Traficantes do bem

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Luiz Eça
03/04/2009

 

Diz o jornal "Der Spiegel" que, no dia 21 de março, uma tropa de soldados americanos atacou uma pousada na cidade afegã de Iman Sahib, pertencente ao prefeito local, matando três funcionários e dois hóspedes e prendendo quatro pessoas. Esclareceram que um dos presos seria importante líder da Al Qaeda (todas as outras vítimas eram inocentes). Verificou-se depois que se tratava apenas de um chefão local do narcotráfico. Quem dera a dica errada também era do ramo e enganara os americanos, que foram assim usados como pistoleiros para livrar o informante de um concorrente.

 

Como um narcotraficante poderia estar tão próximo do exército americano a ponto de gozar de sua confiança?

 

Respostas podem ser encontradas na história recente do Afeganistão.

 

Quando o exército soviético invadiu o país em 1979, a CIA montou a resistência associada ao ISIS, serviço secreto do Paquistão, recrutando guerreiros islâmicos de variadas procedências, inclusive talibãs, senhores da guerra e terroristas como Bin Laden, então no início de sua carreira. Contando com muito dinheiro e grande quantidade de armas, a guerrilha avançou a partir da fronteira do Paquistão. À medida que ia libertando territórios, seus chefes, "para fazer caixa", induziam os camponeses a plantarem papoulas, da qual se extrai o ópio, matéria-prima da heroína. Antes disso, a produção do país era mínima. De acordo com o pesquisador Alfred McCoy, professor da Universidade de Michigan: "Depois de 2 anos de operações da CIA no Afeganistão, a região próxima à fronteira com o Paquistão tornou-se a maior produtora mundial de heroína". Ele diz mais: "Os líderes afegãos e os sindicatos locais, sob a proteção da Inteligência do Paquistão, operaram centenas de laboratórios de heroína. De acordo com o Washington Post (maio de 1990), o chefão Gulbuddin Hekmatyar recebeu metade das armas que os Estados Unidos enviaram para a guerrilha. Embora fosse conhecido como narcotraficante, a CIA manteve uma aliança com ele. Posteriormente, Charles Cogan, ex-chefe da CIA no Afeganistão, explicou por que: "Nossa missão era causar o máximo de dano possível aos soviéticos...". E assim os americanos fecharam os olhos para os negócios de heroína dos seus parceiros afegãs.

 

A guerra para expulsar os soviéticos durou 10 anos. Em seguida, o poder foi disputado por vários grupos e os talibãs acabaram vencendo. Imediatamente proibiram o ópio reduzindo sua produção em 90%, em apenas um ano (2000-2001). Essa foi a principal razão que levou o chamado "exército do norte" e outros senhores da guerra a aliarem-se às forças da NATO, lideradas pelos Estados Unidos, quando da invasão do Afeganistão, em 2001.

 

Com a derrota do regime talibã e a ocupação do país pela NATO, a exploração do ópio e da heroína acelerou-se. Em 7 anos, a produção de heroína aumentou 33 vezes e o Afeganistão passou a fornecer 93% de todo o ópio consumido no mundo. A renda gerada para os narcotraficantes afegãos chegou a quase 3 bilhões de dólares anuais. Por sua vez, os rebeldes talibãs, deixando de lado seus princípios religiosos, passaram a cobrar "taxas de proteção" dos produtores de ópio, que hoje representam cerca de 100 milhões de dólares por ano, conforme o general americano McKiernan.

 

Durante todo esse tempo, ONGs e políticos americanos clamaram contra essa vergonhosa situação. O governo afegão até que tentou uma campanha de erradicação das culturas de papoula, usando o exército e seguranças estrangeiros. Mas, como se vê pelos números acima, não deu certo. Craig Murphy, ex-embaixador da Inglaterra no Usbequistão (rota de saída da heroína afegã), informou um dos motivos no "The Mail Online", de 31/3/2009: "Os 4 maiores chefões do narcotráfico são importantes membros do governo. O governo que nossos soldados estão lutando e morrendo para proteger". Aleksandr Mikhaylov, chefe do departamento de informações do controle de drogas da Rússia, vai aos detalhes: "As autoridades locais forjam listas de grandes quantidades de safras destruídas, quando, na verdade, nenhuma o foi".

 

Estranhamente as forças de ocupação da NATO, onde os americanos são maioria, se omitiram sob a alegação de que o combate ao ópio cabia ao governo afegão. Em outubro do ano passado, porém, o comandante do exército americano, o general McKiernam protestou. Ele declarou que a guerra não deveria ser só contra os talibãs e a Al Qaeda, mas também contra "…o sistema narcotráfico e a corrupção que representam um desafio para o futuro do país".

 

O presidente Obama concorda. De acordo com seu plano, os Estados Unidos, por fim, deverão enfrentar os narcotraficantes. Não será fácil. Afinal, muitos deles contam-se entre seus firmes aliados, velhos amigos da CIA, hoje membros do governo que os americanos apóiam. Como, a propósito, é aquele notório traficante responsável pelo episódio de Imam Sahib, onde, iludidos por ele, soldados americanos mataram cinco inocentes, na crença de que estavam vibrando um golpe arrasador na Al Qaeda.

 

Luiz Eça é jornalista.

 

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