O que realmente está em pauta

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Wladimir Pomar
14/03/2011

 

Que a direita se movimente, seja através de elogios na imprensa, seja através de movimentos partidários visando conquistar a hegemonia do governo por dentro, é natural e previsível. Mas que setores da esquerda façam leituras atravessadas das discussões sobre os rumos do país, tirem conclusões apressadas sobre uma possível guinada conservadora do governo Dilma e continuem apostando na divisão interna do PT, é mais uma vez lamentável.

 

Em primeiro lugar, não passa de ilusão de classe supor que parte considerável da burguesia combateu o governo Lula apenas por seu arraigado preconceito de classe, e não por causa do modelo econômico.

 

Só os politicamente cegos não tomaram conhecimento das batalhas permanentes para realizar uma redistribuição de renda que contemplasse os miseráveis e os pobres. E para que fossem recolocados na pauta do país o planejamento e o crescimento econômico.

 

Parte da esquerda se opõe ao governo Lula e, agora, ao governo Dilma, por achar que eles deveriam realizar o crescimento sem contar com o capitalismo. Em outras palavras, que deveriam liquidar o capitalismo.

 

Só não dizem como e com que forças. Talvez pensem que isso possa ser feito por decreto, num país em que sequer se fez uma revolução que transformasse todo o Estado numa máquina a serviço dos trabalhadores e do povo. A pauta para isso é um pouco mais complexa.

 

Mas essa parte da esquerda, além disso, supõe que o governo pode comandar a política a seu bel prazer, e que a política pode comandar a economia do mesmo modo. Realiza a operação teórica de retirar do cenário econômico e social as forças reais que atuam ideológica e politicamente sobre ele, e conclui que tudo é uma questão de coragem e decisão política.

 

Para ela, um governo de esquerda, mesmo que eleito sob as regras impostas pela burguesia, tudo poderia. Bastaria o compromisso de servir ao povo e a correspondente decisão política. Para que perder tempo com correlação de forças e com supostas leis econômicas naturais?

 

O problema é que neste caso, assim como no da superação do capitalismo, a correlação de forças, assim como as leis econômicas naturais, existem, ambas evoluindo em intrincadas relações de causa e efeito. Numa situação econômica internacional muito favorável, o governo Lula conseguiu superar os entraves da política monetária de juros altos e câmbio flutuante, impostos pelo sistema financeiro, ao dar alguns passos fundamentais para mudar a correlação de forças políticas e a própria política econômica.

 

Colocou em pauta um forte programa de redistribuição de renda, um rol de ações de recuperação da capacidade de planejamento e de elaboração de projetos, e um programa de aceleração do crescimento econômico.

 

Nenhum desses passos foi dado de um dia para o outro, nem poderia. A máquina estatal brasileira havia sido desorganizada pelos governos neoliberais, os órgãos de planejamento e de projetos estavam sucateados, assim como boa parte da indústria brasileira, e mantinham-se abertos os ralos pelos quais fluía boa parte dos recursos públicos para mãos privadas. Para complicar, parcelas do PT acharam que poderiam utilizar-se impunemente dos mesmos métodos de privatização dos recursos públicos, praticados pela burguesia, gerando a crise de 2005.

 

De qualquer modo, apesar dos companheiros que abandonaram o governo Lula e o PT, por acharem que eles afundariam por haver sucumbido ao conservadorismo e à corrupção, tais dificuldades foram superadas em grande parte. A reeleição de Lula foi uma demonstração de que a maior parte da população já se dera conta de que havia uma diferença real entre seu governo e os governos neoliberais anteriores.

 

Há certo consenso de que o segundo mandato Lula foi substancialmente diferente do primeiro. Mas isso ocorreu, em parte, porque no primeiro mandato haviam sido superados alguns dos gargalos que impediam uma aplicação consistente das políticas de redistribuição de renda e crescimento econômico. E, também em parte, porque as condições internacionais continuavam favoráveis para a implementação daquelas políticas, apesar do monetarismo neoliberal. O resultado foi um aumento considerável do poder de compra das camadas populares, embora haja um certo exagero na suposição de emergência de uma nova classe média.

 

De qualquer modo, essa elevação do poder de compra no mercado interno criaria um inevitável crescimento da demanda de uma série considerável de produtos e serviços, em especial alimentos, outros bens de consumo corrente, transportes etc. As leis naturais da economia se apresentariam de um modo ou de outro, trazendo à tona os desequilíbrios entre oferta e demanda, pressionando a inflação, exigindo ajustes e impondo-se à política.

 

Para piorar, essa situação se intensificou num contexto internacional diferente. A crise internacional do capitalismo se mantém e mudaram as condições que antes, apesar do monetarismo neoliberal encastelado no Banco Central, favoreciam as políticas sociais e de desenvolvimento no Brasil. Num contexto como esse, seria ilusão supor que o sistema financeiro ficaria impassível diante da oportunidade de retomar a política de juros altos, como única maneira de combate à inflação. Em especial, porque as medidas para elevar a produção de alimentos e de outros bens e serviços de alta demanda não dão resultados em curto prazo.

 

Temos, assim, a economia se impondo à política numa situação de forte disputa entre o neoliberalismo ainda não enterrado e o compromisso de longo prazo com um desenvolvimento associado à redistribuição de renda e à erradicação da miséria.

 

Tornou-se inevitável dar vários nós de aperto, como me referi em comentários anteriores. O que não era inevitável, nem necessário, era permitir a elevação da taxa de juros, em especial porque a inflação não está disseminada por todos os setores da economia.

 

No entanto, essa também não é uma decisão que o governo Dilma possa adotar de chofre e a seu bel prazer. Tal decisão demanda um debate na sociedade e entre as forças políticas, criando uma correlação de forças favorável para impor ao Banco Central e ao sistema financeiro uma política que corresponda à nova realidade do país. O papel da esquerda e de todo o PT é o de intensificar tal debate e acumular as forças sociais e políticas necessárias para apoiar o governo Dilma no rumo dessa decisão, do mesmo modo que fez durante o governo Lula.

 

Ilações ou interpretações diferentes a respeito de meus textos nada têm de programático, nem pragmático. De qualquer modo, se a parte da esquerda que ainda acredita que os governos Lula e Dilma são de pragmatismo assistencialista, despolitizadores, desmobilizadores e submissos ao sistema financeiro privado, pretende participar de um debate sem preconceitos sobre as conquistas do povo brasileiro durante os oito anos de governo Lula e sobre os desafios que estão realmente em pauta para o governo Dilma, assim como sobre os rumos possíveis para o socialismo no Brasil, acredito que eles sejam bem-vindos. De minha parte, mesmo não passando de um simples comentarista, lhes darei toda a atenção que militantes históricos merecem.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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