Deslegitimação da violência na Colômbia exige novo regime político e econômico

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Gabriel Brito e Valéria Nader
09/07/2008

 

Após a libertação de Ingrid Betancourt, seqüestrada havia mais de seis anos, e mais 14 reféns, a Colômbia voltou a ser assunto central em todo o mundo. Considerado uma grande vitória do governo de Álvaro Uribe, o episódio, de versão ainda controversa, suscitou o debate em torno do futuro das FARC e do futuro político colombiano.

 

Para analisar o quadro vivido em um dos países vizinhos do Brasil, o Correio da Cidadania entrevistou Pietro Alarcón, representante do Comitê Permanente da Colômbia pela Defesa dos Direitos Humanos. Em sua opinião, o episódio obriga o grupo guerrilheiro a repensar suas diretrizes, pois a saída militar não caberia mais no processo atual de busca pela paz, o que precisaria ser compreendido também pelo governo colombiano, a fim de começar a redirecionar gastos bélicos para os mais variados setores de interesse social.

 

Professor de direito na PUC, Alarcón faz o alerta de que a paz definitiva no país jamais poderá vir desacompanhada de justiça social e, principalmente, da eliminação da violência como instrumento lícito de luta política, o que para ele não será conquistado com a presença cada vez mais ostensiva dos EUA na região, cuja interferência se deve a interesses nacionais próprios. A entrevista completa pode ser conferida a seguir.

 

 

Correio da Cidadania: Qual é o significado maior e qual o impacto da liberação de Ingrid Betancourt, ao lado de outros 14 reféns, na trajetória das FARCs daqui em diante?

 

Pietro Alarcón: Devo te dizer que, como colombiano e como pessoa ligada à defesa dos direitos humanos, e que acredita na saída política negociada e não em uma saída de tipo militar ao gravíssimo conflito que atravessa a minha pátria, a primeira questão é saudar a liberdade das pessoas retidas há muito tempo e em poder da guerrilha. É fundamental advogar pela liberdade de todos os seqüestrados, de todos os detidos, de todos os que, no marco deste conflito, padecem o cerceamento de seus mínimos direitos. Isso compreende continuar insistindo nacional e internacionalmente na libertação do restante dos seqüestrados.

 

Certamente, se as FARC libertam os restantes reféns, que devem, o quanto antes, retornar ao seio das suas famílias, criar-se-ia um novo clima, um novo ambiente em favor do diálogo por uma saída concertada.

 

Por outro lado, há também que exigir uma política de paz do Estado colombiano, ou seja, um compromisso com a defesa da vida, com as garantias para a oposição, com os princípios do direito internacional e dos direitos humanos e o respeito às liberdades públicas.

 

Acho que, mais que para a guerrilha, há que perguntar-se o que significa esta liberação para a Colômbia e para o contexto da América Latina. No plano interno, me parece que na Colômbia se tem uma excelente oportunidade para iniciar um caminho de reflexão política na idéia de retomar os pressupostos democráticos, o sentido da justiça; no externo, é fundamental um diálogo regional sobre a paz e a segurança na América do Sul, especialmente, sobre os pressupostos econômicos, políticos, culturais da integração com perspectivas de soberania e autonomia, rejeitando pretensões militaristas de quaisquer potências, e pelo fortalecimento da democracia e dos direitos humanos. Acho que é um momento de propostas para interceder ativamente pela paz com justiça, para que cesse a impunidade e a violência.

 

CC: Em sua opinião, qual a versão mais verossímil para a operação de resgate dos reféns?

 

PA: Realmente as informações são desencontradas. Uma é a versão do governo colombiano e outra, a que foi difundida por uma rádio oficial da Suíça. Acho difícil estabelecer verdades a partir dessas versões. O importante é que foi uma ação na qual os seqüestrados nada sofreram e que não se repetiu o acontecido em junho de 2007, quando morreram 11 ex-deputados reféns.

 

CC: A hipótese de ter se subornado o responsável pelos reféns, se verídica, mostra no mínimo que as FARC estariam passando por um momento de instabilidade e desagregação. Qual a sua avaliação, nesse sentido, sobre o momento vivido pelas FARCs?

 

PA: As FARC são uma guerrilha muito antiga. As análises históricas constatam sua presença na geografia da Colômbia há mais de 40 anos. Mas não conheço período da história de meu país no qual esse movimento tenha sofrido os choques que sofreu recentemente, como a morte de Raul Reyes, de Rios, do próprio Manuel Marulanda. Então, certamente, elas devem refletir sobre sua situação atual. O que se espera é que elas atuem não de costas ao país, mas que contribuam decididamente à conquista da paz e, para isso, precisam ser, necessariamente, mais propositivas nesse caminho.

 

CC: Há possibilidade de a guerrilha conseguir se reestruturar e voltar à vida política, saindo de seu isolamento?

 

PA: É um fato que a guerrilha colombiana desenvolve suas ações sem que exista uma situação subjetiva considerada favorável. Explico: indo à teoria clássica dos fatores objetivos e subjetivos para mudanças por reforma ou revoluções, podemos afirmar que existem condições de pobreza, miséria, mas, hoje, embora as guerrilhas sejam no meu país uma expressão da luta de classes, eu pelo menos assim o considero, não é a via armada uma via indiscutível ou a única para atingir mudanças democráticas. Até porque é muito baixa a possibilidade de se consolidar um regime democrático tendo como marco uma confrontação militar, porque a lógica da guerra termina subordinando uma agenda mais ligada aos problemas que têm a ver com a efetividade dos direitos sociais, por exemplo.

 

A dificuldade concreta está em que a volta à vida civil das FARC, que me parece ser a pergunta, depende de um conjunto de fatores, dentre eles que existam garantias para o exercício da oposição política. É sabido que, na década de 80, a União Patriótica foi alvo de uma criminosa conduta, qualificada como genocídio por diversas organizações de direitos humanos, portanto, há muita desconfiança. Isso depende, por outro lado, das propostas que emanem para a conquista da paz com justiça social. Há um caminho a trilhar nesse processo, onde deve haver concessões de ambas as partes em conflito.

 

CC: Qual seria o caminho a seguir para atingir essa possibilidade? Depor as armas parece essencial, não?

 

PA: A procura da paz implica distinguir algumas situações cujo cenário foram outros países. Na história, já se deram vários modelos internacionais de solução de conflitos, que podem ser experimentados, sem perder de vista a complexidade da situação colombiana. Ou seja, não se trata de importar saídas. Alguns analistas, por exemplo, lembram o processo de solução política negociada de Zimbábue, onde se produz um equilíbrio militar, mas com impasses políticos para a paz; outros lembram do modelo da Venezuela, onde primeiro se derrota militarmente o inimigo e logo se negocia; existe o modelo aplicado na Nicarágua quando se derrotou os contras estrategicamente, muito embora eles tenham conservado sua presença militar.

 

O que me parece é que na Colômbia há que se deslegitimar o uso da violência como mecanismo de ação política e abrir espaços a um pacto nacional, um novo contrato social, se você assim o deseja colocar, ou se for possível colocar as coisas dessa forma. Uma alternativa em favor da paz implica que os atores do conflito reconheçam a não viabilidade da saída militar e, ainda, que existe uma agenda realista sobre o que é possível na atual conjuntura nesse país. Há questões urgentes, como a paralisação das atividades do paramilitarismo, dos seqüestros, dos atentados à vida e à liberdade pessoal, da criminalização de toda modalidade de oposição. Isso é muito grave, porque faz muito tempo que se assimilou, por parte de alguns setores, a idéia de que oposição é sinônimo de subversão. Uma saída militar teria um custo social enorme, em vidas, em tempo, enfim, um tempo que a Colômbia não pode continuar a perder.

 

Assim, o que deve sempre ter-se em conta é que, na Colômbia, a luta pela paz vai entrelaçada à luta pelas mudanças no regime político e por reformas econômicas, que deixem de reproduzir um modelo de desenvolvimento gerador de desigualdades, para promover uma economia para o conjunto da sociedade. Isso significa uma redistribuição da renda, a oportunidade dos camponeses para cultivar produtos distintos aos ilegais, com mercado seguro para eles, reformas sociais, uma reorientação do gasto público, que não privilegie a guerra, mas o investimento no social. Há que priorizar o social, as necessidades populares, a satisfação do interesse público.

 

CC: Voltando ao plano interno da Colômbia, o que esse momento pode significar para o futuro político do país, com o terceiro mandato de Uribe cada vez mais em discussão?

 

PA: Eu penso que, em termos jurídicos e políticos, o princípio republicano, assentado na transitoriedade de mandatos, e o sistema presidencialista não autorizam a re-releição. Por outro lado, não há como esquecer que toda a operação para a libertação dos reféns não oculta os problemas do Estado de Direito. O império do princípio da legalidade como regra do jogo democrático deve ser recobrado. Nisso, um dos fatores políticos e jurídicos mais relevantes é o questionamento de amplos setores da opinião pública sobre a ilegalidade do mandato do atual presidente, levando em conta a decisão da Sala de Cassação Penal da Corte Suprema de Justiça contra a senadora Yidis Medina, a ex-congressista que confessou a obtenção de vantagens para votar a favor da emenda da reeleição.

 

Esses temas me parecem especialmente delicados, e devem ser resolvidos se deveras a Colômbia deseja abrir espaços a uma democracia sadia.

 

A outra alternativa do setor hoje no governo é prosseguir com o modelo exercido pelo Uribe, a denominada segurança democrática, mas sem Uribe necessariamente ocupando a presidência. Continuando com a política externa alinhada à dos Estados Unidos e, internamente, de cunho neoliberal.

 

Com relação ao Pólo Democrático, o partido de oposição mais importante, que é presidido pelo ex-presidente da Corte Constitucional, Carlos Gavíria Diaz, considero que, até então, sua postura tem sido muito digna, exigindo o respeito à soberania colombiana diante das pressões dos Estados Unidos, mantendo em alto a bandeira da paz, de uma abertura democrática, do cessar das atividades paramilitares, de pluralismo e tolerância, de procura de espaços fora do país para pressionar por diálogos em favor da paz.

 

Embora seja extremamente complicado concorrer eleitoralmente contra um candidato que, além da máquina governamental, teria um grande apoio midiático dos Estados Unidos, a candidatura de Gavíria Diaz aglutina cada vez mais um maior número de setores, especialmente entre aqueles que observam com preocupação como a Colômbia pode continuar a desandar pelo autoritarismo, dentre eles os setores sociais e o sindicalismo.

 

CC: Como imagina que serão de agora em diante as posturas dos países de governos mais à esquerda, Venezuela, Bolívia, Equador e Brasil, que de alguma forma tiveram participação nos movimentos e negociações mais recentes?

 

PA: Pelo noticiado nos jornais, o que me parece é que cada governo teve uma participação em ordens e graus diversos. Em linhas gerais, penso que se deve retomar ou prosseguir o diálogo de todos com o governo colombiano. Há que se restabelecer a confiança por cima de diferenças quanto a programas de governo, aprofundando os pontos em comum na perspectiva de defender a soberania e a inviolabilidade dos territórios, o direito à vida e as liberdades públicas, e de requerer, conforme as normas do direito internacional, um gesto das partes em conflito na Colômbia, para uma saída negociada e pelo respeito às normas do Direito Internacional Humanitário.

 

Não podemos esquecer a grave crise humanitária, que é muito dolorosa, de que padece a Colômbia. Já há alguns anos eu estou muito próximo do convênio Cáritas- ACNUR, ligado a projetos em favor do atendimento aos refugiados. ACNUR publicou seus dados recentemente e neles constata que os colombianos já representam o terceiro maior grupo de refugiados do mundo; os dois primeiros lugares eu acho que são, imagino, do Afeganistão e do Iraque.

 

A diplomacia brasileira, digo com respeito e admiração, foi importantíssima para nivelar o tom em um dos momentos mais difíceis da conjuntura, atuando como mediador na OEA e no Grupo de Rio, quando a segurança nas fronteiras foi ameaçada em virtude da ocupação colombiana no território equatoriano.

 

CC: Como acredita que os EUA vão tentar capitalizar essa ‘vitória política’ na América do Sul? De outro modo, quais seriam os próximos passos da política belicista dos EUA no continente?

 

PA: Durante o governo Bush, os Estados Unidos têm, diante da conjuntura global, uma diplomacia baseada na intervenção individual ou coletiva para a defesa do seu interesse nacional. Nessa lógica, eles consideram seu poder-dever o reforço da sua supremacia militar. Isso passa por intimidar países, exacerbar conflitos regionais, preparar a IV Frota, sob a batuta do Comando-Sul. Isso gera um clima de desrespeito pelos princípios de não-intervenção, de autodeterminação dos povos, de prevalência dos direitos humanos.

 

Segundo seus porta-vozes, seu interesse nacional é o do mundo todo. Recentemente, eu observo que nos Estados Unidos há um fortíssimo debate, latente, com relação a temas como o dos direitos humanos em Guantánamo – a Suprema Corte, recentemente, por fim, tomou partido nessa situação lamentável de permanente atentado contra os direitos humanos e que coloca os Estados Unidos à margem da legalidade internacional – e a questão da ajuda financeira à Colômbia – veja-se, por exemplo, que o Partido Democrata bloqueou no Congresso a aprovação do TLC entre Estados Unidos e Colômbia.

 

Na Colômbia, não é possível uma solução militar como a que os Estados Unidos promovem no mundo. O caminho da diplomacia e de busca constante de iniciativas em favor da paz é o caminho a ser seguido.

 

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