Diante da letargia governamental, catarinenses estão entregues à própria sorte

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Gabriel Brito
02/12/2008

 

Talvez o estado brasileiro mais propenso a sofrer com fenômenos naturais, Santa Catarina voltou a ser assolada por fortíssimas tempestades, que já deixaram mais de 100 mortos, destruíram dezenas de municípios e desalojaram quase 100 mil pessoas, configurando a maior tragédia nacional desde o acidente com o vôo 3054 da TAM, em julho passado.

 

Para analisar a situação, o Correio da Cidadania conversou com Afrânio Boppré, ex-deputado estadual e chefe do diretório catarinense do PSOL, para quem não há surpresa na tragédia, pois o povo local já está acostumado com as inundações; surpresa mesmo seria só o momento em que elas ocorrem, pois as cidades seguem despreparadas para conviver com as cheias.

 

Boppré ainda criticou a lenta atuação do governo federal na questão, vagaroso em mostrar apoio e marcando rápidas presenças nas regiões afetadas. Por fim, ele considera que no final mais uma vez falará mais alto a solidariedade do povo, já que suas perdas pessoais não deverão ser cobertas.

 

Correio da Cidadania: Com o conhecido histórico de estragos e tragédias provocados por chuvas no estado, o que testemunhamos foi mais um desastre anunciado?

 

Afrânio Boppré: É a terceira grande tragédia que ocorre nas últimas décadas. Porém, o que vem acontecendo é que, com o adensamento populacional dos últimos anos, o número de atingidos é cada vez maior.

 

Anteriormente, o problema eram as enchentes, quando as águas atingiam níveis fora do normal. Com o passar do tempo, o povo começou a habitar as encostas. Obras foram feitas em áreas de risco, com baixa estrutura. Portanto, o povo, ao fugir das enchentes, se deslocou para outras zonas de riscos.

 

É verdade que a população pobre sempre é mais atingida; no entanto, dessa vez foi tão grave que todos foram atingidos por igual. Nem os ricos se salvaram. Somente quem mora no centro das cidades e em apartamentos pôde escapar. Ainda assim, estão sem luz, água...

 

Quinta-feira passada (27/11), recebi e-mail de um amigo que dizia o seguinte: "As coisas estão bem piores do que sai nos jornais. Estou como a maioria, bem desorientado, pois a coisa foi muito rápida. Em questão de horas, parecia que tínhamos passado por um bombardeio. Logo depois, já havia muita gente machucada, sumida e morta. A situação é um tanto surreal, já que estamos vivendo na prática situações que víamos só na TV, especialmente em filmes. Tanques, ambulâncias, lama, casas que caíram dos morros, pontes que foram abaixo... Aqui em casa a água chegou a quase dois metros de altura e ainda estamos sem água potável, que tampouco se encontra no supermercado. Estamos usando água da chuva e fervendo antes de beber. Banho, só de balde; água, no momento, só em hospitais e abrigos. Não dá para sair na rua, pois com tanta lama podemos cair em algum buraco não visto; os ônibus funcionam com apenas 40% das linhas; estamos com racionamento de combustível e não chegam caminhões para abastecer a cidade. Consegui salvar algumas coisas, mas outras não; perdi 90% dos meus livros por exemplo."

 

E assim tem sido com as informações que recebo de outras cidades; Itajaí, Balneário Camboriú, Ilhota, Brusque, enfim, é um cenário de guerra.

 

E nem estão limpando ruas, calçadas, as cidades. As operações da Defesa Civil consistem em tirar as pessoas das encostas, pois o perigo segue iminente. O risco é permanente, se não caiu uma casa, a seguinte pode cair. Não é um probleminha. Se vier outra chuva dessas na semana que vem, pode ficar ainda pior. Portanto, resta salvar o que sobrou. A situação é complicada.

 

CC: Qual é a cota de responsabilidade das diversas instâncias de governo – municipais, estaduais e federal - em situações desse tipo, em especial, agora, no caso de Santa Catarina?

 

AB: O governo federal estava feito barata tonta, sem entender muito bem o que acontecia. Veio um ministro, fez um passeio aéreo e voltou. Veio outro e fez o mesmo. Um desfile de ministros. Somente após alguns dias veio o Lula. Mas o que ele fez? Sobrevoou as áreas afetadas por uns vinte minutos. Isso depois que tudo havia afundado, já com dezenas de mortos. Ele anunciou a liberação de recursos, que nem são destinados a Santa Catarina em sua totalidade, e concedeu uma entrevista coletiva no aeroporto.

 

O que quero dizer é que o Lula não é mais o mesmo. Não botou o pé no barro, não foi até as casas nem viu a lágrima de ninguém. Apenas sobrevoou por cima da carne seca, como um urubu. Foi apenas uma interferência midiática, sem estabelecer vínculo com o povo. Mas para anunciar a liberação de recursos, não precisava nem sair de Brasília, poderia fazê-lo de lá mesmo. Portanto, aquele Lula, com sua imagem de líder popular, saiu daqui com o sapato limpinho, sem cumprimentar ninguém que havia sofrido com a tragédia.

 

É preciso ver o grau de gravidade dos acontecimentos. Se os municípios não conseguem resolver sozinhos, deve-se estar atento a tal fator. A água não conhece territórios ou entes políticos. Sua fúria não é condicionada pela política. É muito grave o que aconteceu aqui. A coisa só não é pior por conta daquela velha história: só o povo salva o povo. A solidariedade fala alto. Quando os escalões do poder começam a dar atenção, é porque a vitimização do povo já ocorreu, a catástrofe já está instalada.

 

Os relatos são de muita dor. Gente que tava dormindo, acordou com a casa desabando e teve de saltar a janela; depois, outras pessoas colocam para dentro de casa cidadãos desabrigados, oferecem café, cobertor. Assim, a solidariedade vai se disseminando. Com a vontade do povo em resolver as coisas, a situação acaba melhorando um pouco.

 

CC: Muito já se falam dos prejuízos financeiros provocados pelas chuvas e o governo, de qualquer forma, já anunciou valores a serem concedidos como ajuda ao estado em diversas áreas necessitadas – portos, estradas, saúde, defensoria pública, crédito para agricultores. No entanto, até agora nada foi realmente falado a respeito de restituição às vítimas por suas perdas, tanto no aspecto material como pessoal. A população local já pode esperar pelo esquecimento depois que a situação estiver razoavelmente normalizada, tendo de reconstruir tudo por contra própria?

 

AB: Ah, esse dinheiro que já foi liberado não é nada perto do que, por exemplo, o Banco do Brasil gastou para adquirir a Nossa Caixa ou comparado com o que se deu aos banqueiros na crise, com pacotes de ajuda, redução de compulsório, que fica na mão dos bancos, que por sua vez se recusam a dar crédito...

 

Na verdade, essa ajuda é apenas para o conserto de alguns equipamentos públicos. Casas, roupas, televisão, escola, nada disso será reparado. Nunca foi, por que dessa vez será? Em todas as outras inundações foi assim.

 

Para algumas pessoas, é a terceira grande enchente da vida. Quer dizer, tem gente que perdeu tudo pela terceira vez na vida, vai sofrer assim lá longe...

 

CC: Com tanta propensão a esse tipo de acidente no estado, por que só o município de Itajaí tinha convênio firmado com o governo federal para trabalhar na prevenção de tais acontecimentos?

 

AB: É verdade, mas no final o convênio não serviu para nada, pois a cidade foi abaixo. Só os estragos no Porto de Itajaí estão estimados em 200 milhões de reais para sua recuperação. Na cidade toda a realidade é muito complicada, as estradas e ruas viraram rios.

 

Blumenau tem um ‘Projeto Crise’ até inovador, a fim de prevenir as cheias dos rios. Eles estabeleceram núcleos organizados de moradores, por todo o curso do rio, que têm a função de informar a vazão da água, entre outras coisas, através de rádios amadores. Assim, eles passam novas informações a cada 20, 30 minutos. Quando lá em cima do rio a coisa aperta, o pessoal que mora nas partes mais baixas já é informado e pode ficar alerta. Mas isso é na cidade de Blumenau especificamente. E obras, infra-estrutura, essas coisas não existem.

 

O povo é culturalmente preparado para viver com as enchentes. Entretanto, as cidades não. A surpresa não é acontecer, todos sabem que pode ocorrer. Surpresa é apenas o momento em que ocorrerá.

 

CC: A má ocupação do solo por parte da população da região ao longo dos anos não constitui um processo que poderia ter sido, se não evitado, pelo menos amenizado por um mínimo de planejamento urbano?

 

AB: Nesse caso, eu explico por uma visão bem particular. A cidade é anárquica em sua ocupação, difícil de ser planejada, porque está inscrita no mundo capitalista, naturalmente.

 

Assim como o capital é anárquico – por produzir sem medir a capacidade do mercado, gerar crises de produção etc –, a cidade também vira instrumento de tal lógica, organizando-se dentro desse contexto.

 

O capital quer o povo para produzir, mas paga muito mal. Sendo assim, esse povo vai habitar as encostas, morando mal, embrenhando-se nos morros e áreas de risco. Portanto, vejo essa situação também como resultado da relação capital/trabalho, apesar de não ser este o único determinante.

 

CC: Você acredita na hipótese de os saques serem uma forma de protesto, ainda que inconsciente, contra o Estado ou se trata de um caso de convulsão e descontrole sociais praticamente inevitáveis em circunstâncias do tipo?

 

AB: É inevitável. O que acontece numa situação dessas é que o sentido de propriedade privada desaparece. O cidadão vê comida boiando nas ruas e já pega, dorme na casa de pessoas que nunca viu...

 

O sujeito pega "emprestado" um biscoito, um leite etc., e faz o saque. Esse termo, aliás, sugere criminalidade. Mas não é fácil. São situações em que a vida impõe novas condutas e regras.

 

Por Gabriel Brito é jornalista.

 

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