Analogias com o governo Lula

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Wladimir Pomar
24/11/2009

 

Alguns setores da esquerda, na tentativa de justificar sua oposição ao governo Lula, fazem longa fundamentação teórica de sua postura, partindo do pressuposto de que o período do governo Lula provavelmente será marcado, no futuro, como a segunda revolução silenciosa da história brasileira.

 

A primeira teria sido capitaneada pelo governo FHC, caracterizada pelo desmonte da Era Vargas, na brutal transferência de ativos do Estado para o mercado e a inserção subordinada à economia internacional. Já a revolução silenciosa de Lula teria como característica a retomada do nacional-desenvolvimentismo. Isto, por um lado utilizando o Estado como instrumento financiador de grupos privados em setores estratégicos, principalmente através do BNDES. Por outro, utilizando o Estado como instrumento investidor, em obras de infra-estrutura.

 

O nacional-desenvolvimentismo de Lula seria diferente do de Vargas, porque o Estado de Vargas seria o proprietário das empresas, enquanto que, com Lula, o Estado seria apenas alavanca para criar gigantes privados, que tenham capacidade de disputa no mercado interno e internacional. Nesse sentido, o período de Lula se assemelharia mais ao de JK, entre 1956 e 1961, quando o Estado teria se prestado, antes de tudo, ao fortalecimento do capital privado.

 

Ainda segundo essa argumentação, teria sido no governo JK que ocorrera a formação do tripé Estado, empresas estrangeiras e empresas nacionais. Neste tripé, teria ficado por conta do Estado responder às demandas de infra-estrutura, para atender aos interesses dos capitais privados nacional e transnacional.

 

Essa análise analógica peca por alguns deslizes históricos. Supor que o tripé Estado, empresas estrangeiras e empresas nacionais é uma criação do período JK é ignorar o que verdadeiramente foi o governo Vargas no processo de industrialização capitalista no Brasil. A aliança entre os capitais estatais, privados nacionais e privados estrangeiros foi uma criação varguista, aproveitando as contradições do capitalismo mundial, que desembocaram na II Guerra Mundial.

 

Vargas não criou apenas empresas estatais, como faz crer a análise. Embora o Estado varguista tenha sido instrumento investidor e proprietário, tanto na produção de insumos estratégicos, como aço, quanto na construção da infra-estrutura, ele também foi instrumento investidor na criação de grandes grupos privados, alguns dos quais continuam presentes ainda hoje, como o Votorantim, dos Ermírio de Moraes. Criar diferenças entre o nacional-desenvolvimentismo de Vargas e de Lula, pelo menos nesta questão, é o mesmo que criar pelo em ovo.

 

A aliança tripartite de capitais estatais e privados, nacionais e estrangeiros, manteve-se no período JK. A diferença entre o período JK e o período Vargas, em relação a esse aspecto, é que no período Vargas essa aliança foi feita num contexto em que o capital dos países industrializados ainda não havia alcançado um excedente que lhe empurrasse a instalar plantas produtivas em países periféricos.

 

O governo Vargas teve que utilizar uma grande dose de barganha e chantagem para que o capital norte-americano, no contexto de uma guerra mundial, fosse induzido, por seu Estado, a investir no exterior. No período JK, o capital dos países industrializados já produzia excedentes que precisavam ser exportados. Para manter crescente a taxa média de lucro, viam-se constrangidos a aproveitar-se das vantagens de custos inferiores de mão-de-obra, matérias-primas e outros fatores existentes nos países periféricos.

 

JK aproveitou-se desse novo contexto internacional para realizar aquilo que chamou de crescimento de 50 anos em 5. Seu período também continuou marcado pela aliança entre os três tipos de capitais, e seu Estado foi tanto financiador dos capitais estatais e privados quanto investidor em infra-estrutura e em empresas produtivas. É evidente que no período JK a participação do capital estrangeiro cresceu significativamente, mas a aliança tripartite se manteve como estrutura básica do capitalismo nacional.

 

Portanto, os contextos históricos dos períodos Vargas e JK são diferentes, mas o nacional-desenvolvimentismo de ambos guarda mais similaridades básicas do que diferenças. Do ponto de vista estrito da reestruturação capitalista interna, o mesmo pode ser dito do período do regime militar. Nesta época, de triste memória, a participação do capital privado estrangeiro cresceu muito, mas o mesmo aconteceu com a participação do capital estatal. Neste caso, paradoxalmente, em sentido inverso ao que a própria burguesia esperava.

 

A era FHC não foi apenas uma tentativa de desmonte da era Vargas. Foi a tentativa mais profunda de rompimento com qualquer veleidade nacional-desenvolvimentista, num contexto internacional de formação e ofensiva dos capitais corporativos internacionais. Melhor seria chamá-la de contra-revolução escrachada, nada silenciosa. Tudo na ilusão colonizada da invencibilidade unipolar norte-americana e do capital corporativo, e da inevitabilidade da inserção subordinada dos povos de todo o mundo a ambos.

 

Assim, se é correto fazer analogias do governo Lula com os períodos históricos anteriores, é adequado que não se distorça a história para criar teorias que justifiquem posições políticas. Mesmo porque, em tais casos, são sempre os criadores dessas teorias os maiores prejudicados diante da própria história.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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