Ao não denunciar pedofilia eclesiástica, Igreja incorre em crime de ‘Obstrução de Justiça’

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Mário Maestri
22/03/2010

 

No dia 21 de março, na mensagem tradicional da praça São Pedro, em Roma, o papa Ratzinger defendeu a necessidade de sermos "intransigentes com o pecado (...) e indulgentes com os pecadores". A declaração piedosa foi vinculada pela imprensa à carta publicada na véspera aos "Católicos da Irlanda", sobre as denúncias de graves e freqüentes crimes sexuais contra crianças por parte de padres e religiosos. A carta papal foi publicada em momento de grandes dificuldades do Vaticano. Foi lida como resposta às crescentes denúncias de crimes de pedofilia eclesiástica – e seu encobrimento –, que não cessam de se avolumar na Irlanda, Alemanha, Holanda e Áustria, após causarem enormes estragos à Igreja nos Estados Unidos.

 

Na Alemanha, terra do pontífice, 23 das 26 dioceses já foram atingidas por denúncias de casos de pedofilia clerical. E, mais e mais, as denúncias aproximam-se do papa alemão, apesar dos desmentidos explícitos do Vaticano. O monsenhor George Ratzinger, irmão do pontífice, inquirido sobre crimes de pedofilia ocorridos na instituição que dirigiu, de 1964 a 1994, afirmou que jamais fora informado sobre eles. Reconheceu que esbofeteava crianças sob sua autoridade. Mais antigas, as acusações ao hoje bispo de Roma referem-se ao encobrimento direto de, ao menos, um crime contra um menor. Mais grave ainda, denunciam a orquestração realizada por Ratzinger para que os bispos de todo o mundo encobrissem tais fatos.

 

Em 1979, o então bispo Ratzinger limitou-se a determinar a tradicional transferência e terapia psicológica quando informado que padre sob sua autoridade embebedara e abusara de menino de onze anos. A polícia não foi informada e o sacerdote reincidiu, a seguir, nas agressões. Nos anos 1990, Ratzinger, agora prefeito da poderosa "Congregação pela Doutrina da Fé", fundada em 1662, época em que foi conhecida como Inquisição, foi acusado de não atender às repetidas denúncias de ex-membros da Legião de Cristo, agredidos sexualmente quando meninos e seminaristas pelo padre Marciel Maciel. O papa Wojtila apresentara o fundador daquela congregação integralista como exemplo para a pastoral da juventude.

 

Fundada em 1941, no México, para "estabelecer o reino de Cristo na terra", a riquíssima congregação tem hoje ramificações em mais de trinta países. Apenas em 2006, com o conhecimento universal das ações pedófilas e galantes do sacerdote hiper-devasso, Marciel Maciel, já caquético, às bordas da sepultura, foi convidado por Ratzinger a abandonar a direção da congregação para se dedicar à "oração e penitência". Mais grave ainda teria sido a ação de Ratzinger, em 2001, ao investigar, por ordem do papa Wojtyła, sempre como prefeito da Propaganda Fide, as agressões sexuais e torturas de crianças e adolescentes por padres. Determinou confidencialmente aos bispos que os atos fossem investigados, "da maneira mais secreta possível", sob "silêncio perpétuo" e "segredo absoluto". Proibiu, sob pena de excomunhão, que fossem comunicados à Justiça.

 

A longa carta pontifical aos católicos da Irlanda foi saudada pelas autoridades eclesiásticas como resposta conclusiva àqueles sucessos. As associações de vítimas da pedofilia eclesiástica expressaram, unânimes, o enorme desapontamento com a mesma, pois não assinala os nomes dos responsáveis; não determina devassa dos abusos; propõe inexplicavelmente que Ratzinger teria conhecido os fatos, como a população irlandesa, quando tornaram-se públicos! "Como vocês, fiquei profundamente dilacerado pelas notícias divulgadas referentes ao abuso de crianças e jovens vulneráveis por membros da Igreja na Irlanda (...)."

 

Despertou também espanto as explicações das razões dessa chaga que não cessa de se abrir. Nenhuma palavra sobre o celibato religioso, sobre a misoginia católica, sobre a omertà eclesiástica. Segundo Ratzinger, "nas últimas décadas", a Igreja irlandesa defrontou-se com "graves desafios à fé" devido à "transformação e secularização" sociais, que enfraqueceram a "adesão tradicional" aos "valores católicos", abandonando "práticas" como a "confissão freqüente, a prece quotidiana e o retiro anual". Ratzinger responsabiliza o laicismo e a secularização porque facilitaram denúncias de crimes sexuais que se arrastam impunes há séculos!

 

O grande impasse que não se soluciona nasce da negativa das autoridades religiosas de reconhecerem a autonomia cabal do mundo civil. Não se discute o direito da Igreja de defender que a pedofilia eclesiástica seja sobretudo delito contra a fé e pecado grave, superado através do arrependimento, da confissão e da penitência religiosa. Desde que denunciem, incontinenti, às instâncias civis responsáveis, tais crimes, sobre os quais não possuem qualquer autoridade. Se não o fazem, incorrem em crime de "obstrução da Justiça".

 

Mário Maestri é historiador e professor do curso e do programa de Pós-Graduação em História da UPF.

E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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