Judiciário não pode ficar refém do ‘Estado Policialesco’

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Gabriel Brito e Valéria Nader
06/08/2008

 

Face às recentes turbulências e polêmicas no Judiciário brasileiro, o Correio da Cidadania conversou com o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello para tentar analisar o atual momento deste poder e comentar sobre eventuais mudanças que poderiam ocorrer em seu funcionamento.

 

Bandeira de Mello faz o mesmo alerta de outros especialistas da área, a respeito de estarmos sob risco de entrar em um Estado "policialesco". Para ele, o ministro Gilmar Mendes procedeu corretamente ao conceder hábeas corpus a Daniel Dantas, pois considera que tal episódio faz parte da lista de outras operações exageradas e midiáticas da polícia, com intuito de criar fortes constrangimentos aos investigados.

 

Também professor de direito da PUC-SP, ele sugere a criação de um sistema de fiscalização do judiciário que seja executado pelos seus próprios membros, porém de estados diferentes, e define como uma questão de "civilização" que a população brasileira comece a acompanhar mais o que se passa nos corredores desse braço de nossa sociedade.

 

A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o atual momento do judiciário brasileiro, em que instâncias diferentes se colocam em lados opostos nas mesmas questões? Em outras palavras, como está a relação entre as instâncias superiores e inferiores do Judiciário em nosso país?

 

C. A. Bandeira de Mello: Creio que se deve obedecer à ordem jurídica, isto é, as instâncias inferiores não devem desacatar as instâncias superiores. É a coisa mais simples da Terra, uma questão de pura e simplesmente obedecer ao ordenamento jurídico. Se uma instância superior tomou uma decisão, é natural que a inferior se conforme. Com isso, não estou dizendo que o entendimento precisa ser igual. Acho que os juízes têm direito, obviamente, à formação de seu próprio convencimento. O que não se pode é desobedecer a uma determinação, quando ocorre, de um órgão superior.

 

Portanto, não deve haver preocupações em relação ao tema de a instância inferior decidir uma coisa e a superior outra diferente. Para isso existem os recursos, para que as questões sejam decididas pela instância superior e pela mais alta delas quando em definitivo.

 

CC: Nesse sentido, o senhor seria favorável de alguma maneira à súmula vinculante (mecanismo pelo qual os juízes são obrigados a seguir o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, STF, ou pelos tribunais superiores, sobre temas que já tenham jurisprudência consolidada)?

 

BM: Não, sou completamente contrário à súmula vinculante. Não creio que meia dúzia de indivíduos, na verdade 11, possam decidir algo que valha para todos os outros antecipadamente. Pelo contrário, os juízes devem formar sua própria convicção.

 

Sendo assim, sou inteiramente contra a súmula vinculante e a considero antidemocrática, pois aquilo que hoje pode ter uma orientação do tribunal, amanhã pode ter outra, até mesmo em função da mudança de entendimento dos juízes das distintas instâncias.

 

CC: A propósito ainda dessa questão, qual a sua avaliação quanto à concessão de hábeas corpus a Daniel Dantas, por meio do ministro do Supremo Gilmar Mendes – decisão moralmente tão criticada, mas considerada acertada por vários juristas?

 

BM: Achei a coisa mais normal do mundo. A crítica é coisa da imprensa, que não entende nada e então critica. Mas se eu estivesse no lugar do ministro eu teria tomado as mesmas decisões que ele tomou.

 

É perigoso nós caminharmos rumo a um Estado policialesco. Nós temos de ter muito cuidado com isso. O indivíduo só deve ficar preso ou quando já foi condenado ou quando representa um risco para a sociedade, como, por exemplo, no caso de um criminoso perigoso que pode cometer algum ato delinqüente, ou ainda se ele puder perturbar as investigações.

 

No caso dessa gente, Daniel Dantas e esses outros, depois de feitas as buscas e apreensões, a polícia já havia pegado tudo que queria. Se eles já tinham o que desejavam, para que manter o homem preso? Não importa se a opinião pública o considera um criminoso. É possível que seja mesmo, mas e daí? Os criminosos também têm direitos na sociedade democrática. O direito deles é o de serem tratados na forma da lei.

 

CC: Portanto, acima da discussão moral estão os princípios jurídicos.

 

BM: Não creio que haja nenhuma discussão moral em pauta. A discussão é: o que o direito prevê para a perda da liberdade das pessoas? A pergunta moral é: as pessoas devem perder sua liberdade, mesmo que não ofereçam perigo à sociedade, antes de condenadas? Devem perder a liberdade mesmo que não haja risco de atrapalhar as investigações? Eu responderia que, moralmente, não, pois ninguém é culpado até prova em contrário. Essa é uma garantia de todos nós cidadãos, a de não sermos presos sem julgamento.

 

CC: O que o senhor pensa quanto aos critérios para a escolha dos ministros dos tribunais das cortes mais altas do país?

 

BM: Não acho que se definem os ministros da melhor forma, nunca achei e já me manifestei várias vezes a respeito. Não creio que devam ser nomeados pelo presidente da República sob aprovação do Senado; não me parece o melhor sistema.

 

É claro que cada sistema tem seus inconvenientes, mas eu particularmente preferiria que os ministros do Supremo fossem escolhidos pelos juízes de todo o país.

 

CC: O senhor acredita ser necessário algum instrumento de controle e fiscalização externos dos magistrados, de modo a buscar uma maior transparência em seus procedimentos?

 

BM: Pessoalmente, sempre fui contra o controle externo. Minha visão é que, no caso da justiça federal, por exemplo, as diferentes circunscrições e seus juízes deveriam eleger seus controladores, entre eles mesmos.

 

Por exemplo, falemos da justiça estadual, para ficar mais fácil: se alguém é juiz de São Paulo, deveria ser fiscalizado por juízes de outro estado. Essa é minha opinião. Faz-se um sorteio para verificar que estado fiscaliza o outro e depois os fiscais poderiam ser eleitos pelos juízes, por um período determinado, sem que se possa repetir, para evitar que se criem relações perigosas.

 

Sendo assim, se o estado de Minas Gerais fiscalizou Alagoas, no outro sorteio fiscalizará outro estado. Apesar de nunca ter sido aplicado, esse sistema sempre me pareceu o melhor de todos, o ideal. Tenho muito medo de ver gente de fora do judiciário fiscalizando o judiciário.

 

CC: Qual a sua opinião a respeito das últimas ações da Polícia Federal no país?

 

BM: Ela, como de hábito, como polícia que é, comete abusos, embora esteja sendo muito bom o que ela tem feito de uns tempos pra cá, com pessoas de colarinho branco sendo fiscalizadas. Isso em si é muito bom, mas acho ruim que se façam tais ações com violência.

 

Vou dar um exemplo: foi invadido o escritório de um dentista que é um benemérito na profissão, que atende gratuitamente e que conseguiu reunir um grupo de dentistas para fazer o mesmo com pessoas pobres. A polícia invadiu seu consultório, confundindo-o com um doleiro, apontou o revólver para a cabeça dele, chamou-o de bichinha, ofendendo-o portanto, apreendeu os computadores dele, enfim, manteve-o sob estado de terror. O que isso lhe parece? É um perigo, acho que a PF excede em várias ocasiões.

 

No Brasil, muitas vezes o servidor público não percebe que é servidor público, que essa é a função dele, devendo tratar todos com humanidade e respeito. É um absurdo chegar à casa de um cidadão à noite, como no caso do Pitta, e levá-lo de pijama, isso é um disparate! Que risco oferecia esse indivíduo, o que tinha ele a ver com aqueles outros, com o Dantas? Aquilo foi feito para criar espetáculo.

 

CC: O senhor acredita que PF esteja muito subordinada ao Executivo, quando seu vínculo direto deveria ser com o Judiciário?

 

BM: Não acho. Creio que não houve nenhuma ordem do Executivo para esses desmandos, eu nunca acreditaria nisso. O chefe do Executivo, o presidente Lula, já viu a polícia pelo outro lado também. Como homem do povão, já sofreu violência nas mãos da polícia e, portanto, ele não tem nenhuma razão para prestigiar atos de violência. Não acredito que seja ele o responsável por isso.

 

CC: Como o senhor enxerga o projeto de lei que trata da inviolabilidade dos escritórios de advocacia?

 

BM: É um excelente projeto de lei. Trata-se de algo muito bom, e que vem sendo criticado. No entanto, deve-se olhar com cuidado para esse projeto e para o que ele estabelece. Ele simplesmente garante o direito de defesa, sendo esclarecedor em relação a normas que já existem hoje no estatuto da ordem dos advogados.

 

Ao contrário do que se tem dito por aí irresponsavelmente, não há, absolutamente, concessão alguma de privilégios aos advogados ou facilitação da situação de criminosos, de modo algum. Não há nada disso, é um projeto excelente.

 

CC: Caso não seja aceito esse projeto, serão criadas brechas para ações arbitrárias sobre os profissionais da área?

 

BM: Não acho que criaria uma brecha, pois as coisas já não são bem interpretadas hoje. O que há é um abuso. Para que algemas? Isso é para pessoas que resistem. Para que colocar algemas numa senhora? Isso é uma gozação, serve apenas para humilhar a pessoa. Lembro quando foram presos o Maluf e o filho dele. O filho veio guiando o helicóptero, trazendo o indivíduo. Na hora em que desceu, colocaram algemas no Maluf. Isso é de um ridículo atroz, para humilhar a pessoa, um espetáculo para a televisão e a imprensa.

 

Imprensa gosta de ver sangue e povão, em todos os tempos históricos, sempre gostou também. Olhe o circo romano, a queima das bruxas, os programas de hoje na televisão, sem sangue, mas que desrespeitam a dignidade humana. E quando digo povão, não falo do humilde, mas sim de todo mundo, que gosta desse espetáculo. É falta de civilização.

 

CC: Neste semestre serão discutidas no Judiciário questões importantes, como a demarcação de Raposa Serra do Sol. O senhor acredita que poderá ser marcado um ponto de inflexão na atenção dada pela sociedade em relação às futuras discussões que passarem por este poder?

 

BM: Não sei, realmente não tenho como comentar esse caso especificamente, pois não sei o que vai decidir o Judiciário. É fácil opinar, mas sem os autos na mão fica difícil. Acho que o Judiciário brasileiro progrediu muito, o caso das células-tronco é uma boa demonstração disso.

 

Agora, quanto à sociedade, vou dizer qual é minha opinião. Ela pensa, age e fala o que a imprensa diz pra ela pensar, agir e falar. E a imprensa sabemos o que é. Pertence a meia dúzia de empresários que fazem a cabeça dos brasileiros. Empresários.

 

As pessoas têm a idéia de que a imprensa esta aí para informar, mas, na verdade, é para o empresário ganhar dinheiro. O sujeito ganha dinheiro com TV, rádio ou jornal do mesmo jeito que ganha vendendo papel higiênico, computador ou seja lá o que for. O que ele (empresário) quer é isso. Essa é minha opinião sobre a imprensa.

 

Enquanto os meios de comunicação não forem dirigidos por jornalistas, as coisas serão assim. Na minha opinião, deveria ser da seguinte maneira: os proprietários dos meios continuariam como tais, mas dirigindo administrativamente. A parte técnica, isto é, jornalística, teria de ser dirigida pelos empregados, que deveriam eleger uma comissão diretora, um conselho de redação ou coisa do tipo. É a única maneira de sanear os meios de comunicação brasileiros.

 

CC: Mas de toda forma parece que passamos por um momento em que a população está mais atenta a este campo da vida do país.

 

BM: É um problema de civilização. A população pode acompanhar, não existe a TV Justiça? Se ela quiser acompanhar, é só ligar a televisão e assistir. E logo haverá a dos tribunais também.

 

Portanto, é uma questão de civilização. À medida que a sociedade brasileira passar por esse processo, ela poderá se interessar e se informar sobre o que se passa no Judiciário, o que seria importante.

 

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

 

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