Dilma, da guerrilheira à parceira dos algozes

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Milton Temer
05/10/2011

 

 

Mesmo quem nunca assiste a competições de atletismo já ouviu falar da disputa de salto em altura, onde os competidores vão se eliminando na medida em que a barra a ser superada vai sendo colocada em alturas ascendentes. Pois é. Ao tratar desse início de governo Dilma, onde está o nível da barra,  para uma justa comparação? Qual o nível de exigências de avaliação, após oito anos de um frustrante primeiro governo que chegava para tudo transformar, e quase tudo manteve como dantes?

 

Difícil responder. A comparação não é com governos democráticos, reformistas e progressistas ao longo do Continente, corajosos na implementação de transformações estruturais da sociedade, a despeito das armadilhas que lhes colocam pelo caminho. É apenas a continuidade de uma administração saudada por ter promovido uma movimentação, com ascensão social de camadas desprotegidas, mas que, considerada de forma mais consequente e séria, apenas limitada aos segmentos assalariados. Entre eles houve uma real redistribuição de renda, por conta dos programas assistenciais. Pelo que se resolveu determinar como de “nova classe média” famílias cuja rendas não alcançam R$ 1300,00.

 

Faz sentido. Pois esta operação, limitada ao mundo do trabalho, serviu para estiolar o movimento social organizado que havia resistido com grande combatividade ao mandarinato tucano-pefelista de FHC. E, ao mesmo tempo, tranquilizou as classes dominantes, na medida em que nem arranhou a tinta dos cofres dos grandes especuladores do sistema financeiro privado. Como afirmou o próprio Luiz Inácio, banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro como durante seu governo. E nunca o Brasil pontificou com tantos novos bilionários na lista maldita da revista Forbes.

 É a partir de tais preliminares que devemos falar de Dilma.

 

Seu início de governo é marcado pelo agravamento do que havia de pior em seu antecessor, e por um recuo sensível naquilo que pudesse representar algum contato com o passado de lutas do partido, a cujo programa os dois deveriam se submeter. Aumenta a sensação de um pote até aqui de mágoas para o povo brasileiro. Povo bom e ingênuo que acreditou, em 2002, com a eleição de Lula, ter gerado as condições para viver uma nova realidade. Uma realidade realmente pautada na concretização de uma democracia justa, social e politicamente avançada.

 

 

Mas qual o quê.

 

Consolida-se a guinada à direita, com a implantação de uma nova forma de populismo. Um populismo bem sucedido eleitoralmente, por realmente promover ascensão social de segmentos até então absolutamente abandonados. Segmentos antes controlados pelo clientelismo da direita, hoje beneficiados pelo assistencialismo-bolsista do lulismo. Um populismo inteiramente aceito pelas classes dominantes, por conta de subvenções e isenções tributárias pantagruélicas ao grande capital, especialmente o financeiro-especulativo, que se locupleta na especulação com títulos de uma dívida pública, crescida dos R$ 60 bilhões do início do mandarinato FHC aos R$ 650 bi na posse do petista, e hoje já superando a barra dos R$ 2 trilhões.

 

Um populismo, enfim, bem menos ousado do que o posto em prática por Getúlio Vargas, exemplo sempre referenciado, para o bom e para o ruim, pois absolutamente descompromissado com qualquer transformação estrutural semelhante às postas em prática no terreno social, basicamente nas relações de trabalho, pelo antecessor histórico. E que começa a sentir resistências.

 Sintoma disso são as primeiras manifestações hostis, ainda que discretas, mas sensíveis depois de muitos anos de comprometedora caluda, da direção da CUT e do próprio PT. Sintoma disso é a descrença da cúpula do MST em relação ao cumprimento de promessas concretas de uma Reforma Agrária necessária, que ao longo de décadas alimentaram as relações íntimas do Movimento com a liderança de Lula.

 

 “Reforma Agrária, descanse em paz” fazia a manchete da foto onde o fundo era um campo coberto de cruzes, daqueles que vemos em filmes de guerra, para ilustrar o preço pago, em soldados mortos, pela disputa de territórios. Foi essa a capa  de Carta Capital, na sua edição de 3 de agosto –  publicação sobre a qual ninguém tem dúvida quanto ao quase incondicional alinhamento com o governo Lula, e clara identificação com a campanha de Dilma Roussef, na sucessão.

 

 

No corpo da revista, texto denso e bem fundado comprovava o fracasso da administração lulista, tudo indicando ser mantido por sua sucessora, no tratamento do problema que, para a história do Partido dos Trabalhadores, tem simbologia quase sagrada. Pior ainda, mostrando que, na comparação com o mandarinato tucano-pefelista de FHC, e até mesmo com o período Costa e Silva, do regime ditatorial, a situação de concentração de propriedade da terra se intensificou com a implantação e manutenção do populismo lulista.

 

Bizarro... nessa altura do texto tenho a sensação de entorpecimento, de dejà vu, mas certamente isso tem a ver com o que falamos antes quanto à altura da barra para o salto do, ou da, atleta. Lula a deixou tão embaixo, que o tratamento com frieza dos sintomas parece ser algo necessariamente xoxo. Sem surpresas, comparável ao que seria dito sobre qualquer governo da direita tradicional.

 

E deve ser disso que estamos tratando ao continuar na avaliação. Pois como explicar que uma candidata tratada como terrorista, por um jornal empenhado em campanha  do seu adversário na disputa da Presidência da República, conhecido pela relação promíscua com os torturadores da ditadura que o jornal apoiou e ela combateu, possa ter sido alvo de homenagem pessoal da presidente depois de eleita? 

 

Só se explica se estabelecermos ligação direta com as iniciativas afetivas dessa presidente dita de esquerda em direção a Fernando Henrique Cardoso, nas festas dos 80 anos do introdutor do mais degradado neoliberalismo em nossa estrutura de governo. Dilma destacou “qualidades”, de “acadêmico e político”, que transformou seu mandato numa agência de implantação do mais radical neoliberalismo tardio, abrindo mão de parcela essencial do patrimônio estatal com financiamento público subsidiado aos privilegiados que dele se apossaram. Mais grave ainda, agência de desregulamentação da economia no benefício dos maganos do sistema financeiro privado a quem entregou R$ 40 bilhões do erário através do famigerado Proer, abrindo as portas do país para uma integração subalterna à globalização predatória. Não por acaso, a sequência de salamaleques dispensáveis levou o cronista Zuenir Ventura a cogitar da previsível convergência ideológica entre a presidente e o cardeal tucano.

 

Mas há mais, e mais grave, nas manifestações de afeto político se mesclando com promiscuidade, intoleráveis numa presidente pretensamente progressista, quando vemos as sucessivas demonstrações de apoio ao governador Sérgio Cabral, a despeito dos malfeitos gerados pelas ligações suspeitas com empreiteiras com quem partilha vida privada. Quadro constrangedor, cujas primeiras pinceladas vieram com a truculência de Lula sobre a seção fluminense do PT, obrigando o partido a se entregar ao papel de linha auxiliar do novo enfant gaté. E que Dilma reforçou em tintas, quando veio dar a mão a Cabral logo após a tragédia do helicóptero, na Bahia, que revelou a promiscuidade criminosa entre o governador do Rio e algumas empresas e empreiteiros dispensados de licitação em seus negócios com o Estado.

 

 

Não vamos perder tempo aqui com avaliações sobre os episódios Palocci, Nelson Jobim e Alfredo Nascimento. Não servem para nada além de comprovar em que verdadeira formação de quadrilha se transformou o conceito de aliança política para o lulismo pragmático. Já é cansativo.

 

Mais importante é incidir sobre o estelionato eleitoral cometido com a privatização dos aeroportos, e a submissão crescente ao grande capital, que continua  inexplicavelmente privilegiado a despeito das sucessivas análises públicas do presidente do IPEA, Marcio Pochman, quanto à indecente injustiça tributária que caracteriza nossa arrecadação fiscal. Não vivemos, como insiste um dos grandes maganos, conselheiro especial da presidência da República, Jorge Gerdau, uma excessiva carga tributária. Vivemos, sim, uma distribuição perversa das responsabilidades dessa carga, como explica o citado Pochman, em artigo recente: “O adequado enfrentamento da injustiça tributária atual impõe a elevação da eficiência do Estado, seja no formato da arrecadação do fundo público como na sua redistribuição. Isso implicaria abandonar o vergonhoso peso do Estado proporcionalmente maior sobre os segmentos de menor rendimento, que transferem todo o mês praticamente a metade do que recebem por força do esforço do seu trabalho. Já os ricos, que por força de suas propriedades obtêm rendas elevadas, quase nada contribuem com o fundo público no Brasil” (Valor Econômico- 08/09/11).

 

Por fim, e para caracterizar o que define um governo conservador, subordinado ao grande capital, fica o registro da vergonhosa manutenção de prioridade em torno do famigerado superávit fiscal. Do que se trata? Trata-se da economia forçada a que o governo se submete, com cortes brutais nas políticas públicas, para atender aos serviços de uma dívida pública que, como citamos acima, não cessa de crescer, embora nunca tenha sido feita a auditoria exigida na Constituição de 88. 

Ainda está fresca a decisão recente, saudada pelos analistas das “consultorias” dos especuladores, quanto ao corte de R$ 50 bilhões no Orçamento, para consolidação do superávit neste ano.

 

Resta um ponto final: e o PT com isso?

 

É da tradição política de uma coligação partidária de apoio ao governo, e mesmo quando os partidos tenham razoável grau de identidade ideológica, que entre si esses partidos disputem hegemonia de programa. Foi assim no Front Populaire, da França, nos anos 30, onde socialistas e comunistas faziam a base essencial do governo Leon Blum. Foi assim na Unidade Popular, onde comunistas, socialistas e radicais progressistas disputavam linha no governo de Salvador Allende.

        

Não é o que ocorre no Brasil, a partir da implantação do “polulismo” - o populismo pragmático lulista -, em que uma despersonalização programática foi imposta ao PT. Uma despersonalização que, sob orientação de uma cúpula cooptada, e das bancadas parlamentares no Senado e na Câmara – com honrosas, porém bem limitadas, exceções –,  imobilizou os movimentos sociais outrora combativos, e uma militância outrora atenta e participativa. Em nome de uma calhorda “governabilidade”, o PT abriu mão de disputa programática para se transformar numa espécie de cúmplice-avalista do PMDB, para subjugar pela corrupção das “emendas ao Orçamento” uma base de governo reacionária, e aberta às práticas dos mais abjetos malfeitos.

 

Se algum sinal positivo é registrado, com o retorno ao programa da exigência da regulamentação da mídia ocupada por concessão de direito público – rádios e tvs – que a Executiva covardemente havia  suprimido na reunião preparatória, logo vem a compensação desanimadora. O PT do Rio de Janeiro se rende às exigências do governador Cabral e passa a admitir a privatização da Saúde, através de OSs, até então abominadas pelas diretrizes partidárias.

 

Qual papel resta à esquerda que não se rendeu nem se vendeu, grande parte dela abrigada no PSOL?

 Ter consciência da inadiável necessidade de ampliar sua já heróica, porém pequena, representação institucional, para continuar e ampliar as bases sociais que vem construindo com a liderança que nossos parlamentares vêm mostrando nos diversos embates. Bombeiros, no Rio, e profissionais de educação nos planos federal e estaduais. Reforçar, para abrir espaços alternativos aos que ainda acham que, por ação farisaica de um oposição de direita – que só é oposição porque não participa do botim – , apoiar o governo é a única saída.

 

                                                                      

Milton Temer é jornalista.

 

                                          

 

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