Classes e luta de classes: transição transada

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Wladimir Pomar
03/06/2014

 

 

As tentativas políticas do general Figueiredo e de seus companheiros de ditadura visavam levar adiante a estratégia política de uma abertura sob controle. Pretendiam a implantação, primeiro, de uma “democracia disciplinada”. Depois, tiveram que evoluir para uma democracia liberal, que teria à frente outro general de exército. Mas naufragaram definitivamente nos primeiros meses de 1984, vinte anos depois do golpe militar que levou os militares ao poder quase absoluto.

 

Mais tarde, o brigadeiro Penido Burnier disse que o general Figueiredo foi o coveiro do regime militar, ao jogar por terra os “ideais da revolução de 1964”. No entanto, talvez Figueiredo tenha sido simplesmente o “duro” que salvou as Forças Armadas de serem desmoralizadas por levarem o Brasil a uma situação de total inadimplência e desgoverno.

 

Em 1980, a luta de classes dos trabalhadores já havia colocado em xeque a capacidade do regime em continuar governando como até então, e lhe impôs uma derrota decisiva. Em 1981, a tentativa do ato terrorista do Riocentro colocou a nu a incapacidade do regime em controlar seus aloprados, como o próprio Burnier, e puni-los exemplarmente. Havia sinais claros de desagregação nas Forças Armadas.

 

Nos dois anos seguintes, todas as classes envolveram-se na disputa de substituição do regime, embora nenhuma delas tivesse acumulado força suficiente para se impor às demais e à ditadura. Esta, por outro lado, havia perdido sua capacidade, seja pelo desastre econômico, seja pelas terríveis condições sociais de miserabilidade, criadas pelo “milagre” de 1968-1973 e agravadas pela crise das décadas seguintes. A destruição imposta à cultura e às ciências também pesava indelevelmente sobre o regime. Tudo isso o impedia de apresentar-se numa forma reciclada e de continuar gerindo o país através de um sucessor militar.

 

Numa situação como essa, e diante da campanha das ”Diretas Já!”, lançada por setores populares, pelo PT e por correntes internas do PMDB, a única saída que ainda restava ao regime ditatorial era a negociação para manter o Congresso como colégio de eleição do próximo presidente. Mas, desde que o presidente fosse um civil. Em certo sentido, pode-se dizer que o general Figueiredo ainda conseguiu uma saída honrosa, articulando-se com os representantes políticos da burguesia que haviam se metamorfoseado em “democratas” e “liberais” e disputavam a hegemonia do crescente movimento popular.

 

Figueiredo engoliu sem regurgitar a divisão do PDS e a criação do PFL, assim como o lançamento da candidatura Tancredo-Sarney. Importante para o regime foi a derrota da emenda das diretas. Assim, embora tenha se negado a passar a faixa presidencial ao “renegado” Sarney, conseguiu o desengajamento dos militares e sua volta aos quartéis. E deixou como legado uma transição que evitou um ajuste de contas mais consistente com as consequências dos 21 anos efetivos de regime militar. Até hoje permanecem vivas muitas das concepções conservadoras e reacionárias típicas da ditadura, freando a participação democrática das classes populares no poder.

 

Parece ser realidade a suposição do general Figueiredo de que o período ditatorial seria tomado “como um acontecimento irreversível que, transformando qualitativamente a sociedade brasileira pelo alcance de sua obra extraordinária, projetaria sobre o futuro um ideário que há de inspirar muitas gerações”. O país ainda hoje, cerca de 30 anos após o enterro do regime militar, convive com milhões de excluídos, com uma desigualdade econômica, social e política horripilante, que produz uma verdadeira guerra fratricida nas favelas e periferias, e transborda para os demais bairros das cidades, onde hoje vivem mais de 84% da população.

 

A economia brasileira, assim como os meios de comunicação, continua monopolizada pelas mesmas empresas estrangeiras e nacionais que se consolidaram durante o “milagre” ditatorial. É verdade que essa situação foi agravada durante o período neoliberal, mas sua origem se encontra no regime militar. Desfazer essa herança e ingressar num desenvolvimento que articule os aspectos econômico, social, ambiental e político tornou-se uma tarefa de longo prazo. Tarefa na qual a burguesia não pretende se engajar, principalmente se tiver que democratizar a propriedade e intensificar a redistribuição da renda.

 

Para ela e seus representantes políticos e militares, um Estado capitalista de bem-estar social é palavrão impublicável. Socialismo, então, é inconcebível, mesmo que seja um socialismo de mercado. Nessas condições, os velhos argumentos de 1964, retomados pelo general Chagas, pelo coronel Boggo e por outros militares saudosos dos “anos de chumbo” parecem fora de tempo e de lugar, mas são a expressão dos mesmos interesses que conduziram aos golpes de 1945, 1954, 1955 e 1961, e à “revolução redentora” de 1964.

 

Assim, não é coincidência que eles reiterem que os objetivos do PT sejam os mesmos das forças populares antes de 1964. E que estas devam, como naquela época, encontrar “em seu caminho os mesmos obstáculos: as FFAA e a mídia”. É lógico que eles mistificam. Não citam a Igreja, parte considerável da pequena-burguesia urbana, praticamente quase todo o empresariado, assim como o governo norte-americano e seus agentes no Brasil. Todos mobilizados em torno da defesa de Deus, da Família e da Propriedade, dando ao golpe militar a cobertura cívica e política para justificá-lo.

 

E também mistificam ao desconsiderar que parte considerável da oficialidade militar não apoiou o golpe. Mais de 4 mil oficiais, entre os quais dezenas de generais, foram expulsos das forças armadas, já na primeira onda de cassações. Colocando esses fatos de lado, a direita radical de hoje assegura que os objetivos petistas “alimentam um extremado ressentimento” contra as forças armadas, “que se traduz por um revanchismo exacerbado, principalmente porque elas são a instituição mais prestigiada pela população”.

 

Ou seja, confundem deliberadamente coisas opostas. Uma é a necessidade histórica de que as Forças Armadas sejam guardiães da soberania nacional e observem uma firme disciplina subordinada aos processos democráticos, que necessariamente incluem a luta de classes. Outra é a necessidade histórica de tirar lições daquilo que até mesmo alguns “duros” do regime militar chamam de “erros da revolução”.

 

Uma coisa é considerar que as forças armadas precisam ser modernizadas, como forças de dissuasão contra qualquer inimigo externo que pretenda ferir nossas fronteiras. O que deve incorporar o conceito de que a defesa nacional não é estritamente militar, mas um conceito eminentemente político. A defesa da soberania nacional, que abrange aspectos militares, políticos, econômicos, sociais e culturais, precisa contar com a participação democrática das diferentes classes sociais que constituem a população brasileira. Sem a mobilização do conjunto da população não será possível enfrentar qualquer ameaça externa, mesmo na época dos drones. Ou seja, os militares não são, nem podem ser, tutores da nação. E precisam amoldar-se democraticamente a esse fato, até mesmo para poderem cumprir seu papel institucional.

 

Outra coisa é  aprender com o passado de mais de 20 anos de regime militar. Isto é, confrontar aquilo que vários militares, inclusive generais, que vivenciaram os chamados “anos de chumbo”, declararam, em alto e bom som. Isto é, que as Forças Armadas, para exercerem seu papel constitucional, não podem servir aos interesses escusos da plutocracia endinheirada. Nem permitir que alguns oficiais se utilizem de seu nome para praticar atos terroristas, torturas, corrupção, contrabando e outras ações criminosas, a exemplo do assassinato e desaparecimento de presos políticos, inclusive liberais, e da tentativa de assassinato em massa dos que assistiam à comemoração do 1º de maio de 1981, no Riocentro.

 

Em outras palavras, as Forças Armadas escaparam de se tornar uma instituição totalmente desmoralizada porque grande parte de sua oficialidade, mesmo sendo politicamente conservadora, se convenceu da necessidade de enquadrar os “duros” e realizar uma retirada estratégica de “retorno aos quartéis”. Portanto, elas só se tornaram uma instituição prestigiada pela população após 1985, justamente porque se mantiveram nos quartéis e estritamente dentro das normas constitucionais. Isto embora alguns de seus membros amarrem a cara ao serem cobradas pelos desmandos anteriores.

 

Para que a apreciação positiva da população seja permanente, as forças armadas não podem dar ouvidos às novas “vivandeiras de quartéis”. Nesse sentido, é imprescindível que a nova oficialidade tenha um conhecimento circunstanciado daqueles “erros” e dos atos ignóbeis praticados em seu nome, entre 1964 e 1985. As Comissões da Verdade, ao invés de alimentarem ressentimentos, têm o objetivo de vacinar as forças armadas contra os perigos que voltam a rondá-la, a exemplo das premonições fantasiosas do general Chagas e das falsidades pseudo-acadêmicas do coronel Boggo.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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