O Rio e a espiral da violência

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Leo Lince
23/10/2009

 

O Rio de Janeiro continua sendo o território da beleza e do caos. Maravilha de cenário onde se desenrola, dia após dia, o espetáculo lutuoso da mais brutal violência social. Os jornais de 21 de outubro estampam na primeira página uma fotografia aterrorizante. O cadáver de um homem, aparentemente jovem, abandonado ao esplendoroso sol da primavera carioca. Está lá, enrolado e espremido naqueles carrinhos de compra de supermercado, que se inclinou a quase tombar junto ao meio-fio da calçada, perfurado por balas de grosso calibre e com marcas de tortura, em plena Vila Isabel de Noel Rosa.

 

No momento da foto, aparecem crianças trajadas com uniforme escolar, adolescentes e jovens vestidos com as bermudas e camisetas do trivial diário. Alguns observam com olhar de espanto, como quem contempla o destino que pode lhe estar reservado. Outros passam indiferentes, talvez habituados ou brutalizados pela sequência de choques continuados. O poste em frente ao cadáver também não exibe a inclinação correta, está torto. Colado nele se vê um cartaz, "Cruzada Milagrosa", na certa o reclame religioso de algum paraíso afastado do nosso vale de lágrimas. São flashes indicativos de que, além do samba, a prontidão e outras bossas, a banalização da violência já se incorporou definitivamente entre as "coisas nossas".

 

Uma tragédia para a população, principalmente para a que vive nos guetos da pobreza, sempre emparedada entre a covardia dos tiranetes do crime organizado e a truculência do aparato policial do Estado. Entre a cruz e a caldeirinha, o único lugar reservado ao cidadão na escalada da violência é a condição de vítima potencial. É o que se observa nos acontecimentos posteriores ao entrevero do último fim de semana no Morro dos Macacos. A derrubada do helicóptero da PM, por exemplo, foi definida pelo Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, como um marco de travessia: "o 11 de setembro carioca". Ou seja, a ordem de choque vai produzir mais um giro na escalada ensandecida.

 

Os governantes - presidente, governador, prefeito - ainda não descobriram que a morte não acaba nada, mesmo quando se organiza em poderosos esquadrões oficiais. Os estudiosos sérios estão cansados de alertar: o caminho é outro. O narcotráfico e o crime organizado, todos sabem, possuem tentáculos na ponta do varejo, mas o cérebro que comanda o "movimento" está em outro lugar. Até as pedras da rua sabem que, quando essa gente de colarinho branco "dançar", os tiranetes na ponta do varejo ficarão sem as armas modernas e sem a matéria-prima que alimenta o comércio cruel e "brilha" nas festas das altas rodas.

 

Ao final da última década do século passado, em 1999, uma CPI no Congresso Nacional produziu uma investigação séria sobre a questão e seus resultados até hoje, dez anos depois, ainda dormem do esquecimento. O relatório final da Comissão afirmava que, na época, os esquemas do crime organizado lavavam no Brasil, anualmente, 50 bilhões de dólares. E o relator concluía com ênfase: "sem o olhar complacente de instituições financeiras e de governos não seria possível lavar tanto dinheiro sujo". Qualquer polícia inteligente de governo sério começaria por tal ponto o combate efetivo ao narcotráfico e seu corolário de violência.

 

A criação de uma câmara de repressão ao crime organizado, que além das polícias envolvesse o Ministério Público, o Judiciário e a Receita, está entre sugestões do relatório final da CPI das milícias, apresentado pelo deputado Marcelo Freixo, do PSOL. Razões misteriosas impedem que tal linha de combate, recomendada por estudiosos sérios do problema, prevaleça no cerne dos governos. A linha da truculência é uma escolha política. Livra a cara dos barões da droga, preserva a malha de cumplicidades que contamina os diferentes aparatos do poder e pode até, no quadro de pânico geral, render popularidade ao governante que ostenta a truculência como se fora firmeza. Ao mesmo tempo em que faz crescer a espiral da violência.

 

Léo Lince e sociólogo.

 

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