‘Um novo aeroporto em São Paulo significaria proximidade maior ainda com o caos’

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Valéria Nader e Gabriel Brito
28/07/2010

 

 

Com a era Lula chegando a seu fim, o Brasil se encontra próximo de voltar a discutir políticas para os mais estratégicos setores econômicos, que tendem a incluir fortes disputas, ao lado de acaloradas discussões de fundo ideológico. Os aeroportos, um dos maiores gargalos nacionais, não ficarão de fora das disputas, já que, desde que o interminável ‘caos aéreo’ entrou em nosso cotidiano, as urgências e interesses sobre eles tornaram-se igualmente enormes. Com a obrigação de se reestruturarem ao menos 12 deles (cidades sedes da Copa-14) mais prontamente, o debate pode tomar rumos desvirtuados, haja vista o já escancarado interesse do setor privado em tomar conta dos principais aeroportos e até da Infraero.

 

Para tratar de tema que desperta como poucos a sanha dos interesses econômicos, o Correio da Cidadania entrevistou Carlos Gilberto Camacho, diretor de vôo do Sindicato Nacional dos Aeronautas. Na conversa, ele não poupa os ‘governos de plantão’ pelas políticas aplicadas à aviação nacional, sublinhando a descaracterização da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), mais uma entidade de representação social tragada pelos interesses e conluios privados.

 

Além de apontar o perigo das reformas bilionárias e apressadas para a Copa, Camacho pede para que se ‘repense o país’, revisando-se toda a organização de nossos modais e o duopólio vigente. Também ressalta ser insustentável a circulação de somente aeronaves de grande porte, destacando a importância de companhias regionais, com aviões de menor porte cobrindo trajetos complementares. Para completar, denuncia um assustador quadro de exploração de pilotos e demais trabalhadores do setor, chegando a relatar o caso de uma dupla que, após dias e noites ‘batendo e voltando’, caiu no sono na hora de iniciar o pouso. O detalhe é que foram os próprios profissionais que reportaram o caso.

 

Na entrevista a seguir, o leitor poderá enxergar alguns feixes de luz da caixa preta do nosso setor aéreo.

 

Correio da Cidadania: Nas últimas semanas intensificaram-se as especulações acerca da construção de um novo aeroporto no estado de São Paulo, na cidade de Caieiras, ou outro local, empreendimento que parece já estar atraindo grande interesse de empreiteiras. O que pensa deste projeto?

 

Carlos Gilberto Camacho: O necessário de saber sobre esse novo aeroporto é qual a sua real proposta, o que eles pretendem com outro aeroporto numa cidade que já está saturada, principalmente em termos de transporte, não só aéreo, como terrestre. É muito fácil construir um aeroporto, mas devemos lembrar que tem de se chegar a ele. Não é simplesmente materializar a obra e sair voando.

 

Qualquer ato ou pensamento no sentido de se construir um novo aeroporto na cidade de São Paulo eu considero uma insanidade das autoridades, a não ser que pretendam mesmo abusar de seus poderes e fazer algo que não tem a menor lógica para a cidade.

 

São Paulo tem de ser desacelerada. Um novo aeroporto aqui significaria mais proximidade ainda com o caos, pois esse aeroporto não teria a ver só com a superfície da cidade; teria a ver também com o espaço aéreo. Nós temos hoje três categorias de aeronaves de grande porte operando sobre São Paulo, sendo que a ANAC libera cada vez mais linhas para as empresas aéreas, saturando o espaço aéreo para transporte de grande porte, subdividido em nacional e internacional, além de aeronaves de menor porte e helicópteros, que, aliás, já se tornaram uma loucura em São Paulo.

 

Uma colisão ou um acidente sobre a cidade é iminente, mais hora menos hora pode acontecer.

 

Correio da Cidadania: Mas o que pensa especialmente sobre o arranjo que se pretende para levar adiante um eventual aeroporto, desde a construção até a concessão da operação à iniciativa privada?

 

Carlos Gilberto Camacho: A iniciativa privada pode entrar e participar da forma que achar melhor, mas qualquer aeroporto em São Paulo deve ter uma distância mínima de 200 km da cidade, com as ligações devendo ser feitas com transporte de alta velocidade.

 

Não se pode pensar um projeto de futuro para 10 anos, e sim para no mínimo 50 anos. A cidade de São Paulo, que no presente momento não comporta outro aeroporto, precisaria de um novo a pelo menos 200 km de distância. Algo parecido com 25, 30 km fará a cidade se aproximar dessa localidade rapidinho, tornando-o obsoleto em curto espaço de tempo, com os problemas que já vemos aqui na capital.

 

Correio da Cidadania: Congonhas vive, realmente, no limite novamente, passada a comoção do último acidente em suas cercanias. Já se pensou também em intensificar a utilização do aeroporto de Viracopos em Campinas, criando-se para tal uma estrutura de transportes entre São Paulo e Campinas, de modo a viabilizar o traslado dos moradores da capital. Seria este a seu ver um projeto mais racional?

 

Carlos Gilberto Camacho: Não, nem pensar em Viracopos. Já está saturado em termos de sítio aeroportuário e proximidade de habitações e construções no entorno do aeroporto, não tem como se ampliar. Qualquer aeroporto que se pense hoje para os próximos 30, 40, 50 anos tem de ter um sítio aeroportuário de no mínimo 10 km² de área em cada costado, podendo assim crescer e impedir a construção de toda e qualquer propriedade em torno deste sítio.

 

No entanto, uma área deste tamanho não está contemplada por Viracopos e Campinas nem de perto. Não existe mais área assim num raio de 120, 150 km de São Paulo.

 

Correio da Cidadania: Assim, o mais plausível seria um aeroporto no interior do estado, que se interligaria com a metrópole através do mencionado complemento do transporte de alta velocidade?

 

Carlos Gilberto Camacho: É realmente necessário pensar algo que permita o transporte de alta velocidade. Hoje em dia há trens alcançando 500, 600 km/h. E não pode ser em uma cidade, mas numa conjunção de cidades menores não muito distantes, com áreas disponíveis de 10 km por 10 km, onde o aeroporto poderia se conectar.

 

O que deve ser pensado hoje é o seguinte, levando em conta a preocupação com o quesito desapropriações e citando um exemplo aleatório: a rodovia Castelo Branco, em sua parte central, é praticamente toda gramada, com uma área boa em que um trem de alta velocidade poderia circular sem prejudicar e desapropriar nada. Já existe a área, coloca-se o trem de alta velocidade de 400 km/h numa pista de 200 km e chega-se na capital em meia hora.

 

Eu diria também que no futuro será muito difícil o passageiro andar com aquelas bagagens enormes; elas serão despachadas antes, vôos transoceânicos serão feitos só para transportar bagagens com antecedência ao destino; a própria empresa que fez o contrato de transporte da bagagem recebe-a e entrega-a no destino do passageiro. Dessa forma, o passageiro voará com muito pouca coisa, uma malinha de mão de 5, 7 kg, que é absolutamente suportável para a lógica de transporte aéreo do futuro.

 

E dentro de tal lógica teremos o passageiro chegando praticamente sem bagagem; ele caminha alguns passos, até para relaxar um pouco, embarca no trem dentro do próprio aeroporto e em meia hora chega a São Paulo, Campinas etc.

 

Não tem outra opção, enquanto não inventarem o teletransporte, esse será o recurso ao qual teremos de recorrer.

 

Correio da Cidadania: Acredita que o fato de estar em foco este projeto neste momento, especialmente levando-se em conta o interesse das empreiteiras, tem relação com o próximo torneio de 2014, insinuando um cenário em que se tornará a cada dia mais evidente a forte cobiça do capital privado pelas obras necessárias para o evento, bem como pelas benesses públicas para levá-las a cabo?

 

Carlos Gilberto Camacho: Considero que é enxergar muito pequeno o país todo ficar mobilizado em torno de uma Copa do Mundo. O evento dura algumas dezenas de dias, depois vai embora e nem sempre o que fica é bom. Foi um dos grandes erros do Brasil aceitar sediar a Copa, o que leva a um enorme volume de justificativas para o discurso de políticos, empresários, empreiteiros, os interessados de plantão em tais momentos.

 

A grande jogada da Copa do Mundo, essa sim, é que podemos fazer a discussão toda de forma mais ampliada. Mas tem coisa mais importante, o Brasil tem de se preocupar com seu tamanho, sua dimensão, seu transporte regional, com as alimentadoras que as grandes empresas aéreas não permitiram entrar no circuito... Como pode um país do tamanho do Brasil ter suas políticas aéreas elaboradas pelas empresas, militares e organizações que sabemos o que são? Impossível de se pensar dessa forma.

 

Precisamos discutir de forma abrangente, precisamos discutir o Brasil em termos regionais. Tem empresa regional que possui uma única aeronave. Nos EUA, uma empresa regional pode ter 400 aeronaves, fazendo conexões em cidades menores para as companhias maiores. Se tal modelo fosse aplicado aqui, o cidadão poderia sair de Mossoró e terminar interligado com os grandes centros internacionais e do Brasil.

 

A discussão de políticas aéreas não pode continuar assim. Tem de se discutir transporte aéreo, conexão de todos os modais... o que não tem sido feito. A discussão de políticas da área no país tem sido levada adiante de forma irresponsável, incipiente, algo impensável num país com mais de 6 milhões de km². É impossível, ainda mais com a costa que temos.

 

É terrível, o Brasil precisa ser repensado.

 

Correio da Cidadania: E que conseqüências poderemos esperar do anúncio do governo de que irá investir R$ 5,5 bilhões nos aeroportos das cidades sedes da Copa, com créditos fornecidos pelo BNDES? Acha necessária a entrada do setor privado em projetos delineados com dinheiro público?

 

Carlos Gilberto Camacho: O setor privado está na cena, de forma inconteste, e não podemos discutir essa realidade. O que deve ser discutido é o que é bom para o país. As rodovias do país foram privatizadas e a mesma Castelo Branco de 30 anos atrás está ali. Levaram quase três décadas para terminar uma ponte que começou na entrada da rodovia.

 

Ou seja, o nosso país tem de ser pensando seriamente, temos uma herança a deixar aos que ainda nem nasceram. E o que assistimos é ao interesse particular se apresentar com projetos mirabolantes por conta de uma Copa, que, como eu disse, dura 30 dias e depois se vai.

 

Precisamos parar para pensar de forma progressiva, futura, elaborar um projeto de Estado nacional para 40, 50 anos... O projeto de país da China é de 100 anos, já o nosso não passa de 5 anos. A linha pela qual vai caminhar o país depende da mera eleição de um presidente. É preciso um projeto continuado, não essa coisa de cada governo fazer o seu projeto particular.

 

Correio da Cidadania: O que pensa de outras medidas que têm sido aventadas já há mais tempo, tais como a mudança na gestão dos aeroportos de Viracopos e Galeão, com sua concessão à iniciativa privada, bem como a privatização da Infraero?

 

Carlos Gilberto Camacho: Mas sempre foi assim. Primeiramente, não se consultou o povo brasileiro antes de se privatizar o monte de coisa que privatizaram nos últimos tempos. Os governos de plantão que decidem. E alguns têm muita experiência na questão. O povo, verdadeiro dono deste país, não é chamado para a discussão. É como no exemplo da telefonia.

 

Dizem que agora está boa, mas melhorou coisa nenhuma, a telefonia no Brasil é discutível, poderia estar muito bem se estivesse na mão do Estado. Outro caso é o da grande mineradora (Vale), altamente lucrativa e que foi privatizada, em outra discussão da qual o povo não participou, sem audiência pública, discussão no Congresso... O país tem sido administrado de forma incipiente, irresponsável. Não importa se são governos de direita ou esquerda (aliás, de esquerda não existe).

 

Com esse governo que está aí, uma colcha de retalhos, que de esquerda não tem nada, o processo caminha mais devagar. Se assume um governo mais privatista, fazem o processo num instante, sem a menor dúvida, e estaremos com todos os aeroportos privatizados. E ainda ‘transformam’ a Infraero em algo que aparente ao público não ter a menor condição de administrar aeroportos. De um dia pra outro, ela passará a absolutamente improdutiva, questionável, para que se possa privatizá-la. É assim que funciona. Se ganhar um governo privatista, vamos por esse caminho.

 

Correio da Cidadania: Enfim, a seu ver, quais soluções que se colocariam como mais oportunas, a médio e longo prazos, para o caos aéreo no país? Acredita que possa se armar em torno a elas uma vontade política de modo a dar-lhes concretude?

 

Carlos Gilberto Camacho: Uma questão não discutida: por que o transporte aéreo no Brasil está do tamanho que está? Uma empresa com 140 aviões, outra com 120, 400 e poucas aeronaves de médio e grande porte fazendo transporte nacional, pouquíssimas ou nenhuma empresa fazendo transporte regional... Em países desenvolvidos, o transporte é feito até em aeronaves de 4 passageiros, meia dúzia. Algumas de 30 passageiros.

 

A Embraer tem uma planta de avião que seria o ideal em áreas em que os aeroportos não são tão privilegiados, com aeronaves de 30 passageiros. E a planta desse modelo está abandonada numa cidade do interior.

 

Todos os aviões da Embraer poderiam atender tranquilamente às demandas nacionais. Mas a grande ganância das empresas em trazer aviões para cá fala mais alto. Por isso digo que a idéia de aumentar o capital externo de 20% para 49% já é praticada há muito tempo. Eu duvido que exista uma empresa genuinamente nacional, mesmo dentre as grandes. A gente só não consegue comprovar, pois é tudo muito bem feito. São os senhores do dinheiro, e eles não vão apostar seu bom dinheiro em algo que não dê retorno.

 

Mas já faz algum tempo que o Brasil é um grande consumidor de aeronaves fabricadas lá fora; França, EUA, leste europeu... Por exemplo: em Congonhas, toda e qualquer aeronave da Embraer poderia estar operando tranquilamente, incrementando significativamente o nível de segurança de um aeroporto altamente crítico. Mas o que acontece é que operam aeronaves de 65, 70 toneladas, com velocidade de aproximação incrivelmente grande, num aeroporto que não tem área de escape, nem longitudinal, com o prolongamento das cabeceiras de pouso e decolagem, nem lateral.

 

Se aquele avião que se acidentou em julho de 2007 tivesse saído 5 minutos antes da pista, teria feito um literal strike em outras aeronaves que estavam estacionadas ali no momento. Não seriam 200 vítimas, e sim 400, 500, pois o aeroporto de Congonhas opera na ilegalidade. E a ANAC está dentro disso, é a grande patrocinadora da farra do boi em que foi transformado o transporte aéreo do Brasil. Se você, repórter, constituir uma empresa e solicitar uma linha, a ANAC concede. Nem verifica se você tem trabalhadores suficientes para atender à demanda.

 

O que acontece hoje em termos de transporte aéreo, particularmente com as duas empresas que controlam 90% do volume de transporte aéreo no Brasil, é que não há número suficiente de trabalhadores, tripulantes, para atender a demanda. Estão levando os trabalhadores à loucura. Nós teremos brevemente um acidente de gravíssimas proporções exatamente por problema humano. Depois é fácil, a culpa será do piloto, num instante resolverão o problema. Todo mundo, inclusive seguradoras, entra nessa linha e a culpa fica para o piloto.

 

E apenas esse sindicato e outras entidades que representam os trabalhadores acompanham tal situação, mais ninguém.

 

Correio da Cidadania: Quer dizer que, além de tudo, continua correndo solta a exploração dos trabalhadores, com jornadas exaustivas, algo que para um leigo soa muito temerário quando se trata de transporte aéreo.

 

Carlos Gilberto Camacho: Temos mais de 600 denúncias ao longo de 6 meses de trabalhadores declarando desespero! Estamos ultrapassando o número da besta, passando de 666 denúncias. De uma empresa especificamente, tenho recebido declarações de literal desespero. "Não consigo dormir, três, quatro noites voando, chego em casa pensando que vou descansar e sou ‘solicitado’, sob forte pressão e coação, a efetuar mais um bate-volta...", relatam. E é num bate-volta desse tipo que teremos um acidente.

 

Hoje (22/07), abri a denúncia de número 644, em que os dois pilotos declaram ter dormido na aproximação para pouso! Tanto era o cansaço desses trabalhadores que eles DORMIRAM instantes antes de pousar!

 

A ANAC tem de ver isso. Mas tente fazer uma denúncia à ANAC e aguarde a resposta. Sentado, pois vai demorar muito tempo.

 

Portanto, vivemos um literal caos no transporte aéreo, a ANAC declara-se senhora e soberana para praticar tais procedimentos, enquanto não fazemos a discussão de segurança do transporte aéreo de forma efetiva e absoluta; não discutimos o transporte aéreo como um produto necessário ao Estado, com crescimento sustentável do transporte aéreo.

 

A maior empresa nacional estará com 170, 175 aviões em no máximo dois anos. É uma loucura! Multiplique por 150, a média de assentos, e veremos quantos assentos estão sendo fornecidos. É irreal, tem alguma coisa absurda acontecendo por trás! Não é possível, o Brasil de um dia para outro adquiriu a mesma concepção de transporte aéreo dos EUA, onde a média de passageiros é grande, já que um passageiro voa 2, 3 vezes por ano, enquanto que nós, em média, temos 0,4 vôos por ano. Ou seja, são passageiros casuais, que demorarão a tomar um avião de novo. Assim, há algo errado, que continua em andamento, porque a ANAC, que foi criada para representar o interesse do povo brasileiro, representa hoje o interesse das empresas aéreas, não somente as nacionais.

 

E o acordo feito agora com a Europa é terrível, pois a União Européia terá vantagens e prerrogativas no modal brasileiro, pegando passageiros nossos aqui dentro e levando para outra localidade nacional. Não bastasse isso, temos a questão da homologação: o avião que for homologado lá fora não precisa passar pelo mesmo procedimento sob a ANAC. E o mesmo vale para aeronaves vendidas pela Embraer à Europa. É terrível, pois beneficia só a Embraer, mas deixa entrar no país muito cacareco, produto mal acabado e com problema de projeto, que não passará pelo processo de homologação da ANAC.

 

E tal discussão também não está sendo feita com o povo brasileiro.

 

Correio da Cidadania: Dessa forma, diante do quadro eleitoral, é muito difícil nos depararmos com um projeto nacional no setor que suplante esses interesses e pressões empresariais.

 

Carlos Gilberto Camacho: Com um candidato ganhando fica ruim, com o outro, fica pior. Não há o melhor a escolher.

 

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

 

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