O ocaso melancólico de um ciclo político

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Leo Lince
01/06/2012

 

 

O confronto entre Lula e Gilmar Mendes, na lona armada pelo indefectível Nelson Jobim, é o assunto do momento. O cidadão, espantado diante das versões conflitantes, tem razões de sobra para botar as barbas de molho. Seria cômico, fosse apenas uma patuscada patrocinada por três patetas. Mas, por envolver figuras de proa, gigantes putativos da nossa rala República, pode ser trágico. Crise institucional? Mais uma operação abafa? Em qualquer dos casos, o “barraco” protagonizado por contendores de tão elevado coturno revela e avulta a dimensão da encalacrada na qual estamos metidos.

 

O primeiro dos contendores, tido e havido como intuitivo genial, foi titular por oito anos da principal alavanca do poder político no Brasil. E não foi um presidente qualquer. Liderança popular construída na luta contra a ditadura, ele polarizou pela esquerda as três primeiras disputas presidenciais do novo período. Ganhou as duas seguintes e, depois de governar, fez a sucessora. Floresceu na oposição como esperança de protagonismo político da classe trabalhadora. Governou ancorado na composição com as forças conservadoras e teve o apoio crescente do grande capital. Segundo o mais abalizado dos especialistas no assunto, ele “salvou o capitalismo brasileiro”.

 

O segundo contendor, tido e havido como jurista astuto e competente, ocupou pelo tempo de praxe o mais alto posto do nosso Poder Judiciário. No Supremo Tribunal Federal, onde foi presidente e continua ativo e influente, ele opera no contraponto radical daquele tipo de juiz que só fala nos autos, não se mete em política, nem se faz sócio de empresas e negócios. Ele, ao contrário, se faz sócio de empreendimentos, faz política de forma ostensiva e fala pelos cotovelos. Tudo às claras. Ao dar plantão noturno para revogar a ordem de prisão contra Daniel Dantas, ele se definiu por inteiro. Julgou salvar, no corpo do banqueiro, o espírito que anima as nossas instituições. Sem dúvida, ocupa um lugar ímpar entre os pares da “sereníssima República”, uma espécie de luminar da “direita togada”.

 

O anfitrião do encontro, cada vez mais tido e havido como trapalhão, é um caso à parte. Ao longo das últimas décadas, passeou sua figura espalhafatosa pelos mais altos escalões dos três poderes. No Legislativo, sua marca indelével foi a da trapaça na Constituinte (textos não votados incluídos na Carta Magna). Foi ministro e presidente da Suprema Corte e saiu de lá com um apelido nada glorioso para a função exercida: “líder do governo no Judiciário”. No Executivo, foi titular de ministérios e frequentou o alto escalão dos vários governos do período. Afastado por falastrão do governo em curso, continua circulado nas altas esferas dos poderes público e privado. O episódio em pauta deve reforçar-lhe a fama de pé frio, uma espécie de Rasputin desastrado.

 

O encontro, que explodiu como desencontro um mês depois, existiu e foi pedido por Lula. Essa, por enquanto, é a única certeza. As amizades e tratativas pregressas que possibilitaram a sua realização, bem como o teor e o tom do que foi dito ali, saíram da penumbra do segredo para a ofuscante luminosidade das versões interessadas. O cidadão, nos dois casos, segue mal servido. Por isso, barbas de molho e atenção redobrada para os desdobramentos do episódio.

 

Mais do que indignado, o ex-presidente Lula deve estar arrependido. Qualquer que tenha sido sua motivação ao pedir o encontro, o tiro saiu pela culatra. Ele, ao que tudo indica, ainda não elaborou seu novo lugar na engrenagem do poder. Por ser turno, Gilmar Mendes, como revela a adjetivação pedestre de suas reiteradas denúncias, partiu para o ataque como forma de defesa. Ao explicar o motivo do retardo na sua explosão de revolta, deixou patente a fonte de seus temores. Fez lembrar Roberto Jefferson.

 

A chamada turma do “deixa disso” já saiu em campo. Entre a cruz e a caldeirinha, os magistrados do Supremo buscam formas de contemporização. O atual presidente, Ayres Brito, remete o problema para o âmbito das relações pessoais. A sua veia poética prefere tratá-lo como uma patuscada patética. A presidente Dilma, até por dever de ofício, já disparou os poderosos mecanismos da operação abafa. No discurso de desagravo ao ex-presidente, ela pareceu elogiá-lo ao dizer que “as pessoas nos lugares certos e na hora certa mudam os processos e transformam a realidade”. Na contraface do espelho, onde a alma se revela, pode se ler diferente: a mesma pessoa, no lugar errado e na hora errada, pode escangalhar tudo.

 

O ex-presidente, indignado com as ofensas do juiz boquirroto, vai exigir dele retratações para tantas injúrias? Vai processá-lo? O ministro do Supremo, que acusa o ex-presidente de operar uma central de boatos a serviço de criminosos, vai exigir explicações na barra dos tribunais? Ou ficará o dito pelo não dito e tudo seguirá como dantes no quartel de Abrantes? Crise institucional ou operação abafa? Não se sabe, de antemão, o rumo dos acontecimentos. Uma coisa, no entanto, é certa. O episódio em pauta abre uma fase nova na atual conjuntura. Marcada pelo rescaldo de resíduos tóxicos acumulados (mensalão/CPMI Delta, Cachoeira/ Demóstenes), ela define os termos do ocaso melancólico de um ciclo político.

 

Léo Lince é sociólogo.

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