As feridas abertas das violações sofridas pelas mulheres na ditadura brasileira

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Inês Virgínia Prado Soares e Lucia Elena Bastos
10/05/2016

 

 

No Brasil, passamos por uma ditadura entre 1964 e 1985. Esse período foi marcado por supressão de direitos e práticas estatais de graves violações de direitos humanos, com ampla repressão contra cidadãos vistos como opositores ao regime militar. Entre as pessoas reprimidas, muitas mulheres sofreram prisões, desaparecimentos forçados, torturas, exílios, homicídios, banimentos, estupros e outras violências. Mas, passados mais de 30 anos, a ferida não cicatrizou.

 

Os fantasmas rondam a nossa democracia. Na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, em abril de 2016, o deputado federal Jair Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais perpetradores da ditadura, comandante do Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-Codi), de 1970 a 1974.

 

A lembrança de Ustra, já declarado torturador pelo Judiciário, causou indignação e perplexidade à maioria dos que sabem de suas crueldades, prevalecendo a sensação de que ainda não se avançou o bastante no trato com o legado de violência da ditadura.

 

Desde o retorno à democracia, com a finalidade de reparação das vítimas e de não repetição das atrocidades, há iniciativas do Estado e da sociedade para a revelação dos acontecimentos mais nefastos do regime autoritário, a punição dos responsáveis, o reposicionamento da memória coletiva, a revelação da verdade sobre as mortes e desaparecimentos e a reformulação das instituições.

 

Muitas dessas iniciativas têm sido acompanhadas e/ou protagonizadas pelo Ministério Público Federal (MPF). Órgão integrante do Ministério Público Brasileiro, o MPF tem legitimidade para atuar na Justiça Federal e, por previsão constitucional, possui a função institucional de promover privativamente a ação penal pública e proteger os interesses coletivos e difusos (com adoção de medidas judiciais ou extrajudiciais).

 

O MPF ocupa um papel importante no cenário local e regional como instituição comprometida e atuante na proteção e promoção dos direitos humanos. Para além do desempenho desta atribuição por todos os procuradores, há a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC/MPF), que é um órgão previsto na Lei Complementar n. 75/1993 (arts. 11 a 16), com exercício primordial de ombudsman nacional.

 

Em relação aos crimes da ditadura, com exceção das violações aos povos indígenas (a cargo da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF), as medidas não penais são capitaneadas pela PFDC/MPF e o trabalho se concentra na responsabilização civil dos perpetradores, na busca pelos desaparecidos e nas ações para o resgate da memória e da verdade.

 

Entre as vítimas da ditadura estão as mulheres, para as quais as leis de gênero específicas se somam ao conjunto de abordagens e mecanismos aptos a reparar as graves violações sofridas. A PFDC/MPF não possui um Grupo de Trabalho sobre gênero e ditadura, mas a falta dele não prejudica uma atuação com esse viés, uma vez que a Procuradoria busca a consolidação, a efetividade das normas de gênero e o diálogo constante tanto com os órgãos públicos quanto com os grupos que lutam por memória e verdade.

 

Os direitos das mulheres têm recebido acolhida e tratamento em documentos produzidos no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e em instrumentos específicos, que compreendem tanto o sistema global quanto o regional de proteção aos direitos humanos.

 

O reconhecimento de que a violência contra a mulher existe nos âmbitos público e privado, e que se constitui numa violação aos direitos humanos, encontra seu marco legal na “Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher” (da ONU), de 1993, e na “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher” (Convenção de Belém do Pará), elaborada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995.

 

A Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher como “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública, como na privada”.

 

Estabelece que a violência contra a mulher compreende, entre outras condutas, a violação, o abuso sexual, a tortura, os maus tratos e o assédio sexual. Esse documento reforça o que a Declaração para a Erradicação da Violência contra a Mulher já estipulava: “a violência contra a mulher permeia todos os setores da sociedade, independentemente de classe, raça ou grupo étnico, renda, cultura, nível educacional, idade ou religião, e afeta negativamente suas próprias bases”.

 

Ainda no plano internacional, no âmbito das mulheres e das violações da ditadura, é aplicável a Resolução n. 60/147, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2005 (Princípios e Diretrizes Básicos sobre direito a recurso e reparação), que trata dos recursos para as graves violações de direitos humanos e de direito internacional humanitário. Nos termos dessa Resolução, a completa e efetiva reparação inclui a restituição, a reabilitação, a compensação, a satisfação e a garantia de não repetição.

 

Um dos mecanismos de reparação utilizados no Brasil recentemente, e que lançou luzes sobre as graves violações sofridas pelas mulheres na ditadura, foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que funcionou de 2012 a 2014. A Comissão da Verdade (CV) é um arranjo institucional que possibilita a responsabilização na esfera pública e a reparação simbólica das vítimas, ao oferecer um espaço oficial para suas narrativas, inclusive para a exposição das violações às mulheres, numa resposta às questões de gênero.

 

A CNV teve a vantagem de aproveitar a experiência das 40 CVs existentes no mundo e contar com vasto conjunto documental, com destaque para o Projeto Brasil Nunca Mais, o Dossiê da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e os acervos da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos, da Comissão de Anistia e do Memórias Reveladas.

 

Em relação à experiência de outras CVs no tema da violência contra a mulher, vale lembrar que nos Relatórios Nunca Más (Argentina, 1984) e Rettig (Chile, 1991) o gênero foi sistematicamente excluído. Somente nos últimos dez anos esta questão passou a ser observada. Ou seja, durante muito tempo a presença feminina não pressupôs um maior questionamento sobre as maneiras específicas de como a violência política também poderia ser caracterizada como uma violência de gênero.

 

À época desses Relatórios se buscava resgatar a violência somente como sendo “política” e, para tanto, as vítimas eram vistas como um grupo homogêneo, no sentido de não possuírem gênero, etnia, raça ou orientação sexual. Embora ambos os Relatórios não assinalem a temática da tortura e da violência sexual, é possível observar que as distintas narrativas ali contidas podem provar várias possibilidades de enfrentamento da questão acerca da prática de uma “violência político-sexual” e de uma “tortura familiar”.

 

A ausência de atenção específica sobre os atos nefastos contra as mulheres no trabalho das Comissões da Verdade continua a repercutir na atualidade, causando sensação de injustiça e incerteza sobre um futuro sem a repetição das atrocidades.

 

Um ótimo exemplo nesse sentido vem do Peru, onde a filha do ditador Alberto Fujimori (que governou de 1990 a 2000), Keiko Fujimori, acaba de vencer o primeiro turno da eleição presidencial do país, gerando forte preocupação às vítimas de seu pai, atualmente preso.

 

O Relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, de 2003, reconheceu que dezenas de milhares de vítimas foram assassinadas, desaparecidas, torturadas (incluindo estupros e esterilizações forçadas) e detidas de forma arbitrária. No entanto, como nos relatórios da Argentina e do Chile, não há destaque para a questão de gênero, apesar de cerca de 280 mil mulheres, a maioria indígena, terem sido esterilizadas à força entre 1995 e 2001.

 

Em 2015, iniciou-se no Peru a campanha “Somos 2074 e muitas mais”, com o objetivo de criação de uma Comissão da Verdade para apuração dessa atrocidade. Essa Comissão ficaria responsável pela elaboração de um cadastro único de vítimas, pelo reconhecimento da prática de esterilização como crime contra a humanidade e pela implementação de uma política abrangente de reparação.

No caso brasileiro, o Capítulo 10 do Relatório da CNV apresenta diversas narrativas de mulheres, tornando públicos e oficiais os suplícios que sofreram.

 

Nesse Capítulo, fica claro que muitos dos sofrimentos ocorreram porque as detidas eram mulheres. O coronel Ustra é apontado como autor de torturas a grávidas; de exposição das mães machucadas aos filhos crianças, que eram levados ao DOI-Codi para testemunharem a tortura; de conivência com estupros, entre outras crueldades. Apesar do reconhecimento oficial pela CNV e do esforço do MPF para responsabilização criminal dos torturadores, os algozes permanecem impunes. Muitos deles, como Ustra, tristemente reverenciado por Bolsonaro, morreram sem responder por seus crimes.

 

Esse cenário indica que remanesce a necessidade de levantamento de informações e narrativas na perspectiva de gênero. A partir do Relatório da CNV, a expectativa é que a agenda brasileira de direitos humanos tenha as demandas históricas oficializadas como diretrizes de políticas públicas e políticas para mulheres, inclusive.

 

É nesse cenário que se pode identificar uma ampla abertura para o recorte de gênero e para o trabalho da PFDC/MPF em diversas frentes: na busca e identificação das desaparecidas políticas; na contribuição para o desenho de memoriais que apresentem o sofrimento e a luta das mulheres na ditadura; na divulgação das narrativas de mulheres atingidas pela ditadura; e em medidas que melhorem a situação atual das presas, que hoje sofrem violações típicas de gênero.

 

Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora Regional da República.

Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos é Advogada.

Retirado da página do Ministério Público da União.

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