é necessário repúdio, através de medidas via Ministério Público, Justiça Federal, da sociedade etc. Estes instrumentos legais estão aí para coibir abusos e excessos. Foi exatamente isso o que aconteceu quando, no início deste ano, o Ministério Público Federal tentou interditar o aeroporto de Congonhas”, ressalta Camacho.

Uma lógica perversa e a ANAC


O relato de um experiente comandante do setor é uma evidência, portanto, de que estamos diante de uma lógica perversa, onde o que menos interessa é a busca isolada de bodes expiatórios, o governo, a oposição, as empresas, a mídia etc. Afinal, se promíscuos interesses privados se fizeram valer é porque há anos não se faz devidamente presente o poder público.

 

“Nesse momento, a responsabilidade é de um conjunto de atores, não há um único responsável. As coisas foram acontecendo durante anos e anos. Não é culpa de um nem de dois governos, mas sim de uma falta de planejamento estratégico no país em relação ao transporte aéreo”, reitera o comandante da Varig.

 

A ANAC, mais uma das agências que vieram na onda da desregulamentação, é apenas uma das engrenagens desse processo: “trata-se de uma agência nova, que ainda está ganhando experiência, que ainda está aprendendo. Os capitalistas do setor, não; esses têm muito conhecimento de causa. O que houve foi uma dicotomia, um desencontro total. Se levarmos em conta que 92% do setor estão nas mãos de duas empresas, um duopólio, não tenha dúvidas de que essas empresas terão um peso muito grande nas decisões da Agência. O Conselho de Aviação Civil (CONAC) se reuniu várias vezes nos últimos anos, apresentando diversas propostas para o setor. No entanto, a ANAC não atendeu a nenhuma das resoluções. A agência serve sim aos interesses das empresas, em detrimento dos interesses da sociedade”.

 

 

Para ler a entrevista completa com Carlos Gilberto Camacho, clique aqui.

 

 

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

 

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