Armistício

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Frei Betto
10/12/2007

 

 

A rixa entre as famílias Teixeira e Brandão exigiu a presença de meu avô, oficial da Polícia Militar de Minas, para selar a paz no município dominado por elas. Ali os anos se sucediam atracados a uma coleção de cadáveres. As genealogias derramavam-se em necrofilias.

 

Na memória local apagara-se a origem do conflito. Uma questão de terras, diziam uns; segundo outros, a disputa por uma nascente que brotava do umbigo da Mantiqueira.

 

Há três gerações, Teixeira e Brandão vingavam sucessivamente seus respectivos mortos. Se um Brandão era abatido, a morte de um Teixeira fazia-se questão de tempo. Podia ocorrer na semana seguinte, quando nem ainda esfriara o defunto adversário; um ou dois meses depois; ou completado um ano.

 

Ambas as famílias precaviam-se à iminência de uma emboscada. Os Teixeira circulavam pela cidade apertados num cinto de capangas e infiltravam espias nas hostes dos Brandão para denunciar o menor sinal de retaliação à vista. Os Brandão guardavam-se ciosos em seus sítios e fazendas, e até as crianças traziam uma arma sob a roupa.

 

Uma semana antes de meu avô aquartelar-se no prédio do antigo grupo escolar, acompanhado de uma dezena de soldados, um Teixeira havia sido abatido no leito da amante. Para a família da vítima, a mulher se cumpliciara com os Brandão em troca de um baú forrado com barras de ouro. Contados cinco meses, um Brandão teve o ventre trespassado por pontiagudo punhal enquanto assistia à missa de sétimo dia da sogra. Assim, ano a ano desfolhavam-se as árvores genealógicas das duas famílias.

 

Meu avô convocou os chefes dos clãs para uma entrevista. Ralhou com um, ameaçou outro, e asseverou: “Deixarei insepultas as próximas vítimas dessa maldita rixa”.

 

Ao cabo de treze dias, um corpo da família Teixeira tombou atrás do mercado. Trazia a assinatura dos Brandão: tiro atrás da orelha direita. O moleque que o descobriu lançou-se aos gritos em correria desabalada pela rua principal: “Mataram mais um! Mataram mais um!”

 

Meu avô e três ordenanças cercaram a vítima com quatro estacas e uma corda. E afixaram uma placa: “Proibido tocar.” Um soldado ficou de guarda para evitar que os Teixeira viessem dar sepultura ao finado.

 

Mal a rigidez cadavérica emitiu os primeiros eflúvios de carne apodrecida, um Brandão apareceu morto no galinheiro do sítio em que morava. A arma branca enfiada pelas costas dissipava dúvidas: vingança dos Teixeira. Meu avô mandou recolher as penosas no invernadouro e, na tela que servia de porta, pregou o aviso: “Proibido entrar”.

 

A deterioração dos cadáveres atraiu urubus e afastou viventes. Suspenderam-se as aulas da escola nova, vizinha ao mercado. Este teve o seu comércio prejudicado devido ao cheiro pútrido que o infestava. Nas aforas da cidade, abriu-se desvio na estrada para que as narinas de tropeiros e viajantes não inalassem o odor nauseabundo do corpo estirado no galinheiro.

 

Bastou os vira-latas, dias depois, aparecerem lingüiçando tripas pelas ruas, para os Teixeira e Brandão baterem à porta do meu avô. Vinham dispostos a selar a paz e dar sepultura santa a seus mortos. Precavido, o oficial lavrou um termo de compromisso e mandou que assinassem. Após mútuos cumprimentos, os enterros foram autorizados.

 

Dois anos mais tarde, Analice, sobrinha da vítima do mercado, subiu enoivada o altar da igreja matriz para prometer amor eterno a Laurindo, filho do defunto do galinheiro.

 

Brandão e Teixeira não chegaram a um acordo quanto ao local da recepção. Uns e outros insistiam promovê-la em suas respectivas fazendas. Frente ao impasse, meu avô cedeu o pátio do improvisado quartel para a festa de casamento.

 

 

Frei Betto é escritor, autor de “Treze contos diabólicos e um angélico” (Planeta), entre outros livros.

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