Índios guarani vivem situação de extermínio silencioso

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Gabriel Brito, da Redação
01/04/2010

 

Um recente relatório da organização indigenista Survivor International (ver aqui) trouxe novamente à luz a deplorável situação humanitária vivida pelos índios Guarani e Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul. Como se sabe, há milhares de indígenas vivendo em condições absolutamente degradantes enquanto esperam, à beira de estradas, pela demarcação de seus territórios, como ordena nossa Constituição.

 

Em entrevista ao Correio da Cidadania, a professora do Núcleo de Estudos da População (NEPO) da Unicamp, Marta Maria Azevedo, que realiza trabalhos com as comunidades Guarani, nos oferece um assustador quadro no estado do Centro-Oeste, definido por ela como "o mais anti-indígena do país".

 

Com um vasto território, não é por falta de espaço que não se concedem as terras devidas à mais populosa etnia indígena no país. No governo federal, algumas tentativas vêm sendo feitas para melhorar a questão territorial, com o envio de grupos de trabalho da FUNAI para tentar demarcar algumas áreas novas. Porém, essas iniciativas carecem de aceitação no estado do MS devido ao modelo de desenvolvimento implementado através do agronegócio, que logicamente tem interesses divergentes com relação aos povos indígenas.

 

Na entrevista a seguir, Marta nos relata a difícil realidade de violência, crimes e poder dos proprietários de terra.

 

Correio da Cidadania: Qual a situação real dos índios Guarani e Kaiowá em todo o estado do Mato Grosso do Sul? Em que condições os indígenas se encontram, com suas sempre altas taxas de suicídio, que envolvem até jovens?

 

Marta Azevedo: A situação dos Guarani no Mato Grosso do Sul é muito complicada, pois há muitos anos eles vêm lutando para demarcar novas áreas, conseguindo muito menos que o necessário para sua sobrevivência.O MS é um estado bastante agrário, com muitas fazendas, o agronegócio e um modelo de desenvolvimento que não incorpora os povos indígenas presentes nesse estado. São, portanto, interesses muito fortes, os quais os indígenas e a FUNAI têm tentado enfrentar com muitas dificuldades para melhorar a vida das suas comunidades.

 

Eles, de fato, têm registrado altas taxas de suicídio, saída praticada por conta da falta de perspectiva de vida dos últimos 15, 20 anos. Ninguém sabe ao certo, de forma muito detalhada, como andam essas taxas de suicídio. A Funasa (Fundação Nacional de Saúde) diz que elas estariam baixando, mas eu não teria essa certeza porque precisaríamos das estatísticas desde os anos 80. E somente possui estes dados o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que é quem acompanha há muitos anos essa questão.

 

Outra coisa que acontece ultimamente, e que nos alarma mais ainda, é a situação das crianças e suas famílias, que têm dependido de cestas básicas tanto do governo estadual quanto da FUNASA. Seria importante pensar e planejar saídas para não se manterem essas políticas ‘ad infinitum’. Ou seja, as cestas básicas são extremamente necessárias e importantes, mas não devem ser vistas como políticas a longo prazo, e sim como emergenciais.

 

Enfim, estamos diante de toda uma situação realmente muito ruim, inclusive para o país. O que nos assusta também é a enorme violência que vem sendo praticada contra as comunidades que lutam pelas suas áreas tradicionais, na forma de assassinatos e esquartejamentos. Após as mortes, os corpos são encontrados dentro de sacos de lixo, em geral em fundos de rio ou locais de difícil acesso – isso quando são encontrados.

 

E foi um assassinato ocorrido dessa maneira, na Argentina, que mais me alarmou, na região de Misiones, fronteira com Paraguai e Brasil. Existem vários grupos Guarani na região que paulatinamente saem do Paraguai e vão para a Argentina. Isso porque o agronegócio brasileiro chega ao Paraguai e ocupa terras tradicionalmente pertencentes aos Guarani. Inclusive, há casos em que se borrifa veneno nas plantações nessas fazendas, atingindo os índios Guarani e suas aldeias, como ocorreu no segundo semestre do ano passado, deixando vários deles enfermos. Apesar de não sair na grande mídia daqui, esse assunto foi divulgado e comentado no Paraguai.

 

Ou seja, o agronegócio chega ao Paraguai, expulsa os Guarani, que vão para o norte da Argentina. Dessa forma, na região de Misiones, há um boom de assentamentos Guarani, onde houve uma criança assassinada recentemente.

 

CC: Qual é, mais exatamente, a rotina desses indígenas? Que tratamento eles recebem das autoridades, mídia e demais populações locais?

 

MA: No MS existem três situações muito diferentes. Os Guarani são o povo indígena mais populoso. Seus três grupos, os Kaiowá, Nhandeva e Mbyá, totalizam mais de 50 mil pessoas.

 

No MS, estão presentes os Ñandeva e os Kaiowá. As realidades são distintas no seguinte sentido: aqueles que estão nas reservas mais antigas, demarcadas no começo do século 20, ainda no tempo do Marechal Rondon, vivem uma situação complicadíssima, pois as reservas estão superlotadas. Há reservas de 2000 hectares com população de 5000 pessoas, uma densidade demográfica de cidade grande praticamente.

 

Assim, eles não têm lugar para a roça e precisam sair da reserva para trabalhar nas fazendas ou usinas próximas, onde conseguem emprego, para depois voltarem às reservas. Isso ainda provoca uma separação familiar difícil para os homens e mulheres. Por outro lado, eles têm pelo menos o atendimento da Funasa/Ministério da Saúde, têm escola, enfim, uma atenção maior, embora seja muito ruim o acesso à terra.

 

Há outra situação, que, a meu ver, é um pouco melhor: é a daqueles localizados em terras indígenas demarcadas na década de 80 ou depois, que são as áreas ‘novas’, como chamamos. Possuem tamanho mais adequado aos grupos familiares de uma comunidade. Eles têm atendimento da Funasa, da FUNAI e uma maior extensão de terra, onde ainda é possível fazer agricultura, um pouco de coleta e caça.

 

A pior situação é a dos assentamentos em beira de estrada, mais ou menos semelhantes àqueles do MST. Com o agravante, no entanto, do enorme preconceito existente no MS em relação aos Guarani, que eram, e às vezes ainda são, chamados de bugres. Desses assentamentos, a maior parte está nas beiras de estradas; outros, em reservas mais antigas, muitas vezes sem acesso à água, submetidos a diferentes formas de violência. Os que ficam em tais condições não têm às vezes acesso à saúde, pois a Funasa não consegue atendê-los ou não pode. Tampouco têm acesso à escola indígena. Dessa forma, as crianças vão às escolas das cidades mais próximas, onde sofrem preconceito; não têm como lavar roupa, não têm comida...

 

Esses são os que realmente sofrem a violência que mencionei. Por parte do governo, a FUNAI estruturou alguns grupos de trabalho (GT), a fim de propor novas áreas. Temos, portanto, alguma esperança com esses novos GTs que foram para lá.

 

CC: O que se pode dizer do relatório da Survivor International recém-entregue à ONU, listando toda sorte de mazelas na vida dos Guarani? Como você acha que deveria ressoar em nossa sociedade?

 

MA: Acho que quanto mais pudermos veicular a situação dos Guarani no Brasil todo e internacionalmente, melhor. Há uma certa valorização da questão indígena por parte da opinião pública, mas com enorme desconhecimento da sua situação no MS.

 

Creio que o estado do Mato Grosso do Sul é o estado mais anti-indígena do Brasil. É completamente diferente do Mato Grosso, Amazonas, onde o preconceito já diminuiu.

 

Precisamos fazer uma campanha naquele estado, principalmente nas escolas, com os alunos de ensino fundamental e médio. Acredito muito nas mudanças que vêm aos poucos e que são trabalhadas através da educação.

 

CC: Qual tem sido a atuação dos governos, nas três esferas, na resolução das demarcações de terra e demais direitos exigidos pelos indígenas?

 

MA: No que diz respeito à política de educação, no Brasil, ela é implementada pelos estados ou municípios. Portanto, de maneira geral, é necessário um apoio maior à educação escolar indígena. Existem cursos de formação de professores Guarani e Kaiowá, numa boa iniciativa implementada pela Universidade de Dourados.

 

Mas falta muita infra-estrutura, além de investimentos, nas escolas. Falta também consciência, por parte dos nossos governos e da nossa sociedade como um todo, de que os povos indígenas em nossos territórios são uma riqueza para o Estado brasileiro.

 

Trata-se da mesma questão de Roraima, quando diziam: ‘há um problema, que são os índios’. Não se trata de problema. Temos que, cada vez mais, trazer à cidadania brasileira a idéia de que essa população tem muito a nos ensinar. Temos o privilégio de conviver com essa população, sua sabedoria e modos de vida, podendo aprender com eles. Nunca podemos encarar a questão como um problema ou uma barreira cultural, como ouço muitas vezes de alguns serviços de saúde. Esta população tem culturas, línguas diferentes, uma riqueza imensa.

 

E nós podemos aprender com essas línguas e culturas. Temos 50 mil guaranis no Brasil e ninguém fala a língua deles, que são obrigados a falar português, a língua do dominador. Não ficamos bravos quando um estrangeiro vem aqui trabalhar e não sabe falar nossa língua? É a mesma coisa em relação aos indígenas. As pessoas que trabalham com saúde e educação indígena têm de aprender o mínimo das línguas e culturas indígenas, de modo que possam respeitá-las, pois aquilo que não conhecemos não conseguimos respeitar.

 

Portanto, acho que os serviços de educação e saúde direcionados aos Guarani e Kaiowá, embora estejam melhorando a partir de boas iniciativas, ainda deixam muito a desejar. Há ainda muito a ser feito, o que exigirá vontade política.

 

CC: Que interesses mais específicos impediriam a resolução mais rápida de tais impasses e também a inserção das comunidades indígenas no processo econômico regional, uma vez que a produção de suas terras também poderia se inserir na economia de mercado?

 

MA: Na verdade, nas reservas antigas, quase não há espaços para produzir. Nas terras indígenas onde existem áreas de roça, como no Alto do Solimões, os grandes provedores de alimentação da cidade são os indígenas, que produzem para os mercados regionais.

 

No MS, é muito urgente fazer, por parte do governo federal e estadual, mesas de concertação, discussão, de produção de consenso, que poderiam ser paritárias. Não tem existido um diálogo sistemático, como essas mesas, onde as idéias de todos os cidadãos possam ser expressadas.

 

Já avançaríamos muito com uma medida dessas. Poderia ao menos reduzir um pouco essa violência tão grande que há por lá. É necessária alguma mediação de conflitos, talvez com especialistas.

 

CC: Como tem sido a solidariedade a esse movimento? Além do engajamento dos guaranis da Bolívia, Paraguai e Argentina, há um movimento forte por parte de outros atores da sociedade civil, ou a luta dos índios é isolada?

 

MA: No MS, existem muitas iniciativas por parte das universidades e alguns grupos de apoio aos índios, mas ainda há pouco material de apoio e de informação para as escolas dos não indígenas.

 

O que podemos fazer é incentivar matérias que saiam na mídia e expressem solidariedade. Os Guarani, por sua própria característica cultural, não possuem uma organização unificada, onde se possa falar com algum presidente. Não existe isso, justamente por serem Guarani.

 

Assim, o que devemos fazer é veicular cada vez mais material em português e tentar influenciar mais escolas do estado a estudarem um pouco mais sobre eles.

 

Temos de abrir cada vez mais o leque, aprender as línguas, além de divulgar na internet e outras mídias, já que não há muitos tele-centros ou sites sobre o tema.

 

CC: O processo eleitoral que teremos neste ano traz esperanças, angústias, que sentimentos aos povos da região? Há alguma perspectiva de melhora na luta desses povos ou os dias que lhes esperam se mostram sombrios?

 

MA: É preciso de tudo um pouco, ou seja, os novos governos vão enfrentar grandes desafios, mas também vão herdar muitos bons programas aos quais é preciso dar continuidade. Por exemplo, a questão da documentação de toda a população indígena.

 

Gostaria muito que os próximos governos federal e estadual mudassem essa situação. Mas gostaria muito mais que a questão indígena não fosse objeto de trabalho e reflexão por parte de um partido só, pois não se trata de uma questão partidária. Claro que os modelos e tratamentos da questão serão diferentes em cada partido. Quanto a isso, tudo bem.

 

Nesse sentido, acho que a questão indígena está mais bem incorporada no projeto de governo da Marina Silva atualmente. Gosto muito do PT e do governo do Lula, e espero que um eventual governo Dilma consiga articular tal questão um pouco melhor no Mato Grosso do Sul.

 

Tenho muita esperança, mas o que gostaria de verdade é que esta não se tornasse uma questão partidária. E penso que talvez seja isso que aconteceu no Mato Grosso do Sul. A questão indígena é humanitária, devemos ter uma visão mais larga a respeito do assunto.

 

Gabriel Brito é jornalista.

 

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