Classes e luta de classes: caminhos do golpe de 1964

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Wladimir Pomar
14/04/2014

 

 

Foi no contexto da cruzada anticomunista dos anos 1950, que procurava jugular as lutas de classe em ascensão, que o Congresso aprovou uma Lei de Segurança Nacional, em 1953. Punia com prisão de 15 a 30 anos quem quer que se denominasse comunista. Apesar disso, a greve dos 300 mil operários, em São Paulo, a colocou em xeque e obrigou o governo e os empresários a fazerem concessões. Para o general Canrobert Pereira da Costa, porém, seguindo a cartilha fascista que orientava a cúpula militar desde os anos 1930, tal greve foi uma subversão e um ato de pré-guerra. O país se encontraria, portanto, diante de uma guerra subversiva.

 

Com base nessa suposição, os setores empresariais e militares da direita não arrefeceram. Articularam um manifesto de coronéis contra o aumento do salário mínimo. Multiplicaram as denúncias contra Vargas, pregando um golpe para derrubá-lo.

 

Toda e qualquer luta social era tomada como maquinação comunista: a crise econômica brasileira; a derrota do colonialismo francês no Vietnã; o início da guerra de independência na Argélia; e os fortes debates sobre um caminho de desenvolvimento autônomo para o Brasil. A resposta, para toda a América Latina, deveria ser a mesma: regimes ditatoriais alinhados com os Estados Unidos.

 

No entanto, apesar da ofensiva da direita, que levou Vargas ao suicídio, proporcionou a posse de Café Filho na presidência e tentou impedir as eleições de 1955 através de um golpe militar, havia setores da burguesia e das Forças Armadas dispostas a manter o arremedo de democracia liberal existente. Juscelino Kubitschek foi eleito por uma aliança que tinha à frente o PSD, partido de parcelas significativas do latifúndio e da burguesia, e incluía o PTB, que tinha hegemonia sobre o sindicalismo, e o PCB, que ainda mantinha sua hegemonia sobre a esquerda.

 

A grande burguesia beneficiou-se consideravelmente com o Plano de Metas de JK, que permitiu uma enxurrada de investimentos estrangeiros indiscriminados. Mas achava inaceitável que os trabalhadores reivindicassem melhores salários e promovessem greves. Os latifundiários, por seu lado, se opunham a que os posseiros pudessem se bater pelo direito de obter títulos de propriedade da terra, e que seus agregados quisessem pagar rendas menores, ou quisessem repartir as terras improdutivas. Essas contradições se agravaram à medida que os investimentos promoveram crescimento econômico e emprego, sem ter como contrapeso uma força de trabalho excedente que pressionasse o rebaixamento dos salários no mercado de trabalho.

 

A maior parte da força de trabalho estava amarrada aos latifúndios, através da servidão por dívidas ou por outros meios extralegais. Nessas condições, os trabalhadores assalariados continuavam mobilizando grandes contingentes para movimentos grevistas por aumentos salariais e outras reivindicações. Em 1957, a greve dos 400 mil, em São Paulo, foi acompanhada de greves em outros pontos do país, e colocou a burguesia em pânico. Pouco lhe importava que o PCB houvesse adotado a chamada  ideologia do desenvolvimento, formulada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), como sua linha mestra. E que esse partido considerasse a fração nacional da burguesia como dirigente do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil.

 

Para a grande burguesia e seus representantes políticos e militares, incrustados tanto na Escola Superior de Guerra quanto em instituições privadas, isso não passava de táticas de despiste. Afinal, as greves e as manifestações de trabalhadores, camponeses e estudantes continuavam intensas, parecendo seguir o mesmo caminho dos conflitos que ocorriam na descolonização da Ásia e da África. Para acentuar tal percepção, em 1958, haviam surgido as Ligas Camponesas, e a Juventude Universitária Católica (JUC) fizera uma inflexão para a esquerda.

 

As tensões sociais e políticas decorrentes dessa situação, assim como a elevação da inflação a 39%, impeliram JK a romper com o FMI e a ampliar suas negociações com o movimento social, o PTB e o PCB. Em resposta, a direita militar promoveu, em 1959, o levante de Jacareacanga, assim como o primeiro sequestro de um avião. Foi o então coronel aviador Penido Burnier quem praticou esse ato terrorista e tomou o aeródromo de Aragarças. Mas não sustentou sua façanha por mais de três dias.

 

Nas eleições de 1960, a direita legal, através da UDN, conseguiu uma importante vitória eleitoral com a eleição de Jânio Quadros para presidente, e Carlos Lacerda para governador do Rio de Janeiro. Tal vitória foi empanada, porém, pela eleição de João Goulart para vice-presidente. Uma análise, mesmo superficial desse resultado, mostrava que Jânio fora eleito menos por ser candidato da UDN e mais por suas promessas demagógicas, que apresentavam um forte viés de esquerda.

 

Viés que causou comoção em seus ministros militares quando o presidente recepcionou Che Guevara e o condecorou. Para piorar, Jânio apoiou o sequestro de um navio por dissidentes da ditadura salazarista, enviou Jango para estabelecer relações diplomáticas com a China e ensaiou medidas de independência frente aos Estados Unidos. Mesmo que tudo isso fizesse parte de uma ação diversionista para justificar um golpe palaciano e a instauração de uma ditadura personalista, Jânio certamente nada combinou com seus sustentáculos da direita. Assim, quando renunciou, em agosto de 1961, esperando ser reintegrado pelos ministros militares, estes simplesmente garantiram seu embarque para a Europa e tentaram se apossar do poder.

 

Os acontecimentos seguintes demonstraram não só a profundidade e a ascensão das lutas de classe no Brasil, mas também os dilemas com que elas se defrontavam. A grande burguesia e a direita militar pretenderam impor ao país uma ditadura militar, mas uma parte da burguesia, parcelas significativas da pequena-burguesia, os trabalhadores assalariados urbanos, parcelas do campesinato e setores importantes do aparato militar mobilizaram o país para garantir a legalidade constitucional e a posse do vice-presidente.

 

A possibilidade de guerra civil, antes evitada pelo suicídio de Vargas, voltou a se fazer presente. Mas Jango e o PCB, assim como parcelas do PTB e de liberais dos demais partidos, negociaram com os golpistas a fórmula parlamentarista para garantir a posse. Além disso, aceitaram não impor qualquer tipo de punição aos golpistas. Com isso, evitaram a guerra civil, mas permitiram que a direita se reorganizasse, numa situação em que a luta de classes se intensificava e tendia a uma solução de confronto, com predomínio da direita ou da esquerda.

 

Os trabalhadores urbanos continuavam exigindo melhores salários e melhores condições de trabalho e de vida. As Ligas Camponesas proclamavam que a reforma agrária seria realizada “na lei ou na marra”. A pequena-burguesia e a burguesia também queriam maiores oportunidades de desenvolvimento através da ação e do apoio do Estado. Tudo isso demandava reformas, mesmo no âmbito do capitalismo, que se chocavam contra o tradicional sistema oligárquico rural e urbano que dominava o país.

 

A partir de então, a direita fundou o Instituto de Estudos Econômicos e Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a Tradição, Família e Propriedade (TFP), e várias outras organizações legais, semilegais e ilegais. Por um lado, algumas delas, em conjunto com a Escola Superior de Guerra, procuravam fundamentar teoricamente seu projeto de sociedade, tendo como parâmetros os valores familiares, religiosos, patrióticos, ordeiros e disciplinares que supunham na raiz da formação social, cultural e política do povo brasileiro. E todas serviam de fachada para receber vultosas contribuições da plutocracia burguesa e da Central Intelligence Agency norte-americana para propagar sua cruzada anticomunista e antipopular.

 

Em 1962, paralelamente à crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, Kennedy aumentou a intervenção militar no Vietnã e ordenou a seu embaixador e à CIA a preparação do golpe militar no Brasil. Militares da direita atentaram contra o Congresso da UNE, em Petrópolis. E a queda de um avião de passageiros no Peru teria revelado documentos sobre a preparação de guerrilhas rurais pelas Ligas Camponesas. Mas esse ainda era um bom momento econômico. Embora a inflação tivesse subido para 53%, o crescimento do PIB fora superior a 8%. E, na política, o PTB obteve uma vitória significativa nas eleições para o parlamento, enquanto a campanha pela volta do presidencialismo ganhou o reforço de uma greve de trabalhadores e obteve sucesso no plebiscito nacional.

 

Na maré dessa vitória, Luís Carlos Prestes, o principal líder do PCB, condenou as guerrilhas, durante viagem a Cuba, e assegurou, no início de 1964, que qualquer golpe reacionário no Brasil seria cortado, se fosse tentado. Desdenhou que, em 1963, a inflação havia se elevado a 79% e o PIB crescera apenas 0,6. E que, diante do agravamento das contradições sociais e políticas, da defesa aberta de um golpe militar pela direita, e da ação sem subterfúgios da embaixada norte-americana, o confronto seria inevitável. O que incluía a montagem de provocações que dessem pretexto ao golpe.

 

Porém, a esquerda hegemônica, e o dispositivo político e militar do governo, não acreditavam nisso. Nem se prepararam para tanto. Assim, quando a revolta dos marinheiros e a assembleia dos sargentos se evidenciaram como pretextos para a direita militar colocar as tropas nas estradas e nas ruas, as palavras de Prestes ressoaram como folhas ao vento. A quarta frota naval dos Estados Unidos pode voltar do meio do caminho. O golpe militar não encontrou qualquer resistência e contou até mesmo com o apoio de liberais que se denominavam democratas.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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