Direito à memória, à verdade e à justiça; dez pontos sob reflexão

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Sergio Muylaert
23/07/2011

 

 

Não se justifica a inquietude que embaraça e impede a solução definitiva para o tema da memória e da verdade. Trata-se de um direito clássico para as conquistas que devem pavimentar o futuro das nações e dos povos e que aperfeiçoa o rol dos direitos humanos por meio da proclamada justiça de transição.

 

O clamor contra todas as formas de violência surge de todos os lados da sociedade brasileira e não há como retardar a iniciativa cujo escopo é a efetivação de um direito indisponível do povo brasileiro, conforme reiteram os especialistas. O esforço da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, ao promover Audiências Públicas nos dias 29 e 30 de junho, constitui avanços substanciais e a relutância é desarrazoada.

 

Será de extrema valia a releitura do ensaio “Raízes da violência” para mostrar os fatos com absoluta atualidade. Com efeito, o pensador e filósofo Roland Corbisier, em 1986, tingiu o horror institucionalizado em sua total dramaticidade ao dizer que a violência tornou-se o nosso pão quotidiano.

 

1) Sob o foco dos clamores acesos o debate é serenado com a lucidez irretocável do texto “E agora, Brasil?”, onde o jurista Fabio Konder Comparato passa a limpo os fatos da história do país para referir recente condenação explícita do Estado brasileiro, na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Impõe-se a passagem do voto pronunciado por Roberto de Figueiredo Caldas, juiz “ad hoc” da referida Corte Interamericana, em final do ano de 2010.

 

2) Nos fundamentos apresentados para sua decisão, o juiz Caldas robustece a pretensão de justiça com a qual a interpretação da CIDH se harmoniza com os propósitos do projeto de lei n° 7.376/2010, remetido pelo poder executivo ao Congresso Nacional, que propõe a criação da Comissão Nacional da Memória e Verdade. Por mais esta razão pesa o voto do juiz Caldas em cujo item conclusivo se reafirma solenemente que “a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas”.

 

3) Será preciso lembrar? Após 47 anos, a mega-operação militar contra o governo constitucionalmente eleito contou com a colaboração de setores civis e com o destacado apoio da mídia, para a ostensiva colaboração com o golpe e, nos fatos que antecederam o movimento das tropas em 1964, já o governo Goulart, quando democraticamente constituído, viu-se forçado a travar queda de braços com o conservadorismo dominante em razão da constante hostilidade de grupos econômicos e de interesses privados.

 

4) Será preciso lembrar? Para que o movimento armado chegasse a usurpar o controle do Estado brasileiro o feitio das práticas adotadas se deu mediante atos de força e estes não se convalidam a luz da doutrina constitucionalista. Ao contrair formas de violência institucionalizada por meio dessas ações, de forma sistemática e por escolha deliberada e sob o comando autorizado, o Estado brasileiro perpetrou a negação dos princípios da ordem jurídica do próprio Estado liberal e, portanto, os efeitos desses atos delituosos se ressentem de tipificação, desde seqüestro, aprisionamento, tortura, estupro e sevícias, bem como desaparecimento forçado de pessoas, práticas redundantes e condenáveis, seja pelo direito penal quer pelo direito internacional.

 

5) Será preciso lembrar? No escopo de positivar estas ações diversos instrumentos desde os Atos institucionais e regulamentos complementares foram utilizados na extensão do nosso direito interno para ampliação dos poderes, ao arrepio da Carta Política de 1946. Cumpre em qualquer tempo, sob a égide do Estado de direito, assegurar aos autores dessas práticas o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, sob pena de se tornar esta mesma ordem jurídica destituída de eficácia. Em síntese, a tentativa de obstrução ao projeto de lei contrasta, por certo, com a honradez das instituições públicas nacionais. Contudo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, enquanto órgão máximo judiciário do sistema de proteção para interpretar e aplicar as normas ditadas pela OEA, deixa patente, a partir da sentença proferida no caso Lund vs República Federativa do Brasil, a ausência de prerrogativas dos autores por estas práticas e atentados aos direitos humanos.

 

6) Será preciso lembrar? Os tratados e convenções de direito internacional, assim como a doutrina moderna e a jurisprudência das cortes internacionais, repelem os crimes de lesa-humanidade e não conferem aos delitos de natureza conexa os benefícios que aos praticados contra o Estado, na forma como interpretou o STF na ADPF n° 153. O instituto jurídico da anistia política, portanto, não se compadece da figura do “perdão” exceto para as vítimas das perseguições políticas desenvolvidas pelo Estado.

 

7) Não se permite a luz do direito vigente fonte interpretativa que materialize a auto-exculpação ou a auto-anistia, razão pela qual o Estado brasileiro, ao conceder anistia política na forma da Lei n° 10.559, de 2002, proclama a reparação com o correspondente pedido de desculpas aos indivíduos que sofreram perseguição política.

 

8) Diante de atitudes que desrespeitam fatos públicos e notórios é preciso, ainda, revisar posição em que certos órgãos dos meios de comunicação do setor privado contrapõem notícias desavindas. Agora mesmo se reafirma que a Comissão da Memória e da Verdade esteja a servir de instrumento polêmico de discordâncias, no que admitem por intocável a realidade ocultada. A idéia sob a qual se diz que a iniciativa do projeto de lei n° 7.376/2010 promove o acirramento de ímpetos é, por inteira, falaciosa, tendente a extirpar do significado do projeto a essência dos termos memória e verdade e assim anular o seu claro objetivo cujos fins são proclamados pelo Estado de direito democrático.

 

9) A tratativa que visa sobrepor ao interesse público os interesses privados, como seja a de ocultação dos fatos, presta-se a confundir o objeto do esquecimento como sinônimo de “anistia”. Vale lembrar a fala do ex-presidente e membro honorário do Conselho Federal da OAB, Dr. Cesar Britto, para quem o termo “anistia” não é amnésia.

 

10) Em que pesem relutâncias ao projeto de lei o alcance dos direitos humanos não permite que no Estado democrático de direito prepondere qualquer descompasso ou descaso. Esses direitos se orientam e se reafirmam mediante o III Programa Nacional de Direitos Humanos para a consolidação da ordem republicana. Com isto, iniciativas para a interdição dos direitos humanos não devem postergar o projeto de reconstituição da memória nacional, verdadeiramente, com justiça.

 

Sérgio Muylaert é advogado em Brasília, membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, vice presidente da Comissão de Anistia (2004-2008), ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e presidente da Associação Americana de Juristas.

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