Um ano polarizado

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Wladimir Pomar
22/12/2010

 

O ano de 2010 esteve marcado principalmente pela disputa eleitoral para a presidência da República. Ocorreram outros aspectos relevantes no país, como a superação dos aspectos mais perniciosos da crise mundial capitalista e a retomada do crescimento econômico e das taxas de emprego. Apesar disso, aquela disputa sintetizou o confronto entre dois projetos opostos.

 

Embora a distinção entre tais projetos nem sempre se apresente claramente, a luta entre eles vem se desenrolando há muito na sociedade brasileira. A partir de 1989 ela passou a ganhar contornos diferentes, em função do novo ambiente democrático, das divisões no seio da burguesia e do crescimento da participação política das camadas populares.

 

A demonstração mais cabal desse confronto de projetos conflitantes, em 2010, foi a emergência de tendências direitistas e fascistas, que pareciam enterradas no passado político brasileiro. Esse ressurgimento, reunindo num mesmo campo setores que estiveram no campo democrático da luta contra a ditadura militar e os setores mais reacionários remanescentes daquele regime, tornou-se um dos aspectos mais característicos do cenário político.

 

Uma boa parte das verdadeiras forças democráticas e populares viu-se, com espanto, acossada pelo retorno dos métodos utilizados no submundo político, do qual Collor foi, em 1989, a expressão mais escancarada. A combinação da desconstrução ideológica do adversário, com um populismo desbragado, o uso de ações provocativas e a disseminação de boatos, visando sempre deslocar a discussão política da disputa real, tornou-se a marca registrada da campanha demotucana.

 

Como em 1989, em que Collor jamais deixou claro seu projeto de inserção subordinada na economia internacional, Serra também não apresentou o seu. Da mesma forma que o malfadado paladino da luta contra o empresariado e contra os marajás, numa cruzada demagógica de poucos paralelos na história, Serra empenhou-se em denegrir sua adversária e lhe impor uma pauta despolitizada, na qual as promessas ultrapassaram todos os limites.

 

É verdade que a estratégia inicial de Serra procurou manter um verniz social-democrata e induzir que daria continuidade ao governo Lula. Mas isto terminou quando Dilma o ultrapassou nas pesquisas. A partir daí, a desconstrução ideológica, o populismo e as ações mafiosas passaram a dominar suas ações. A grande imprensa, capitaneada por Veja, Globo, Folha e Estadão, entrou de cabeça na campanha, principalmente aproveitando-se de qualquer oportunidade para reforçar a desconstrução e demonizar Dilma.

 

Os que não nutriam qualquer ilusão de classe na candidatura Serra, nem confundiam os amigos com os inimigos, desde o início alertaram que a tendência principal era de polarização dos dois projetos. A campanha, em tais condições, deveria ser marcada pelas tentativas da direita de impor o submundo político e a despolitização de que tal submundo se nutre. Para contrapor-se a tal tendência o único caminho seria a adoção de um debate político massivo. O que demandava um programa claro, a subordinação do marketing à estratégia política, e a mobilização massiva da militância e do eleitorado.

 

No entanto, a ilusão de que a burguesia estava satisfeita com o crescimento econômico e não ia apelar para a baixaria se impôs no primeiro turno da campanha Dilma. A defensiva foi sua marca principal. E a ausência de programa, de mobilização e de debate político massivo na sociedade forneceu a Serra o ambiente favorável para praticar em toda a extensão a estratégia do submundo político.

 

Paralelamente, deu a Marina a possibilidade de assenhorear-se de antigas bandeiras do PT e dos movimentos sociais, arrancando uma parcela importante de votos que caberiam a Dilma, se a campanha tivesse realmente apresentado um forte debate político de posições antagônicas. Tudo isso, e mais o clima do "já ganhou", em virtude da possível transferência de votos por Lula, levou a disputa presidencial ao segundo turno.

 

Neste, a campanha petista se transformaria em desastre se a estratégia política não mudasse. Mesmo sem programa de governo, a candidata e o marketing só evitariam a derrota se retomassem a ofensiva e a discussão política, e dessem resposta aos ataques. Como houve essa mudança, mesmo atrasada, e a militância democrática e popular mostrou que estava viva e atenta, a campanha de baixo nível não surtiu os efeitos esperados e a candidata petista foi vitoriosa.

 

Mas os resultados finais apontam para alguns aspectos que merecem atenção. Por exemplo, a esperada transferência automática da popularidade de Lula para a candidata do PT esteve aquém do esperado Apesar do papel forte que Lula desempenhou nessa eleição, como em qualquer das outras que ocorreram no passado, isso não significa que consiga transferir toda a sua popularidade.

 

Primeiro, porque a maior parte da população brasileira não tem consciência das melhorias implementadas por seu governo. Segundo, porque a disputa política é mais complexa. As grandes camadas da população que transitaram para o lulismo não passaram pela escola das lutas. Portanto, não ganharam consciência de seus próprios problemas, nem elevaram tal consciência ao ponto de postularem novas conquistas, por seu esforço e não por dádiva. Desse modo, nem sempre conseguem distinguir claramente o que está em disputa.

 

Nessas condições, por algum tempo Serra pôde confundir o cenário, apresentando-se como continuador do governo Lula. E, apesar da reação política do segundo turno, Serra ainda conseguiu 44% do eleitorado. Ou seja, uma parte dos que confiam em Lula não votou em sua candidata, apesar do empenho decidido do presidente. Esses resultados mostram que o lulismo comporta essa debilidade. E também que o PT não compreendeu o fenômeno em sua devida dimensão.

 

Em outras palavras, os aspectos débeis do lulismo só podem ser superados e seus aspectos positivos só podem transformar-se numa força social de envergadura no processo democrático e popular se houver um trabalho político constante que leve essas massas a tomarem consciência dos embates em curso. Missão que é fundamentalmente do PT e de seus aliados da esquerda.

 

O fenômeno Marina, que saltou de 10% das intenções de voto para 20% dos votos válidos, impondo o segundo turno e, aparentemente, uma nova agenda de debate, também precisa ser avaliado no contexto em que a campanha Dilma, em todo o primeiro turno, se manteve na armadilha da despolitização. Nesse sentido, não tem muita sustentação a suposição de que a virada de Marina se deveu ao crescimento do movimento ambientalista.

 

É preciso lembrar que o PT, mais do que o governo, parece haver se contentado com o hipotético surgimento de uma nova classe média e os avanços do governo Lula. Desprezou as antigas contradições, que permaneciam, e as novas, trazidas por esses avanços. Com isso, abandonou momentaneamente a luta mais firme pelo avanço na solução de certas questões candentes da sociedade brasileira, como a reforma política, a preservação e recuperação ambiental, a redução dos juros escandalosamente altos, a reforma dos tributos em cascata, a desconcentração das terras, riquezas e renda, e o combate ainda mais firme à corrupção.

 

Nessas condições, não é difícil explicar por que a representação parlamentar do PT cresceu a taxas menores do que em eleições anteriores. Marina pôde assumir a crítica àqueles abandonos, mesmo com um conteúdo eminentemente liberal. Essa crítica lhe permitiu agregar setores médios e mesmo populares, que se opunham ao reacionarismo de Serra, mas estavam descontentes ou desinformadas das ações a atitudes do governo Lula e do PT.

 

Por outro lado, a possibilidade de quebrar a polarização no primeiro turno e levar as eleições a um segundo turno interessava à coligação demotucana. Um dos objetivos da temática religiosa imposta à campanha consistiu em desviar votos de Dilma para Marina. Assim, esta sustentou bandeiras aparentemente à esquerda, ao mesmo tempo em que aninhava em sua coalizão uma parte considerável do conservadorismo reacionário.

 

Essa problemática dos apoiadores da candidatura Marina se refletiu no segundo turno. Os setores à esquerda viram-se na contingência de reconhecer que, afinal, havia diferenças substanciais entre os dois candidatos, e que Serra representaria um sério retrocesso. Os setores à direita continuaram vendo em Dilma uma ameaça a suas crenças e padrões de vida. A polarização da sociedade brasileira se mostrou mais forte do que as idealizações teóricas e os sonhos dos cândidos.

 

Assim, a pretensa nova agenda da candidatura Marina, unificando em torno do voto "verde" um conglomerado de intenções díspares, só foi possível numa conjuntura em que o debate entre projetos nacionais e sociais distintos e opostos se deixou vencer e se confundir pelo submundo político. Em outras condições, tal agenda teria sucumbido sob o peso de suas próprias contradições.

 

Esta talvez seja uma das principais lições da retrospectiva do ano que passou. O sonho da despolarização é uma quimera que os setores mais reacionários da burguesia brasileira não estão dispostos a permitir.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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