O que a mídia não conta. Mudanças em Cuba?

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Salim Lamrani
07/05/2008

 

A imprensa tem sido prolixa com respeito às mudanças ocorridas em Cuba depois da escolha de Raúl Castro como presidente da República, também comemorando uma eventual liberalização da economia da ilha. Mas esta realidade foi tratada, como sempre ocorre quando se fala de Cuba, de maneira superficial e errada. Seja com respeito à aquisição de aparelhos elétricos, aos hotéis ou aos celulares, as restrições que estavam vigentes até pouco tempo atrás tinham explicações racionais. No entanto, as multinacionais da informação não abordaram nenhuma delas.

 

Na verdade, foi lançado um intenso debate no início do ano 2008, pouco antes da decisão de Fidel Castro de não se apresentar para a reeleição, com o objetivo de melhorar o socialismo cubano. Esse debate envolveu o conjunto da população e gerou 1,3 milhão de propostas.

 

Os aparelhos elétricos


A mídia anunciou com grande estrondo que os cubanos já eram livres para adquirir aparelhos elétricos e eletrodomésticos, dando a entender que antes a venda estava completamente proibida. Contudo, a realidade é sensivelmente diferente. A venda destes artigos jamais esteve proibida em Cuba, fora alguns produtos de informática e outros de grande consumo energético, tais como os fogões elétricos ou os microondas, em uma época em que a produção energética de Cuba era insuficiente para cobrir as necessidades da população.

 

Com efeito, durante o período especial, que começou em 1991, depois da desintegração do bloco soviético, Cuba ficou sozinha diante do mercado internacional e teve que enfrentar o desaparecimento de mais de 80% do seu comércio exterior, além do acirramento da implacável agressão econômica dos Estados Unidos. Neste contexto extremamente difícil, a ilha do Caribe foi golpeada por fortes penúrias, particularmente quanto à energia, o que provocava longos apagões. Nessa época, as autoridades limitaram a venda de aparelhos elétricos devoradores de energia. Essas restrições estavam totalmente justificadas. De fato, teria sido irresponsável proceder de outro modo, uma vez que o sistema energético, fortemente subvencionado, poderia ter entrado em colapso.

 

Graças à engenhosidade dos cubanos, aos esforços que contaram com o apoio da população e às novas relações comerciais com países como a Venezuela e a China, Cuba dispõe de uma economia mais forte e conseguiu resolver seu problema energético. Graças à "Revolução energética", lançada em 2006, que consistiu em substituir as lâmpadas e os antigos eletrodomésticos, como televisores, refrigeradores, ventiladores e outros aparelhos elétricos por produtos mais modernos cujo consumo é menor, milhões de cubanos foram beneficiados por toda uma gama de produtos eletrodomésticos novos com preços subvencionados pelo Estado, ou seja, abaixo de seu valor de mercado.

 

Atualmente, a economia de energia que foi conseguida permite enfrentar a demanda da população, o que explica a eliminação progressiva das restrições quanto à aquisição de novos aparelhos eletrodomésticos, computadores e outros, como reprodutores de vídeo. Assim, os cubanos têm acesso a uma seleção mais ampla de bens de consumo. Portanto, as limitações tinham como explicação apenas um fator econômico, isto é, uma produção de energia insuficiente. A imprensa ocidental não se incomodou em abordar estes elementos ao tratar do tema.

 

A mídia apressou-se em sublinhar, com razão, que muitos cubanos não poderiam ter acesso aos artigos à venda pelo valor de mercado devido ao seu elevado custo com respeito ao salário relativamente modesto vigente em Cuba. Não obstante, esta realidade concerne a uma parte imensa da população mundial, que vive na pobreza e cujas principais preocupações não são adquirir um reprodutor de DVD ou um microondas, mas, sim, comer três vezes por dia e ter acesso a saúde e educação, angústias inexistentes em Cuba.

 

Assim, segundo o último relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre a insegurança alimentar no mundo, 854 milhões de pessoas em todo o planeta, entre elas 9 milhões nos países industrializados, sofrem de desnutrição. No continente americano, somente três países já alcançaram os objetivos da Cúpula Mundial da Alimentação 2015: Cuba, Guiana e Peru. Segundo a Unesco, atualmente, um de cada cinco adultos no mundo não é alfabetizado, ou seja, 774 milhões de pessoas, e 74 milhões de crianças carecem de escolas. Segundo a Unicef, a cada dia mais de 26.000 crianças menores de cinco anos morrem de fome ou de doenças curáveis, isto é, 9,7 milhões de crianças ao ano. Nenhum cubano faz parte destas listas.

 

As multinacionais da informação sempre evitam apresentar a realidade cubana em relação à problemática latino-americana e do terceiro mundo porque ela é edificante e leva, inevitavelmente, a fazer comparações.

 

Os celulares

 

O acesso ao celular também se ampliou em Cuba por diversas razões. A primeira é de ordem econômica e a segunda de ordem tecnológica. O acesso ao celular tornou-se massificado em todo o mundo ocidental nos anos 90.

 

Nessa época, Cuba tinha outras prioridades diferentes à de proporcionar acesso ao telefone celular para a população. Os desafios guardavam relação com a alimentação, o transporte e a moradia. O problema alimentar atualmente foi resolvido em Cuba. No que se refere ao transporte, está sendo solucionado, principalmente graças à importação de numerosos ônibus da China. Quanto à moradia, trata-se, sem dúvida, da principal dificuldade que a população enfrenta.

 

Neste caso, também não se trata de uma especificidade cubana. A realidade é a mesma em qualquer cidade do primeiro mundo, como Paris, com uma diferença: em Cuba o problema é a falta de moradia devido às sanções econômicas norte-americanas, que impedem a construção de 100.000 habitações adicionais por ano, enquanto que os parisienses estão diante de uma absurda aberração. Com efeito, mais de 100.000 moradias, que pertencem às classes acomodadas, estão vazias em Paris, enquanto 100.000 famílias estão procurando um teto. Apesar de existir uma lei para requisitar essas vivendas, ela nunca é aplicada pelas autoridades. Em Cuba, os cidadãos jamais aceitariam semelhante escândalo.

 

Na França, segundo o Ministério da Habitação, 1,6 milhão de pessoas vivem em moradias sem chuveiro ou sem banheiro. Mais de um milhão de franceses estão alojados em "situação de superpopulação acentuada"; 550.000 pessoas vivem em pensões, entre elas 50.000 crianças; 146.000 em caravanas; 86.000 são "sem-teto" e moram na rua. Contudo, em torno de dois milhões de moradias estão vazias na França, 136.554 delas em Paris. Outra aberração: somente 32.000 moradias em Paris pagam o imposto sobre moradias vazias, quando este deveria ser pago por mais de 136.000. Mas as autoridades preferem fechar os olhos.

 

Voltando ao celular, o segundo obstáculo era uma questão tecnológica (ainda é o caso para o acesso à Internet, porque Washington impede Cuba de se conectar ao cabo de fibra ótica do Estreito da Flórida, que lhe pertence). Cuba dispõe de uma conexão por satélite limitada que, por outro lado, é extremamente cara. Essa é a razão pela qual o acesso ao telefone celular era restrito. Com a melhora da situação econômica, a oferta foi ampliada para toda a população, ainda que as tarifas continuem sendo muito elevadas. Neste caso, ocorre a mesma coisa: apesar de o celular estar amplamente difundido no Ocidente, continua sendo um luxo para muitos habitantes do planeta.

 

O acesso aos hotéis

 

Quanto aos hotéis, a mídia também demonstrou parcialidade. Até 1º de abril de 2008, o acesso aos hotéis de luxo não estava proibido, como afirmou a imprensa ocidental, mas limitado. Aqui, a explicação é de ordem social e econômica.

 

Nos anos 1990, o ressurgimento de um fenômeno que foi erradicado quando triunfou a Revolução, em 1959, preocupava muito as autoridades: a prostituição. Para tentar conter este problema, que surgiu das dificuldades que os cubanos tiveram que enfrentar, o governo de Havana decidiu limitar o acesso da população às infra-estruturas turísticas. Graças ao bom desempenho dos trabalhadores sociais e à melhora da situação econômica, este fenômeno social, se bem ainda não desapareceu completamente, foi atenuado substancialmente.

 

A segunda explicação é econômica. De fato, com o desenvolvimento vertiginoso do turismo, a partir dos anos 1990, a capacidade hoteleira cubana mostrou ser insuficiente para acolher ao mesmo tempo os estrangeiros e os cubanos. As autoridades privilegiaram a acolhida dos estrangeiros, principalmente na alta temporada, partindo de um raciocínio econômico: um turista cujas demandas de veraneio não fossem possível satisfazer gastaria seu dinheiro fora do país, o que geraria um capital ocioso significativo para a economia da nação. Em compensação, a pequena categoria de cubanos que possui os recursos necessários para pagar por um hotel de luxo gastaria seu dinheiro em outros setores, mas ele ficaria no país.

 

A imprensa ocidental também ficou apenas nas tarifas relativamente proibitivas para o cubano médio. Segundo a Associated Press, são pouquíssimos os cubanos que podem pagar por um quarto que custa 173 dólares por noite no hotel "Ambos Mundos" (quatro estrelas) da Havana Velha, um dos estabelecimentos turísticos mais prestigiosos da capital, que era o preferido de Ernest Hemingway. E tem razão. Mas a imprensa esquece, mais uma vez, de mencionar que o acesso a um quarto de um hotel de renome é um luxo para todos os habitantes do terceiro mundo e para uma ampla categoria de cidadãos que vivem em países desenvolvidos. Apenas como comparação, quantos franceses, por exemplo, podem pagar por um quarto de 730 euros (o mais barato) no Ritz Hotel (cinco estrelas) de Paris?

 

Liberalização econômica?

 

Será que estas reformas levam para uma certa liberalização da economia cubana? Seria um erro pensar isso. É preciso lembrar que nos anos 1980 os cubanos tinham acesso com abundância aos bens de consumo. Trata-se simplesmente de que estão suprimindo restrições que já não têm razão de ser. Outras deverão vir a seguir, muito em breve. Assim, o governo decidiu alugar terras ociosas para pequenos produtores privados com a finalidade de aumentar a produção agrícola, no momento em que os preços das matérias primas atingiram picos históricos.

 

As verdadeiras mudanças em Cuba ocorreram em 1959 e a ilha está em constante evolução desde essa data. Lá, a crítica é constante e basta ler a imprensa nacional para ficar convencido disso, especialmente os jornais Juventud Rebelde e Trabajadores, cujo tom é extremamente incisivo e sem concessões. Há uma vontade política inegável, entre os altos dirigentes, de promover o debate. A própria filha de Raúl Castro, Mariela Castro, sexóloga que defende os direitos das minorias gay e lésbica, advogou em favor do "socialismo, porém com menos proibições". Mas a mídia finge não perceber esta realidade.

 

Contrariamente ao que pretendem - e esperam - as multinacionais da informação, Washington e União Européia, os cubanos não voltarão para uma economia de mercado, senão que vão continuar se esforçando na construção de um socialismo moderno, mais justo e mais racional.

 

Originalmente publicado no site http://www.rebelion.org/

 

Salim Lamrani é escritor francês e especialista nas relações Cuba-Estados Unidos. E-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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