Há 200 anos a corte portuguesa fugia para o Brasil

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Mário Maestri
10/12/2007

 

 

Em 1793, a Coroa lusitana participara da primeira coalizão contra a República Francesa revolucionária, vista pelos liberais portugueses com grande esperança. Em 1796, após a burguesia francesa conservadora apoderar-se do poder e reprimir as massas populares, Portugal abandonara a coalizão, mantendo difícil neutralidade quanto ao confronto anglo‑francês.

 

Ingleses e franceses exigiam que Portugal tomasse partido. Uma decisão difícil. Optar pela França significava perder o Brasil, pois a Inglaterra apoiaria a independência da colônia. Apoiar os ingleses era selar a invasão de Portugal pelos franceses, senhores do continente. Portugal seguiu saltando nos dois pés.

 

Em 1807, Napoleão Bonaparte ordenou a ocupação e desmembramento do reino português. Lisboa tratou secretamente com os ingleses o apoio naval à transferência da Família Real e de parte da nobreza ao Rio de Janeiro, medida apoiada pelos britânicos pois significava a liberdade plena para seu comércio com o Brasil.

 

A mudança para o Brasil era idéia antiga. Os Diálogos das grandezas do Brasil já registravam a profecia de astrólogo do rei dom Manuel, o Venturoso, de que a colônia serviria, um dia, "de refúgio e abrigo da gente portuguesa". A aristocracia lusitana tinha consciência de que vivia sobretudo das rendas brasileiras e que o sistema colonial entrava em crise.

 

Em A utopia do poderoso império, Maria de Lourdes Viana Lyra lembra que os reformistas portugueses propunham antecipar-se à independência da colônia criando novo relacionamento político que permitisse a "emancipação" do Brasil, com Portugal como centro europeu e mercantil, no seio de um império português reconstruído. A transmigração para o Rio de Janeiro foi também desesperada resposta a eventual movimento emancipacionista da colônia.

 

Em 26 de novembro de 1807, ao escafeder-se para o Brasil, dom João lançou patético manifesto: "Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutralidade [...] vejo que pelo interior do meu Reino marcham tropas do imperador dos franceses [...] querendo eu evitar as funestas conseqüências [...] contra minha real pessoa e [crendo] que meus leais vassalos serão menos inquietados, ausentando-me eu deste Reino."

 

Na manhã de 29 de novembro, sob a escolta inglesa, partiam do rio Tejo oito naus, quatro fragatas, três brigues, uma escuna e outras embarcações. Dez mil pessoas carregando o que podiam levar – móveis, objetos de arte, louçaria, livros, arquivos... À cabeça da debandada: o príncipe regente dom João; dona Maria Carlota, sua espanhola e em todos os sentidos não muito fiel esposa; dona Maria I, a rainha enlouquecida.

 

Portugal foi abandonado as frágeis e mal-aparelhadas tropas invasoras. Uma resoluta resistência dos exércitos lusitanos, apoiados pela população, impediria certamente a invasão. Mas a mobilização popular assustava mais a aristocracia do que os franceses. Quando da partida, dom João ordenara aos governadores que ficavam que muito bem recebessem, aquartelassem e assistissem os franceses.

 

Para muitos liberais, os soldados de Napoleão entraram em Portugal como libertadores. A coroa e a aristocracia lusitana temiam que os liberais portugueses fizessem o mesmo que o Terceiro Estado fizera na França. A família real escapava também das tropas francesas e da revolução burguesa que estremecia a Europa desde 1789.

 

A transferência da Família Real não constituiu apenas fuga diante das tropas invasoras e do liberalismo europeu. Migrando para o Rio de Janeiro, a aristocracia lusitana fazia virtude da necessidade, transferindo a sede da administração real para a "melhor parte" do império lusitano. Em uma das mais olímpicas demonstrações de falta de raízes e sentimentos nacionais, a grande aristocracia abandonava a terra pátria para melhor defender privilégios sociais e econômicos.

 

Após parada em Salvador da Bahia, o comboio real chegou, meio desgarrado, ao Rio de Janeiro, a 7 de março de 1808, onde o príncipe dom João teria dito ao representante do governo inglês que considerava "muito pouco provável" seu retorno a Lisboa. Voltaria, treze anos mais tarde, acuado pela revolução liberal portuguesa de 1820.

 

 

Mário Maestri, 59, é historiador e professor do PPGH da UPF.

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