Dilma e Marina na cidade dos sonhos

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Henrique Costa
08/10/2014

 

No ano de 2001, o diretor David Lynch dirigiu e escreveu “Cidade dos Sonhos”, uma delirante história sobre uma candidata a estrela de Hollywood chamada Rita, que se envolve com outra atriz. Esta se envolve com o diretor de um filme no qual as duas atuavam, e Rita, frustrada pelo papel menor e transtornada pelo ciúme, contrata um assassino para dar cabo da ex-namorada. O surrealismo que marca as produções do diretor não permite interpretações definitivas, mas a mais comum é que Rita, a atriz frustrada e invejosa, cai em sono profundo, consumida pela culpa. No sonho que se segue, ela é a protagonista. Investiga crimes, é assediada por produtores de cinema e vive uma relação com a namorada em que ela, ao contrário da realidade, é a figura forte e sua namorada, a vítima vulnerável. Mas o sonho acaba, ela acorda, e os fantasmas lhe assombram até a solução final.

 

Dilma e Marina viveram seu sonho no processo eleitoral de 2014. A segunda, na realidade, já acordou e parece que seu papel de protagonista era mesmo só uma ilusão. Conforme seu sonho ia se desmanchando, os fantasmas iam surgindo, com suas posições mal explicadas e antigas controvérsias. Já a presidente viveu seu sonho até junho de 2013: alta popularidade, sua reputação de gerente implacável contra os “malfeitos” ainda inabalada. Mas, hoje, sua antes certa reeleição se tornou uma dolorosa batalha, e ela, Lula e seu marqueteiro se encarregaram de abrir a caixa de Pandora.

 

O grande fato, todos concordam, é a ida de Aécio Neves para o segundo turno com votação acima da estimada pelos institutos de pesquisa (o que sempre deixa cientistas políticos em maus lençóis). Para Marina, sobrou seu programa, mais com cara de rascunho. Algo que quase resume a saga marinista pela cidade dos sonhos, sua breve viagem pela terra do nunca, pelo país das maravilhas. Marina queria saber qual caminho tomar: perguntou a Walter Feldmann, a Beto Albuquerque, a Neca Setúbal, mas, como diria o gato de Cheshire, isso depende muito de para onde se quer ir.

 

Pois bem. Marina queria chegar no fim da desigualdade, mas sem que banqueiros e empresários perdessem seu quinhão. Queria a sustentabilidade, mas não dá pra abrir mão do celeiro transgênico do mundo. Pensou em abrir mão do pré-sal. Queria, finalmente, uma nova política, além da esquerda e da direita. Uma política contemporânea, inspirada em Daniel Cohn-Bendit, o ex-líder do maio de 1968, que superou os “ismos”, mas com um tempero brasileiro. Uma política “pós-rancor”. Uma política de sonhos onde os políticos não decidem nada e a sociedade brasileira será soberana. Mais de 20 milhões de pessoas acreditaram nela. Mas, infelizmente, não deu, e Jorge Bornhausen vai voltar para o guarda-chuva tucano com pouco a lamentar.

 

Alguns diriam que o país não está preparado para tamanha novidade. De fato, o presidencialismo faz sucesso por aqui porque, afinal, o personalismo ainda cai como uma luva. Herança do populismo? Ninguém vai negar que, apesar do enorme salto organizativo do PT nas últimas décadas, sem o carisma de Lula seria um pouco mais difícil... Assim como Marina, goste ela ou não, conseguiu seus 20 milhões de votos em 2010 no nanico PV porque encarnou uma demanda. Sua Rede não saiu, pelo menos ainda, e ela é, aos olhos do eleitorado, a figura brancaleônica que muitos acreditam poder mudar a forma como se faz política no Brasil.

 

É aí que a coisa complica. Há muito tempo se sabe que, no Brasil, um candidato a presidente tem que assumir a responsabilidade, conta o jargão futebolístico. Portanto, vemos Dilma e Aécio o tempo todo dizendo como “eu construí”, “eu planejei”, “eu demiti”, “eu dei autonomia para a Polícia Federal”. Como se diz no interior, manda prender e manda soltar. Perguntada se poderia rever o fator previdenciário, Marina respondeu, na TV Record, “vamos fazer o que a sociedade brasileira decidir”.

 

Este é o limite da sua plataforma. Alguns dirão que se trata de coerência do discurso da ex-candidata. Outros que lhe faltava lastro social. As duas coisas são verdadeiras e se negam mutuamente. O fato é que a “nova política” é nada mais do que o novo nome, a aparência da tradição conciliadora nacional, agora com uma roupagem tropicalista. Dizer que Marina não esteve à altura do desafio é acreditar que seu simbolismo lhe permitiria avançar a uma posição messiânica, o que por si só já afastaria qualquer paralelo com Collor ou Jânio. Discurso que não cola com a exigência do papel, e aí sua força se esvai.

 

Aécio, por sua vez, retomou o que lhe era devido e um pouco mais. Com uma estrutura partidária consolidada, superou Serra em 2010 e passou o rodo em São Paulo. Um governista típico vai voltar sempre à velha pregação do conservadorismo e sua onda avassaladora e sazonal. A cada quatro anos ela aparece, porque, entre uma eleição presidencial e outra, o amor ressurge em São Paulo, elegendo postes progressistas, ex-sindicalistas no “cinturão vermelho” etc. E ninguém se lembra que o prefeito da capital foi eleito com o espólio de votos de Celso Russomano.

 

Então, em busca de reencantar o petismo, Lula retomou a fórmula, e, mal havia começado a campanha, Alexandre Padilha já mergulhava em um penhasco de rejeição. Melindrar o eleitorado nunca foi uma boa ideia, mas o PT local não concorda. Agora, comissários do partido que viram nas manifestações de junho de 2013 uma inequívoca prova de ingratidão têm a impressão de que a tática de desconstruir Marina – eufemismo da moda para assassinato de reputação na TV e piadas racistas na internet – pode ter revertido para o tucanato. Tão inesperado quanto inteligência brotar de certos gabinetes nos últimos tempos. André Vargas que o diga, com seu punho cerrado com ares de farsa marxiana.

 

Além de constatar que viver em negação é fundamental para quem não cumpre o dever de casa, é importante notar que o PT, além de perder cidades que governa, perdeu bairros da periferia da capital onde nunca o PSDB lhe fez sombra, como o Campo Limpo, tradicional reduto petista que, para azar dos forjadores de mistificações, não é bem um bairro da elite branca saudosa do inverno de 1932. O historiador Lincoln Secco acredita que, para romper a hegemonia tucana, “o PT teria que mostrar à classe média paulista o que pode fazer por ela e, simultaneamente, descobrir como contrapô-la não aos de baixo, mas sim aos muito ricos”. Ninguém lhe deu atenção e Padilha apelou para o manual do partido eleitoreiro: fim da “aprovação automática” e a cereja do bolo, uma “Força Paulista de Segurança” porque, como se sabe, duas estruturas repressoras que não dialogam e sabotam o trabalho uma da outra não é suficiente.

 

No fim do primeiro round, o “rochedo lulista”, como diz André Singer, o subproletariado pauperizado que se consolidou como base do PT a partir de 2006 se manteve intacto. Já no caso da “nova classe média” dilmista, esta não lhe prestará fidelidade, nem hoje e cada vez menos; aos primeiros sinais de estagnação econômica pulará para outro barco. Como dizia Francisco de Oliveira, “as classes médias podem ser portadoras de morte ou saúde, e disso sabiam os velhos alquimistas”: tudo depende da dosagem do veneno.

 

Enquanto isso, ciscando em outros terreiros, a campanha de Dilma tenta lhe dar uma cara “pop” com suas fotos de presa política espalhadas pelas redes sociais em design warholiano, quando mais realista seria seu retrato pintado por Romero Britto. Sem o “hope” no rodapé, tenta dar à juventude uma opção delirante. Na verdade, o que se tenta simbolizar é exatamente o horizonte utópico e transformador que marca a juventude da candidata e do partido, ou o sonho de Rita. Uma aparência, portanto, que em nada lembra a essência burocratizada do partido no poder. Mas qual é a utopia? O que se espera no horizonte dilmista, agora com uma bancada ainda mais conservadora, o PT com dezoito deputados federais a menos e ainda mais partidos para acomodar na governabilidade?

 

Junho de 2013 pode não ter alavancado a candidatura de ninguém, e alguns até foram reconduzidos como se nada tivesse acontecido, como a dupla Cabral/Pezão no Rio de Janeiro e Alckmin em São Paulo. Vladimir Safatle crê que não há possibilidade para uma terceira via no Brasil: “Em um país que tem problemas de saúde, mas que uma parcela da população tem preconceitos sobre importar médicos, não há como ter uma terceira via”. Com a enorme desigualdade encrustada em solo nativo, “juntar Chico Mendes com Itaú” é o sonho do centro pós-materialista, que ainda passa distante das classes subalternas, enquanto a polarização tradicional respira, mas por aparelhos.

 

Henrique Costa é mestrando em ciência política na USP.

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