Frente à crise alimentar, que alternativas?

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Esther Vivas
25/11/2008

 

A crise alimentar tem deixado sem comida milhares de pessoas em todo o mundo. À cifra de 850 milhões de famintos, o Banco Mundial soma mais 100, fruto da crise atual. A "tsunami" da fome não tem nada de natural, mas é resultado das políticas neoliberais impostas sistematicamente durante décadas pelas instituições internacionais.

 

Porém, frente a essa situação, que alternativas se apresentam? É possível existir outro modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos? É viável em âmbito mundial? Antes de abordar estas questões, é importante assinalar algumas das principais causas estruturais que têm gerado tal situação.

 

Em primeiro lugar, a usurpação dos recursos naturais às comunidades é um dos fatores que explicam a situação de fome. A terra, a água, as sementes, foram privatizadas, deixando de ser um bem público e comunitário. A produção de alimentos foi deslocada da agricultura familiar para a agricultura industrial e se converteu em um mecanismo de enriquecimento do capital. O valor fundamental da comida tem derivado de um caráter mercantil. Por esse motivo, apesar de que, atualmente, existem mais alimentos do que nunca, não temos acesso a eles, a não ser que paguemos preços cada dia mais elevados.

 

Se os camponeses não têm terras para alimentar-se e nem excedentes para vender, em mãos de quem está a alimentação mundial? Em poder das multinacionais da agroalimentação, que controlam todos os passos da cadeia de comercialização dos produtos de origem afim. Porém, não se trata somente de um problema de acesso aos recursos naturais, mas também de modelo de produção. A agricultura atual poderia ser definida como intensiva, "drogo" e "petro" dependente, quilométrica, deslocalizada, industrial. Definitivamente, a antítese de uma agricultura respeitosa ao meio ambiente e às pessoas.

 

Um segundo elemento que nos conduziu a essa situação foram as políticas neoliberais aplicadas há décadas, com vistas a uma maior liberalização comercial, privatização dos serviços públicos, transferência monetária Norte-Sul (a partir da cobrança da dívida externa) etc. A Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros, têm sido alguns dos principais artífices.

 

Essas políticas têm permitido a abertura dos mercados do Sul e a entrada de produtos subvencionados, especialmente da União Européia e dos Estados Unidos que, vendidos abaixo do preço de custo e, portanto, a um preço inferior ao produto autóctone, acabaram com a agricultura, com a pecuária, com a fabricação têxtil locais. Essas políticas têm transformado os cultivos diversificados em pequena escala em monocultivos para a agroexportação. Países que há poucos anos eram auto-suficientes para alimentar suas populações, como México, Indonésia, Egito e Haiti, hoje dependem exclusivamente da importação neta de alimentos. Uma situação que tem sido favorecida por uma política de subvenções, como a Política Agrária Comum (PAC) da União Européia, que premia o agronegócio em detrimento da agricultura familiar.

 

Em terceiro lugar, devemos assinalar o monopólio existente na cadeia de distribuição dos alimentos. Mega-supermercados, como Wal-Mart, Tesco ou Carrefour, ditam o preço de pagamento dos produtos ao camponês/provedor e o preço de compra ao consumidor. No Estado espanhol, por exemplo, o diferencial médio entre o preço na origem e no destino é de 400%, sendo que a grande distribuição é quem leva o benefício. Ao contrário, o camponês cada vez cobra menos por aquilo que vende e o consumidor paga mais caro pelo que compra. Um modelo de distribuição que dita o que, como e a que preço se produz, se transforma, se distribui e se consome.

 

Propostas

 

Porém, existem alternativas. Frente à usurpação dos recursos naturais, temos que advogar pela soberania alimentar: que as comunidades controlem as políticas agrícolas e de alimentação. A terra, as sementes, a água têm de ser devolvidas aos camponeses para que possam alimentar-se e vender seus produtos às comunidades locais. Isso requer uma reforma agrária integral da propriedade e da produção da terra e uma nacionalização dos recursos naturais.

 

Os governos devem apoiar a produção em pequena escala e sustentável, não por uma mistificação do "pequeno" ou por formas ancestrais de produção, mas porque esta permitirá regenerar os solos, economizar combustível, reduzir o aquecimento global e ser soberanos no que diz respeito a nossa alimentação. Na atualidade, somos dependentes do mercado internacional e dos lucros da agroindústria, e a crise alimentar é resultado disso.

 

A recolocação da agricultura em mãos do campesinato familiar é a única via para garantir o acesso universal aos alimentos. As políticas públicas têm de promover uma agricultura autóctone, sustentável, orgânica, livre de pesticidas, químicos e transgênicos e, para aqueles produtos que não sejam cultivados no âmbito local, utilizar instrumentos de comércio justo em escala internacional. É necessário proteger os agroecossistemas e a biodiversidade, que estão gravemente ameaçados pelo modelo de agricultura atual.

 

Frente às políticas neoliberais, temos que gerar mecanismos de intervenção e de regulação que permitam estabilizar os preços do mercado, controlar as importações, estabelecer quotas, coibir o dumping e, em momentos de produção excedente, criar reservas específicas para períodos de entressafra. No âmbito nacional, os países precisam ser soberanos na hora de decidir seu grau de auto-suficiência produtiva e priorizar a produção de comida para o consumo doméstico, sem intervencionismos externos.

 

Na mesma linha, deve-se rechaçar as políticas impostas pelo BM, pelo FMI, pela OMC e pelos tratados de livre comércio bilaterais e regionais, bem como proibir a especulação financeira, o comércio a futuros sobre os alimentos e a produção de agrocombustíveis em grande escala para elaborar "petróleo verde". É necessário acabar com aqueles instrumentos de dominação Norte-Sul, como o pagamento da dívida externa, e combater o poder das corporações agroindustriais.

 

Frente ao monopólio da grande distribuição e do supermercadismo, devemos exigir regulamentação e transparência em toda a cadeia de comercialização de um produto com o objetivo de saber o que comemos, como foi produzido, que preço foi pago na origem e que preço foi pago no destino. A grande distribuição tem efeitos muito negativos no campesinato, nos provedores, nos direitos dos trabalhadores, no meio ambiente, no comércio local, no modelo de consumo. Por esse motivo, devemos propor alternativas ao lugar onde compramos: ir ao mercado local, formar parte de cooperativas de consumo agroecológico, apostar por circuitos curtos de comercialização, com um impacto positivo no território e uma relação direta com quem trabalha a terra.

 

Temos que avançar em direção a um consumo consciente e responsável, já que, se todo mundo consumisse, por exemplo, como um cidadão estadunidense, seriam necessários cinco planetas Terra para satisfazer as necessidades da população mundial. Porém, a mudança individual não é suficiente se não vai acompanhada de uma ação política baseada, em primeiro lugar, na construção de solidariedades entre o campo e a cidade. Com um território despovoado e sem recursos, não haverá quem trabalhe a terra e, em conseqüência, não haverá quem nos alimente. A construção de um mundo rural vivo nos corresponde também aos que vivemos nas cidades.

 

E, em segundo lugar, é necessário estabelecer alianças entre distintos setores atingidos pela globalização capitalista e atuar politicamente. Uma alimentação saudável não será possível sem uma legislação que proíba os transgênicos, o corte indiscriminado de bosques não acabará se não forem perseguidas as multinacionais que exploram o meio ambiente. E para tudo isso, é importante uma legislação que seja cumprida e que coloque as necessidades das pessoas e do ecossistema antes do lucro econômico.

 

Uma mudança de paradigma na produção, na distribuição e no consumo de alimentos somente será possível em um marco mais amplo de transformação política, econômica e social. A criação de alianças entre os oprimidos do mundo: camponeses, trabalhadores, mulheres, migrantes, jovens. É uma condição indispensável para avançar em direção a esse "outro mundo possível", preconizado pelos movimentos sociais.

 

Esther Vivas é co-coordenadora dos livros "Supermercados, no gracias" (Icaria editorial, 2007) e "¿Adónde va el comercio justo"? (Icaria editorial, 2006). Artigo publicado em América Latina en Movimiento (ALAI), nº. 433. Tradução: ADITAL.

 

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