Otimismo ou cegueira?

0
0
0
s2sdefault
Wladimir Pomar
01/10/2013

 

 

Em vários setores da esquerda, especialmente entre aqueles que apoiam o governo Dilma, mesmo criticamente, parece ter voltado a predominar o otimismo. Acham que as recentes pesquisas de opinião apontam uma recuperação do prestígio do governo e da intenção de voto na presidenta, tudo reforçado por melhores indicadores econômicos, inclusive na agricultura, pela contenção da ofensiva da direita, e pela impossibilidade de esta apresentar propostas que contemplem as demandas sociais e democráticas.

 

Parecem, porém, não dar atenção a fatos evidentes. O governo e o PT talvez não estejam isolados no Congresso apenas em relação a projetos e vetos secundários. O Judiciário continua descumprindo as leis em tudo, ou quase tudo, que diz respeito aos direitos sociais e democráticos. Plebiscito virou sinônimo de golpe de Estado.

 

E, em articulação com isso, a direita está mudando de tática e passando a centrar seu fogo na interferência estatal na economia. Num típico movimento de flanco, dentro e fora do Congresso e do Judiciário, a direita age no sentido de paralisar a ação do Estado e do governo, principalmente na redefinição das prioridades exigidas pelas manifestações populares de junho. E o agronegócio mantém sua ofensiva para expropriar a agricultura familiar, colocando a seguridade alimentar subordinada aos humores do mercado internacional de commodities agrícolas.

 

A direita leva em conta que as demandas sociais por melhoras estruturais na saúde, educação, segurança e mobilidade urbana e interurbana não podem ser atendidas em curto prazo, a não ser topicamente. Mais médicos, melhores salários para professores, ações policiais menos truculentas, corredores para ônibus e algumas outras medidas em curso, embora necessárias e importantes, só podem atender parcialmente aquelas demandas, não resolvendo os problemas estruturais existentes. E, se a safra deste ano é boa, nada garante que a do próximo ano seja idêntica e tenha como foco principal o mercado doméstico.

 

A saúde, por exemplo, precisa que o SUS ganhe uma infraestrutura e um caráter público que atenda à maior parte da população, libertando-se do sistema privatista a que está subordinado. Algo idêntico precisa ser realizado na educação. Para resolver o problema de segurança, não basta ter mais polícia e mais presídios. É necessário retirar do abismo a parte da população excedente que não tem condições de acesso ao trabalho e à renda. Além disso, é necessário realizar reformas profundas nos sistemas judicial, prisional e policial.

 

Para resolver efetivamente os problemas da mobilidade urbana e interurbana, será indispensável transformar a matriz de transportes: os transportes sobre trilhos, subterrâneo e de superfície devem superar em muito o transporte automobilístico. E para ter seguridade alimentar é preciso muito mais do que até hoje se fez para garantir a sobrevivência da agricultura familiar.

 

Tudo isso exige reformulações no atual planejamento do governo, assim como projetos executivos. Nada que se possa fazer num passe de mágica. Nessas condições, será uma cegueira supor que a ofensiva da direita foi revertida e que os problemas apontados pelas manifestações populares estejam em curso de solução.

 

Não há qualquer vislumbre de que o Congresso aprove reformas políticas consistentes, indispensáveis para reduzir a corrupção do poder econômico sobre as eleições e para aumentar a participação democrática da população. O empresariado continua em sua linha de só participar nas obras de infraestrutura se o governo reduzir a intervenção do Estado e realizar, sem condições, a transferência de recursos públicos para os contratantes.

 

Uma parte da máquina do Estado está pouco se lixando para a necessidade de agilizar o planejamento e os projetos de redirecionamento das prioridades da infraestrutura, de modo a colocar em primeiro plano as demandas populares. O agronegócio não se satisfaz com o monopólio que já detém. E, aos olhos da imprensa e da população, a polícia federal parece estar agindo contra a corrupção por moto próprio, não como política de governo.

 

Para complicar, em alguns setores da esquerda também viceja a ideia de que saúde, educação, segurança e mobilidade urbana pouco ou nada têm a ver com a economia. Parecem não notar que tais questões sociais só podem ter uma melhoria efetiva se a economia superar os obstáculos hoje existentes para seu desenvolvimento sustentado a um ritmo consistente, gerando recursos que permitam investir muito mais nas demandas sociais. Alguns chegam a sonhar que a Petrobras está em condições de suportar, sozinha, não só a exploração do pré-sal, como a alavancagem do desenvolvimento nacional. Cultivam um nacionalismo que nada tem a ver com a realidade do capital acumulado para realizar o desenvolvimento econômico, social e ambiental.

 

Em vista disso, olhando a conjuntura com mais realismo, se o momento estimula algum tipo de otimismo, os problemas acumulados alertam que a batalha em curso exige muito mais do que simples constatações. Se o otimismo se transformar em cegueira, como apontam certas tendências, pode-se ter certeza de que, como aconteceu com os arautos da nova classe média, haverá muita gente perplexa, sem saber por que os beneficiados se levantam e vão para as ruas. De minha parte, acho que a cegueira só será evitada se as mobilizações não pararem. Tem gente, à direita e à esquerda, que só se move se o povão for para as ruas. Oxalá estas se encham novamente para isolar a direita e empurrar a esquerda.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

0
0
0
s2sdefault