Repisando “narrativas” – Investimentos estratégicos

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Wladimir Pomar
20/10/2015

 

 

 

Em qualquer processo de desenvolvimento, é fundamental contar com capitais previamente acumulados, de modo que eles possam financiar os investimentos de longo prazo. Isso inclui não só os capitais acumulados nas empresas, mas também nos bancos públicos e privados. No caso do Brasil, em que o desenvolvimento apresenta complexidades que só o Estado tem condições de equacionar e solucionar, os bancos públicos desempenham papel fundamental como instrumentos de ação estatal.

 

Nesse sentido, o documento “Mudar para Sair da Crise...” considera que a “elevação da taxa de investimentos poderá ser alcançada pela aplicação de algumas diretrizes básicas interligadas”. Sugere, então, “redesenhar a política macroeconômica com o objetivo principal de acelerar o crescimento”, fazendo com que as “políticas monetária, fiscal e cambial”, bem como “as instituições por elas responsáveis como o Banco Central”, se adequem “a esse objetivo”.

 

Com razão, aponta que “a recomposição da capacidade de financiamento do Estado é uma alternativa para o ajuste fiscal”. E indica que é possível “avançar na revisão dos incentivos fiscais, combate à sonegação e reforma tributária”. Mesmo porque “não há ajuste fiscal possível com elevação da taxa de juros básicos da economia, que ampliam continuamente o endividamento e o gasto com juros”. Torna-se necessário implantar um “regime de bandas fiscais” e de “câmbio flutuante administrado”. E fazer com que o Banco Central tenha “a dupla missão” de “promover a estabilidade e o bem-estar social” e adotar “versões mais flexíveis do regime de metas de inflação”, a exemplo do que já fazem inúmeros países.

 

Além disso, reitera que “a recomposição da capacidade financeira do Estado exige a redução da taxa de juros básicos da economia”. Critica que “no Brasil criou-se a cultura da elevação das taxas básicas de juros como espécie de panaceia para a estabilização dos preços, sejam suas causas associadas ou não à demanda”. E volta a afirmar que “não há ajuste fiscal possível com a manutenção da Selic em níveis estratosféricos, sem paralelos na experiência internacional”.

 

A partir dessas constatações, “Mudar para Sair da Crise...” aponta ser “necessária a construção de um novo pacto na sociedade acerca de formas alternativas de combate à inflação”. Isto é, adotar um combate “que libere a política monetária do fardo único de rebaixar o nível de preços”, e usar “mecanismos de controle do crédito e do câmbio, que não onerem a política monetária”. O documento acredita que “a construção deste novo pacto passa por negociações políticas complexas, mas deve ter como ponto de partida uma visão organizada e bem fundamentada do governo acerca do projeto de desenvolvimento que está sendo proposto para o país, assim como do papel da política monetária dentro deste processo”.

 

O documento acredita que “o convencimento dos agentes do mercado acerca da factibilidade de uma redução sustentada dos juros só ocorrerá caso o governo seja bem sucedido em criar estes mecanismos alternativos de gestão macroeconômica, que liberem a política monetária de suas amarras e particularidades atuais”. Ou seja, escorrega na ilusão de que as frações do mercado ligadas ao sistema financeiro sejam passíveis de convencimento em manter seus rendimentos com baixas taxas de juros.

 

Na atualidade do desenvolvimento capitalista corporativo, a especulação financeira de altos juros transformou-se em ação vital para evitar a tendência de queda da taxa média de lucro, indispensável para a reprodução ampliada do capital. Portanto, ao mesmo tempo em que a queda da taxa de juros pode estimular o instinto animal produtivo de algumas das frações do capital, ela certamente também vai estimular a reação desesperada da fração financeira, sendo necessário estipular uma política de contenção dessa reação.

 

Algo idêntico vai ocorrer se vingar a proposta do documento a respeito de mudanças na estrutura tributária regressiva, invertendo o peso elevado de impostos indiretos (consumo e folha salarial) em relação aos impostos diretos (renda e patrimônio). É provável que tal inversão só se torne possível num quadro muito favorável de correlação de forças sociais e políticas, na qual as forças populares e democráticas tenham poder suficiente para se imporem aos menos de 80 mil milionários que centralizam a maior parte da renda e do patrimônio nacional.

 

Na linha geral de redesenhar a macroeconomia para acelerar o crescimento”, o documento “Mudar para Sair da Crise...” também sugere “reforçar a conjunção de forças entre o governo, suas empresas que foram e precisam ser crescentemente fortalecidas, e o capital privado, para alavancar o investimento de infraestrutura e de inovação tecnológica por meio de parcerias público-privadas”. As concessões devem ser “adequadamente reguladas, com o resguardo dos interesses nacionais e populares”. O mesmo devendo acontecer com “a associação do capital privado com o capital estatal na internalização e no adensamento de cadeias produtivas, inclusive no âmbito da América Latina”.

 

Finalmente, propõe “direcionar o incentivo ao investimento com o objetivo primordial de alterar a estrutura produtiva, redirecionando-a para setores de maior agregação de valor e com ganhos de produtividade que elevem a competitividade externa, revigorem e modernizem o parque industrial brasileiro, elevando a qualidade das exportações e defendendo a demanda interna de importações, de modo a preservar a continuidade da expansão do mercado interno com distribuição de renda e valorização do trabalho”.

 

Portanto, embora indicando corretamente a necessidade de mudar a política macroeconômica, o documento, ao tratar da estratégia de elevação da taxa de investimentos, parece desdenhar a importância que os investimentos externos desempenharam e desempenham, seja negativamente, para desorganizar as finanças nacionais e desnacionalizar empresas, seja positivamente, para instalar novas plantas produtivas, transferir novas tecnologias e dar maior musculatura técnica e científica, tanto às empresas estatais quanto às empresas privadas nacionais.

 

A rigor, os investimentos externos até hoje não mereceram qualquer tipo de regulamentação, seja no sentido de coibir investimentos indesejáveis, como são aqueles de curto prazo no cassino financeiro, seja para estimular aqueles direcionados para a industrialização, seja ainda para elevar o padrão científico e tecnológico das empresas de propriedade nacional. Continua intocada a velha política de portas escancaradas a qualquer tipo de investimento externo, desde que ele sirva para melhorar o saldo para o pagamento da dívida pública.

 

Portanto, não basta reconhecer “a importância da participação do Estado, dos recursos e do papel dos bancos públicos”, nem da ampliação “da participação dos bancos privados e, sobretudo, do mercado de capitais”. Não basta considerar necessária a “continuidade do papel desempenhado pelo BNDES, CAIXA e Banco do Brasil”, a efetivação de “instrumentos indutores e de estímulo ao mercado de capitais”, nem buscar ampliar “o apoio de recursos de organismos internacionais”, incluindo “a constituição do banco de desenvolvimento dos BRICS”.

 

É fundamental detalhar o que significa “alterar a estrutura produtiva”, e quais os “setores de maior agregação de valor e com ganhos de produtividade que elevem a competitividade externa”, e como “preservar a continuidade da expansão do mercado interno com distribuição de renda e valorização do trabalho”. Sem políticas claras sobre as cadeias produtivas estratégicas que devem ser priorizadas a cada momento, os bancos públicos, os bancos privados e, sobretudo, o mercado de capitais, inclusive o internacional, tenderão a priorizar aquelas áreas que lhes tragam maiores resultados no curto prazo.

 

Aliás, uma análise mais realista dos financiamentos públicos e privados, nacionais e externos, dos últimos 10 anos, pode demonstrar claramente porque os investimentos nos setores estratégicos da indústria e da infraestrutura foram negligenciados. Portanto, definir claramente políticas de desestímulo a investimentos de curto prazo e em áreas secundárias, e de estímulo a investimentos de médio e longo prazos em áreas estratégicas prioritárias de desenvolvimento industrial, devem constituir um capítulo importante do projeto nacional de desenvolvimento proposto para um Brasil justo e democrático, demandando uma discussão mais profunda e específica a respeito, para sair da generalidade.

 

Por outro lado, e com razão, o documento propõe “a expansão sustentada do mercado interno de consumo de massas” como “um dos vetores de expansão do crescimento”, e que “a política social também (tenha) papel estratégico como força motriz do desenvolvimento”. No entanto, ao não realizar em extensão a crítica das “obras de infraestrutura econômica e social previstas no PAC”, limitar o papel das estatais à “recuperação da capacidade financeira da Petrobras”, e restringir a “reestruturação da engenharia nacional” ao cartel das empreiteiras, o documento perde a oportunidade de associar de modo mais consistente o “investimento em infraestrutura” às demandas sociais mais gritantes.

 

É verdade que o investimento em infraestrutura constitui um dos principais “motores da retomada do crescimento econômico”. É verdade que “as duas últimas décadas do século 20 foram perdidas em termos de investimentos nos setores estratégicos de transportes, energia e cidades”, porque os governos neoliberais desmontaram o Estado e sacrificaram os investimentos em infraestrutura e meio ambiente. Também é verdade que, “na última década”, ocorreram tentativas de reverter esse quadro, através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e dos investimentos do BNDES e demais bancos públicos.

 

O documento cita a “modernização de portos, dragagem, aumento da eficiência ferroviária e aumento de capacidade das rodovias”, que permitiram ao comércio exterior brasileiro saltar de US$ 107 bilhões para US$ 482 bilhões. Também relata a construção de três hidrelétricas, que estão entre as sete maiores do país em geração, além de 475 pequenas centrais hidrelétricas, somando 4.822 MW, assim como o início da montagem do parque de energia eólica.

 

Tudo isso era e é necessário. Como extremamente necessário era e é a reconstrução da infraestrutura urbana, onde hoje habitam mais de 85% da população brasileira, carentes de transportes decentes e baratos, saneamento básico, água potável, infraestrutura de educação e saúde, e moradias civilizadas. O Programa Minha Casa Minha Vida não conseguiu atender a essas demandas sociais, um dos vetores das manifestações populares de junho de 2013.

 

Dizendo de outro modo, as preocupações do PAC estiveram muito mais voltadas para atender às exportações do que às carências populares. Se quisermos ser coerentes com a ideia de “valorizar o trabalho”, será necessário dedicar esforços para definir mais claramente as prioridades de construção da infraestrutura do país, que sofrem pressões avassaladoras de interesses de grandes grupos econômicos, exportadores e rodoviários, para ficar nos exemplos mais evidentes.

 

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Da Redação

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

 

 

 

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