Esquerda não pode mais tergiversar frente às dificuldades do atual período histórico

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Valéria Nader, da Redação
02/09/2011

 

 

No mês de agosto de 2011 veio à tona o esperado repique da crise econômica internacional que explodiu em 2008. Como é tradição nestes momentos de aguçamento da conjuntura, reaparecem as velhas discussões. O caráter da crise, os limites do modelo de desenvolvimento e crescimento ora em curso, as incógnitas sobre a sobrevivência do capitalismo, a atualidade dos ideários marxista e neo-keynesiano e as possibilidades que se colocam para as esquerdas e os movimentos populares voltam a povoar o imaginário de setores retrógrados e progressistas em seus prognósticos sobre um futuro carregado de incertezas.

 

Para os setores mais progressistas, o significado e o futuro da esquerda talvez seja um dos temas que apareçam com maior ímpeto em momentos de aprofundamento da crise do capitalismo. Foi com a preocupação de discutir a esquerda no Brasil, mediante o atual cenário internacional, que a revista Caros Amigos promoveu um importante debate. A discussão ocorreu no Tuca, o anfiteatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, no dia 30 de agosto. Compuseram a mesa o jornalista e chefe do departamento de jornalismo da PUC-SP, José Arbex; o cientista político, jornalista e secretário de Relações Internacionais do PC do B, José Reinaldo Carvalho; o também cientista político e jornalista, presidente da Fundação Perseu Abramo, Nilmário Miranda; e o coordenador nacional do MST João Paulo Rodrigues. Coordenando a mesa estava o professor do departamento de jornalismo da PUC-SP e editor da Caros Amigos Hamilton Otávio de Souza.

 

Refletir sobre o transcorrido nesse debate reveste-se aqui de interesse pela importância e oportunidade do tema que se levanta e, não menos essencial, pelos artifícios e impasses a que este tema pode conduzir.

 

Em cena, um dèjá vu

 

Muitos são aqueles que já se colocaram em uma postura de inclemência para com o governo Lula, encerrado no final de 2010. Enterraram já há algum tempo o ‘sonho’ de que o mandato do ex-operário do ABC alcançaria boa parte das transformações verdadeiramente estruturais de que se ressente nosso país. Para estes, as discussões que presenciaram no Tuca trouxeram, com evidência marcante, sentimentos profusos e ambíguos.

 

De certa forma, perpassava a impressão de se estar diante de uma cena do começo dos anos 2000, um momento em que imperavam e prosperavam as polêmicas sobre o ‘caráter’ do governo Lula. Ainda que a famosa Carta aos Brasileiros, já em 2002, tenha deixado claras as concessões da candidatura Lula a imposições do setor financeiro – naquele momento ainda muito temeroso com a chegada de um petista e ex-sindicalista ao poder -, predominava a forte apreensão de que a ‘esperança havia finalmente vencido o medo’. O governo passaria por dilemas e dificuldades, mas permaneceria sendo um governo em constante disputa. Para os setores ávidos por uma etapa de mudanças efetivas em nossa economia e sociedade, não havia espaço para desconfiar do entusiasmante bordão sob o qual se elegera Lula.

 

Enquanto o assunto esteve circunscrito ao aprofundamento da crise capitalista, ao grau de agressividade do imperialismo no mundo contemporâneo, ao controle exercido pelos grandes grupos financeiros em escala mundial, bem como às estrondosas reações populares que estão se espalhando pelos quatro cantos do globo, não havia espaço para discordâncias entre os debatedores. Afinal, trata-se de fatos por demais patentes para que provoquem polêmica entre grupos que partem de um olhar progressista em direção à realidade. Porém, na medida em que se deslocou o foco para o Brasil, especialmente para a atuação passada e futura da ‘esquerda’, Arbex foi o único a confrontar de modo contundente a ‘era Lula’.

 

Arbex é veemente em sua afirmação de que a ‘correlação de forças’ não pode definitivamente ser pretexto para se fazer uma série de concessões, a exemplo do que fez Lula, em um dos governos que se erigiram como um dos maiores sustentáculos do capital financeiro da América Latina. Além disso, no atual contexto mundial, ser de esquerda, para o jornalista, tem um significado bastante complexo. Implica, em primeiro lugar, em exigir o impossível, sob pena de se cair no oportunismo. Indo além, ser de esquerda exigirá postura contrária a uma esquerda chamada de ‘auto-legitimadora’, que se teria como iluminada para traçar os destinos dos trabalhadores.

 

Neste sentido, Arbex avança ainda mais a discussão, tendo também como alvo as próprias correntes mais à esquerda no espectro político. Lança um claro chamado à reflexão sobre as posturas formadas à luz do leninismo, e que apregoam a necessidade de se construir um acúmulo de forças a partir da ‘consciência de classe’. Segundo o jornalista, seria preciso aprofundar a reflexão a respeito de tal conceito, ao lado de reforçar a ótica marxista segundo a qual a consciência revolucionária seria fortemente determinada pela prática revolucionária.

 

Nilmário e José Reinaldo são bem menos impiedosos com os mandatos presidenciais petistas, antigo e atual. São igualmente críticos do capitalismo, especialmente no atual estágio em que caminha a passos largos para a destruição planetária e a corrosão generalizada de direitos humanos, beirando a barbárie. Vêem, no entanto, com bons olhos os rumos tomados pelos governos petistas, o de Lula e, agora, o de Dilma Rousseff.

 

José Reinaldo acredita que um programa consistente, aliado a lutas e tarefas cotidianas, constitui-se no ingrediente básico para o acúmulo de forças e a maior consciência do povo, abrindo caminho para a estratégia socialista. Deste modo, ter apoiado o governo Lula e apoiar agora o governo Dilma, governos em disputa, em sua opinião, seria um caminho conseqüente, ao passo que agir de outro modo poderia conduzir a uma perspectiva de ‘seita’, sectarista e obscurantista.

 

Para Nilmário, a revolução se caracteriza por ser um processo sem fim, em construção permanente, e deve ser radicalmente democrática e sustentável. A partir desta concepção, ao lado da noção de que a correlação de forças é decisiva neste processo, o cientista político crê que o Brasil estaria recompondo a soberania nacional, a retomada de direitos sociais básicos para parcelas expressivas da população e o planejamento estratégico desde a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder. Um partido que, segundo Nilmário, permanece, sem dúvidas, à esquerda, não aceita o neoliberalismo e optou pelo socialismo e a revolução democráticos, com respeito pelo Estado de Direito.

 

A correlação de forças e os fatos

 

Não é o caso de, nesse espaço, adentrar as bases teóricas e motivações, assim como em eventuais racionalizações ou retóricas, que estão a embasar cada uma dessas concepções. No entanto, se é necessário tomar a correlação de forças como fundamental na avaliação das possibilidades de qualquer governo, conforme afirmam os próprios debatedores, é também imprescindível não se desprezarem os fatos proeminentes e emblemáticos que se desenrolam sob a direção de um governo. Desprezar estes fatos seria afastar qualquer tentativa séria de fazer a discussão a que se propõe, qual seja, o caráter e as possibilidades da esquerda. Desprezar tais fatos implicaria, ademais, em tornar as tão corriqueiras e aclamadas aspirações de uma possível ‘união das esquerdas’ em algo meramente protocolar e inócuo.

 

E aí nem seria preciso ir muito longe, com uma retomada prolongada da administração de Lula e de todas as ponderações que substanciam a avaliação de que não se avançou no que era efetivamente possível para se ultrapassarem, em muito maior escala, as políticas assistencialistas dirigidas aos mais pobres; para impedir a reprimarização de nossos padrões comerciais a partir do privilégio inequívoco ao agronegócio; e para evitar regressões injustificáveis na área ambiental - processos estes que correram em paralelo à desarticulação da esquerda e à desmobilização social, em função do prestígio histórico do presidente-operário e da forte capacidade de aglutinação via Bolsa Família. Basta que se tenha como parâmetro os primeiros meses da nova administração petista de Dilma Rousseff - afinal, um governo gestado pelo anterior e que carrega todas as marcas de continuidade. Não é razoável desprezar alguns acontecimentos notórios que têm se acumulado em 240 dias de mandato, alguns deles concentrados apenas na última semana. Trata-se de fatos tão ou mais relevantes para a cidadania do que a ‘faxina ética’ que a presidente vem promovendo, com quatro ministros e vários auxiliares já fora do páreo. Mas que, lamentavelmente, não recebem nem um décimo dos holofotes que se dirigem aos estridentes atos de caça e demissão dos acusados de corrupção.

 

Reveses na estruturação de projetos básicos e tentativas de retrocessos legais na garantia de direitos sociais não têm faltado desde que a presidente Dilma assumiu o poder. No que se refere aos projetos básicos, ocorreu já há meses o anúncio da privatização de três dos principais aeroportos do país, entre eles Guarulhos em São Paulo e Viracopos em Campinas, com o intuito de garantir os dois grandes eventos esportivos que terão lugar no Brasil. O que certamente trará a reboque contratos polêmicos com empreiteiras e obras conduzidas a toque de caixa. A idéia de ressuscitar a Telebrás para avançar na expansão da internet para camadas populares também já fez água, e quem vai ficar com o filé na condução dessa empreitada certamente serão as concessionárias privadas. Duas situações emblemáticas para o partido sob o qual se elegeu a presidente Dilma, que tem adotado como bandeira eleitoral nos últimos pleitos uma crítica dura às privatizações tucanas.

 

No que se refere aos retrocessos em direitos sociais, nesta semana mesmo os mandatários econômicos do governo declararam que pretendem viabilizar o processo de votação e aprovação do fundo de pensão dos servidores públicos. Em outras palavras, trata-se da conclusão da privatização da previdência pública iniciada por Lula. O que poderia ser mais simbólico de uma reviravolta nas convicções políticas do partido que cresceu ancorado na defesa dos direitos dos trabalhadores do que o ataque à previdência dos servidores públicos?

 

A velha desculpa de que medidas como estas são imprescindíveis em decorrência do elevado déficit público não é nada razoável para aqueles que se dizem situados no campo popular e que, outrora, eram críticos contumazes de argumentos deste naipe. Seriam variadas as citações oportunas para contra-restar justificativas do gênero, mas basta uma referência à proposta orçamentária recém divulgada pelo governo federal para 2012 para se chegar à conclusão de que a questão passa bem ao largo da disponibilidade de recursos. Quase 48% dos recursos do orçamento de 2012 serão destinados à conta de juros e amortizações da dívida, enquanto todos os outros gastos sociais ficarão com 36%, os investimentos novos com cerca de 3% e os servidores públicos, sempre acusados de ‘vilões’, com cerca de 10%. Como constata o economista Paulo Passarinho, em artigo publicado no Correio da Cidadania, “a presidente e o ministro da Fazenda divulgam que reforçarão em 10 bilhões de reais, nesse ano, o superávit primário, eufemismo para designar a parcela do Orçamento da União destinada ao pagamento de juros (...) Basicamente, portanto, o que Dilma pretende viabilizar é ‘trocar’ a ditadura dos juros altos pelo garrote vil do controle dos gastos públicos”.

Estes são apenas alguns dos exemplos que, a depender de como se dirige o olhar para a realidade, desmontam factualmente e incisivamente a idéia do ‘governo em disputa’. E mesmo que algumas dessas medidas pudessem ter justificativas pontuais, o ‘conjunto da obra’ muito dificilmente teria condições de ser explicado por aqueles que ainda acreditam que haja chances de disputar os rumos do governo.

 

Sem confundir as saídas

Dentre os presentes no debate acima mencionado, esteve também o coordenador nacional do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, João Paulo Rodrigues. Como um dos porta-vozes do movimento de maior alcance e relevância no Brasil atualmente, João Paulo fez colocações que apontam para as dificuldades impostas não somente pela atual conjuntura mundial conturbada e de descenso na luta de massas, mas também, e principalmente, pela ambigüidade a que foram conduzidas as esquerdas e as massas após a chegada de Lula ao poder.

 

Sem chegar a descrever mais especificamente quais seriam as alternativas atualmente pensadas pelo MST em sua relação com o governo, o dirigente é incisivo em afirmar que o governo Lula criou uma confusão significativa na esquerda. Ela estaria hoje cindida entre um adesismo que beira o oportunismo, e que dificulta a organização autônoma dos trabalhadores, e um esquerdismo pequeno-burguês, próximo à ‘esquerda auto-legitimadora’ citada por Arbex, e que se acharia a ‘dona da verdade’. O caminho de ‘melhorismo social’ trilhado pelo governo é ainda destacado como um empecilho ao enfrentamento do capital por parte dos movimentos sociais.

 

Estes seriam ingredientes essenciais do atual período histórico avaliado por João Paulo, originários de uma esquerda e de um movimento social altamente fragmentados e da ausência de um projeto comum, uma vez ‘defasado’ o Projeto Democrático Popular. Cair no adesismo, ou no sectarismo, constituiriam ambas péssimas alternativas.

 

Apontar saídas não é mesmo algo fácil, e não poderia ser este o objetivo aqui. De todo modo, em um momento histórico em que se aguçam as contradições, não pode haver espaço para se criarem confusões, mistificações, fugindo à devida e pertinente colocação dos pingos dos ‘is’. Neste sentido, o debate mencionado neste texto parece trazer, em parte, uma dissonância um tanto estéril, uma vez mediante idéias que, se ainda apresentam nuances de proximidade, podem estar há muito caminhando para pólos opostos. Uma impossibilidade lógica de conexão entre elas não deve, portanto, ser desprezada.

 

Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, o debate se reveste de relevância na medida mesma em que trouxe à tona uma realidade que poderia estar esmaecida para aqueles que, há algum tempo, já enterraram suas ilusões com os governos petistas. Reaviva-se a estes a memória para uma vertente de pensamento que ainda vige com vigor em mentes progressistas e/ou à esquerda no espectro político. Algo que, no mínimo, pode ajudar a fugir do etéreo, e também da postura a la ‘arquitetos teóricos de estratégias de mudança’, distante do que ocorre no dia a dia de estudiosos, movimentos e instituições imprescindíveis a qualquer avanço na realidade.

 

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

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