Egito: o povo está vencendo

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Luiz Eça
26/11/2011

 

Não foi o exército que venceu a revolução egípcia. Ele apenas a aceitou - como mal menor. O regime de Mubarak chegara ao fim. Tinha o povo todo contra ele, a opinião pública internacional, a maioria dos governos árabes e ocidentais. Não valia a pena ao exército sujar sua imagem de modo definitivo, transformando a Praça Tahrir num mar de sangue. E tudo na defesa de um governo que chegava ao fim, cujo provável sucessor seria o filho querido do ditador, um “garoto” de mente pró-Ocidente que venderia o país.

 

Tomando decisivamente a liderança da revolução, o exército pensava preservar seu poder. Ele não pretendia abandoná-lo. Apenas num futuro, o mais distante possível, poderia partilhá-lo com políticos civis pragmáticos, prontos a aceitar a manutenção dos privilégios militares.

 

Que não são poucos. No período Mubarak, o exército tornou-se proprietário de uma série de empresas, em geral dirigidas por generais reformados, que atuam nas áreas de veículos, tecidos, alimentação, cimento, construções, turismo, gasolina, aparelhos elétricos e plásticos, representando 25% da economia.

 

Há já 60 anos, o Egito vem sendo governado por militares. Foram eles que derrubaram a ditadura corrupta e pró-Ocidente do rei Farouk. Foi um deles, o coronel Nasser, que realizou a reforma agrária e pretendeu unir os árabes. Acabou derrotado por Israel, mas teve um enterro de herói, acompanhado por alguns milhões de pessoas.

 

É verdade que seus sucessores acabaram se compondo com os EUA e se tornando fiéis aliados. Até mesmo se estabeleceram relações amistosas com Israel. Mesmo assim, parecia natural que, para assumir o país no período pós-revolucionário, fosse formada uma junta militar. Talvez para deixar claro seu comprometimento com a democracia, os militares nomearam também um ministério civil, porém, com poderes bastante limitados.

 

Prometeu-se realizar eleições democráticas: “Conservaremos o poder até termos um presidente”, disse o general Mahmoud Hegazy, sob delirantes aplausos populares. E completou afirmando que isso aconteceria num prazo máximo de seis meses.

 

Mas a lua de mel durou pouco. Surgiram protestos contra a demora em julgar Mubarak, a manutenção de ministros e policiais comprometidos com as violências do regime anterior, a brandura com que foram julgados os mais odiados dentre eles e a permanência da Lei de Emergência, que dava à junta militar amplos poderes para prenderem quem desejasse.

 

As manifestações populares foram reprimidas com violência. Seguiu-se grande número de prisões: 14.000 em sete meses. Os presos foram julgados por tribunais militares. Que condenaram centenas deles a penas que iam de alguns meses a oito anos de prisão.

 

Mas as manifestações pedindo o fim das Leis de Emergência e do julgamento de civis por tribunais militares não pararam. Nesse clima, a campanha eleitoral começou.

 

População e os políticos duvidavam que os militares entregassem o poder e que as eleições parlamentares e presidenciais, marcadas para setembro e novembro, respectivamente, se realizassem.

 

Em fins de outubro, a Junta Militar convocou os líderes de 13 partidos para lhes apresentar um acordo que mantém o Supremo Conselho das Forças Armadas no governo até 2012 ou inícios de 2013. Esse acordo estabelecia um novo calendário eleitoral.

 

As eleições da Assembléia do Povo (equivalente à Câmara dos Deputados) começariam em outubro e prosseguiriam em três etapas, findando em janeiro. As eleições para o Conselho Shura (Senado) começariam em janeiro e seriam concluídas em março.

 

As duas Casas se reuniriam, então, num período entre fins de março ou começo de abril para eleger os membros de uma assembléia exclusiva para redação da nova Constituição num prazo de mais um ano, quando então seria submetida ao povo. Depois disso, seriam marcadas novas eleições presidenciais e parlamentares em fins de 2012 ou nos primeiros meses de 2013.

 

O novo calendário eleitoral, aplaudido por uma Hillary Clinton que teme a vitória da Irmandade Muçulmana, foi enfiado goela abaixo dos líderes dos 13 partidos.

 

No começo de novembro, a junta apresentou aos partidos alguns princípios e regras que deveriam constar da nova Constituição. Seu objetivo era preservar os privilégios dos militares, manter os assuntos de sua área fora da alçada do governo civil e conferir a eles, militares, a posição de guardiães da democracia. Confirmavam-se assim as suspeitas de que os generais pretendiam ser praticamente um Estado dentro do Estado.

 

Mas o povo não aceitou. Voltaram a acontecer manifestações de protesto no Cairo, convocadas por diversos grupos. Até que, em 18 de novembro, o povo voltou à Praça Tahrir, uma multidão, clamando pela marcação imediata das eleições presidenciais.


A princípio, a Irmandade Muçulmana, o maior agrupamento político do país, com cerca de 500 mil membros, recomendou calma, que o melhor seria seguir o caminho das negociações. Ficou fora. Na opinião dos seus chefes, mais importante seria garantir as eleições parlamentares marcadas para novembro, quando, segundo as pesquisas, teria 30% dos votos e o primeiro lugar destacado entre todos os partidos.

 

O povo continuou na Praça Tahrir, agora exigindo a saída imediata dos militares. Porém, a repressão foi mais violenta do que nunca: 38 mortos e quase 1.300 feridos. A Anistia Internacional divulgou um documento acusando a junta de ter fracassado em garantir os direitos humanos, descumprindo suas promessas, e cometido violências piores do que as do tempo de Mubarak.

 

Então, a maioria dos membros da Irmandade Muçulmana passou a engrossar os protestos. E o ministério civil fantoche resignou.

 

Assustados, os militares procuraram uma conciliação. Novamente os líderes partidários foram chamados e receberam a proposta de antecipação do pleito presidencial para julho do ano que vem.


No entanto, não estavam dóceis mais. Fortalecidos pelo apoio popular, exigiram eleições em abril e demissão da Junta Militar antes do início do verão, ou seja, até 21 de dezembro.

 

O marechal Tantawi foi à TV e repetiu a proposta de eleições do presidente em julho, quando então a Junta Militar renunciaria. Falou também na formação de um Ministério de Salvação Nacional, com figuras de confiança do povo.

 

Em vão. O povo não mais confiava no exército. Havia prometido sair em seis meses; 10 meses depois, continua no poder e ainda quer ficar mais nove meses. Era inaceitável.

 

Como último lance, os militares convocaram novamente os partidos e as forças populares a uma reunião para buscar um entendimento. Na ocasião, pretendem apresentar um novo ministério, com figuras respeitadas pelo povo. El Baradei, ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica e Prêmio Nobel da Paz, foi convidado para ser o novo primeiro-ministro. Mas só aceitará caso tenha poderes plenos para governar. O que dificilmente os militares concederão, pois aí ficariam sem função.

 

Tantawi chegou mesmo a falar em plebiscito para o povo decidir se querem ou não que eles saiam. Mas ninguém acredita que seja para valer.

 

Enquanto isso, embora a campanha eleitoral tenha parado, as eleições parlamentares continuam marcadas para segunda-feira, 28 de novembro. Se não forem adiadas, é certo que a Irmandade Muçulmana sairá como a mais poderosa força política do país. Desta vez endossada por esperados 30% dos votos.

 

Os militares farão de tudo para cooptá-la, de olho na grande massa de egípcios que ela passa a representar. Mas esses 30% dos votos darão forças para a Irmandade assumir as reivindicações da Praça Tahrir. Será um interlocutor poderoso que o exército terá de respeitar. Como a Irmandade emergiu dos cárceres de Mubarak moderada, é de se supor que ela aceite certas concessões.

 

No entanto, a decisão final não estará nas mãos dela. O povo, na Praça Tahrir, terá a palavra final. Alguns jornais falam em “Segunda revolução egípcia”. É mais crível que a verdadeira revolução começou agora.

 

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: www.olharomundo.com.br

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