Classes e luta de classes: classe trabalhadora e ditadura

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Wladimir Pomar
19/05/2014

 

 

A classe trabalhadora que emergiu nas greves de 1978 em diante não era a mesma que travara as grandes lutas dos anos 1950 e início dos anos 1960. Entre 1965 e 1973, a ditadura atraíra grandes capitais estrangeiros para a área metalomecânica. E, ao realizar a modernização capitalista dos latifúndios, expulsara grandes massas de trabalhadores dos campos para servir como força de trabalho na industrialização. Essa nova classe trabalhadora, portanto, foi filha do “milagre econômico”. E sua força se devia, em grande medida, ao fato de haver sido concentrada na região metropolitana da capital paulista, compreendendo quase 10 municípios, com destaque para os santos ABC.

 

As empresas estrangeiras e nacionais do período do “milagre” haviam contado, então, com uma enorme força de trabalho excedente, livre de qualquer propriedade de meios de produção e à disposição de quem quisesse comprá-la no mercado. Além de se beneficiarem com o fato de essa força de trabalho considerar o salário, mesmo sob arrocho, uma conquista nova e positiva, os capitalistas ainda contavam com uma legislação draconiana de salários comprimidos e impeditiva de greves e manifestações. A burguesia sentia-se no paraíso.

 

No entanto, à medida que a crise se instalou, a inflação subiu e o “milagre” mostrou sua cara verdadeira, a nova classe trabalhadora começou a despertar para a realidade da exploração capitalista e para a existência de um regime que não tolerava reivindicações. “Operações tartaruga”, pressões para a organização e funcionamento de comissões de prevenção de acidentes e outras manifestações dentro das fábricas eram sinais de que havia mudanças nas ilusões e no humor daquela classe que operava as máquinas.

 

Em 1978 esses sinais transformaram-se em mobilizações grevistas, a partir da experiência das “máquinas paradas” da Volvo. Elas se espraiaram por toda a zona fabril do ABC e da capital paulista. Foram seguidas de greves de várias outras categorias profissionais e engrossadas pelo Movimento do Custo de Vida. A insatisfação diante do arrocho salarial e da carestia rompeu a proibição de greves e reivindicações trabalhistas, tisnando os movimentos dos trabalhadores de um evidente caráter político. Ao encarar problemas econômicos, sociais e políticos como problemas militares de segurança nacional, a ditadura armou a própria arapuca que a impedia de tratar as greves por salários como problemas econômicos e sociais.

 

Desde as últimas greves e manifestações de 1968, os trabalhadores de todos os tipos viram-se reprimidos por uma década inteira. Nessas condições, ao derrubarem a proibição das greves, as camadas populares também se jogaram a lutas de confronto com as forças policiais, que resultaram em quebra-quebras. Frente à tsunami de mobilização social, o governo militar não só reiterou sua disposição de combater a proliferação de movimentos reivindicatórios, como afirmou que tais movimentos não podiam nem deviam utilizar conceitos democráticos para apressar as mudanças em curso. Da mesma forma que faziam os políticos centristas e o PCB, o regime considerava que a mobilização social levaria a retrocessos políticos, não à democracia.

 

Ao atirar essa pedra sobre as centenas de milhares de trabalhadores mobilizados, a ditadura politizou ainda mais o movimento econômico e social, colocando-o diante do significado real da democracia. Jornais e revistas da época conseguiram colocar em circulação algumas das expressões que pessoas comuns utilizavam para explicar o conceito democracia. Iam dos simplórios “homem livre”, “não cativo”, “direito de reclamar” aos mais complexos “demonstração da vontade popular” e “participação do povo no governo”. O que nada tinha a ver com a concepção de “democracia disciplinada” do governo militar.

 

Durante todo o ano de 1978, tendo por base uma série de greves mobilizando centenas de milhares de trabalhadores, inúmeros dirigentes sindicais passaram a realizar reuniões conjuntas e a discutir suas reivindicações e suas opiniões sobre a democracia que achavam necessária para o país. De imediato, chegaram a uma pauta comum, incluindo direito de greve, autonomia sindical, revogação da Lei Falcão, fim dos senadores biônicos, eleição direta, justa distribuição de renda, e outras reivindicações que extravasavam as pautas econômicas e sociais e ingressavam decididamente na pauta política.

 

No final daquele ano, os metalúrgicos de São Bernardo aprovaram a criação de uma Central Única de Trabalhadores e passaram a trabalhar no sentido de colocar em prática a decisão, embora o governo tenha declarado tratar-se de uma ilegalidade. Sem forças para debelar a onda grevista e o processo de organização sindical e político dos trabalhadores, o governo Figueiredo convocou alguns dos dirigentes sindicais mais destacados, como Lula, Olívio Dutra e Arnaldo Gonçalves, para chegar a algum tipo de acordo quanto aos reajustes salariais e o combate à inflação. O governo queria um limite de 5% nos aumentos salariais e uma trégua de dois anos nas greves.

 

Nessa mesma linha, na comemoração do 1º de maio de 1979, o presidente Figueiredo tentou fazer uma salada mista. Prometeu combater a inflação e, ao mesmo tempo, considerou “insensatas” as reivindicações de aumentos salariais, tentando jogar sobre os trabalhadores a culpa pela elevação inflacionária. Para completar, ameaçou “aplicar as leis” contra os que ameaçavam o “estado de direito” e a “tranquilidade da família brasileira”, ou conduziam à “desordem social”.

 

Com razão, e boa dose de coragem, os sindicalistas afirmaram que as liberdades democráticas jamais haviam existido para os trabalhadores. E colocaram em dúvida a existência de um “estado de direito” que não respeitava a liberdade individual e coletiva, nem o habeas corpus, revogados pelo AI5. Em outras palavras, o novo sindicalismo expressava o aprendizado das bases operárias em seu confronto diário com o patronato e, naquela ocasião, com o aparato antigreve da ditadura. Um conjunto de dirigentes sindicais amadurecia rapidamente frente aos problemas políticos da sociedade brasileira e concluía que a democracia pretendida pelos militares no poder nada tinha a ver com a democracia com liberdades públicas.

 

Essa percepção se tornou cada vez mais consciente à medida que as greves eram consideradas e tratadas, seja pelos empresários, seja pelo governo, como um assunto de segurança nacional. A pretexto das reivindicações e mobilizações dos trabalhadores causarem empecilhos à abertura política, e ao tipo de democracia pretendido pelo regime em seu processo de retirada estratégica, o grupo militar no poder desdobrou-se para convencer o conjunto da população de que os trabalhadores agiam contra os interesses nacionais e eram um perigo que ameaçava a todos.

 

Foi em meio a essas tensões sociais, especialmente resultante das lutas dos trabalhadores, que a ditadura decidiu, a toque de caixa, realizar uma reformulação partidária. Seu objetivo tático: dividir a oposição consentida, organizada no MDB, e reorganizar as forças conservadoras em diferentes siglas. Em tese, enfraquecer a oposição, levar em conta as divergências em sua base política, mas aglutiná-la numa frente única de apoio ao regime.

 

Essa reformulação extinguiu os partidos existentes, obrigou os novos partidos a se denominarem “partidos”, proibiu os militantes partidários a ter por base credos religiosos, sentimentos de raça ou classe, e condicionou a existência deles à posse de 10% de representantes na Câmara e no Senado. O general Figueiredo não se esqueceu de alertar que as pessoas podiam ser comunistas, mas não podiam se organizar como partido, algo proibido pela constituição ditatorial.

 

O general Golbery supunha que a reorganização partidária daria lugar a uns quatro partidos. Um congregaria o democratismo radical da pequena burguesia existente no MDB. Outro reuniria os liberais do MDB com alguns liberais presentes na ARENA. Outro atrairia o sindicalismo pelego do antigo PTB. E outro poderia representar os setores mais conservadores da Arena. Golbery temia que Brizola empalmasse a reorganização do PTB e tomou medidas para impedir isso, negociando apoio a Ivete Vargas. Mas não acreditou na possibilidade de os novos sindicalistas tomarem a decisão de organizarem um partido de trabalhadores, que também atraísse as várias correntes de esquerda, derrotadas no processo da luta armada, incluindo setores consideráveis dos socialistas e comunistas.

 

Estava mal informado, pois a essa altura a formação do Partido dos Trabalhadores (PT) já fazia parte da pauta de discussão de parte considerável dos novos sindicalistas e de representantes de várias correntes políticas clandestinas. Além disso, havia uma clara tendência de que o PT assumisse como bandeira a democracia socialista. Isto é, uma democracia em que houvesse iguais oportunidades para todos e atendesse às novas demandas sociais. Nessas condições, a coincidência da fundação do PT com a deflagração de novas greves do ABC foi tomada como confronto à política de abertura do governo militar.

 

Bem vistas as coisas, criou-se uma situação em que foi ficando claro tratar-se de uma daquelas batalhas na qual se decide o resultado da guerra, mesmo que esta ainda se prolongue por algum tempo mais. O governo colocou toda a sua máquina estatal e paraestatal para impedir o sucesso das greves. O próprio Golbery atuava diretamente sobre os empresários para impedi-los de negociar com os grevistas, a pretexto de que seus objetivos seriam políticos, não econômicos. Também pressionava a Justiça do Trabalho para definir a greve como ilegal e decretar a intervenção nos sindicatos. Todas as cartas foram jogadas.

 

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Wladimir Pomar é analista político e escritor.


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