Atenas à brasileira

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Ari Marcelo Solon
18/05/2010

 

O ano é 404 a.C. Os cidadãos de Atenas assistem consternados à demolição das muralhas da cidade, levada a termo pelo exército de Esparta, que ocupara a acrópole. Fora o resultado de décadas de sangrento confronto entre as alianças chefiadas por aquelas duas cidades-estado, conflito narrado com incomum consciência de seu contexto político pelo general ateniense Tucídides em sua ‘História da guerra do Peloponeso’. A destruição das estruturas defensivas da pólis simbolizou a suprema humilhação que foi a perda da liberdade política do império ateniense e sua subjugação ao inimigo que impôs o governo dos Trinta Tiranos.

 

À derrubada dos muros da cidade e à instituição da tirania pró-Esparta seguiu-se violenta guerra civil que, ao cabo de nove meses e inúmeras vidas atenienses perdidas, resultou enfim na restauração do regime democrático da pólis. Enfraquecido em seu nascedouro pelas perdas humanas decorrentes do conflito fratricida, o regime democrático restituído optou prontamente pela adoção de uma política de apaziguamento, mediante a promulgação de uma lei de Anistia, em 403 a.C., cujo texto explicitamente instruía os cidadãos a retomar suas vidas e a não mais invocar os infortúnios do passado.

 

Com efeito, estudos filológicos apontam para a evidente correlação entre os termos anistia e amnésia, o que denota de forma inegável ser o fundamento da anistia ateniense a própria noção de esquecimento. Com a anistia, o regime ateniense exige de seus cidadãos uma magnanimidade que beira o limite do sobre-humano, impõe a renúncia a qualquer exigência de punição para aqueles que lhes causaram tantas dores e prejuízos de todas as ordens.

 

A democracia premiou seus implacáveis adversários com a proibição da punição e da lembrança das atrocidades cometidas. Ao mesmo tempo, o Estado tolheu a si próprio de uma de suas atribuições mais primordiais: a prerrogativa de fazer a justiça.

 

Paradoxalmente, pelo bem da democracia, buscou-se impedir e esquecer a celebração de sua própria afirmação, agindo com desnecessária benevolência perante aqueles que não hesitaram em cometer todas as atrocidades para suprimir da memória o próprio espírito democrático.

 

O jurista alemão Carl Schmitt, em 1949, publica o artigo Amnistie oder die Kraft des Vergessens (Anistia ou o poder do esquecimento), no qual endossa a lei ateniense, que reputa a primeira aparição do termo anistia na linguagem humana, corroborando-a ao concluir ser a anistia exatamente o ato do esquecimento, como já adianta no título do texto. Para Schmitt, este esquecimento seria necessário para que se evitasse um ciclo interminável de vinganças em nome do direito, ao mesmo tempo em que se permitisse ao perdão operar um papel de significância na construção da nação.

 

Neste sentido, o discurso da conciliação, que enfatizou a necessidade de uma anistia para que fosse possível a transição eficaz para a democracia, liga dramaticamente o Estado brasileiro, via Schmitt, à velha Atenas. Isto se verificou de maneira cabal com a decisão proferida no último dia 29, no bojo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, que atacou a nossa Lei da Anistia (Lei 6.683/79).

 

Do voto do relator, ministro Eros Grau, bem como dos demais ministros que se puseram contrários à revisão da lei, percebe-se claramente que o alcance dos argumentos defendidos pelos atenienses não se limita a uma longínqua retrospectiva histórica, mas se mostra em estreita conexão com a mentalidade presente.

 

Do teor de referidos votos se colhe, por exemplo, que "a anistia ampla, geral e irrestrita representa o resultado de um compromisso constitucional que tornou possível a própria fundação e a construção da ordem constitucional de 1988"; ou ainda, que "é perdão, é desapego a paixões que nem sempre contribuem para o almejado avanço cultural. Anistia é ato abrangente de amor sempre calcado na busca do convívio pacífico dos cidadãos".

 

A anistia ateniense, com sua opção por esquecer o passado e não punir os criminosos, renunciou à própria noção de democracia e se mostrou inadequada aos propósitos cívicos da pólis, que apenas fizeram declinar ao longo do século posterior. No fim das contas, no momento em que a fé na justiça se esvaiu por completo, aquele mesmo poder que a lei buscava conservar se voltou contra si mesmo para devorar e exaurir aqueles que o praticavam.

 

Ari Marcelo Sólon é professor do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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