As feições da crise

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Léo Lince
19/09/2009

 

Quando a crise é profunda, como é o caso da que abala o capitalismo mundial desde o final do ano passado, vale a máxima dos tempos de guerra: a verdade é a primeira vítima. Mente-se aos borbotões e por motivos vários. Os governos, todos, douram a pílula por dever de ofício. Os agentes econômicos, afetados pelo abalo, alardeiam versões interessadas. A confusão é geral e cabe ao cidadão, até prova em contrário, duvidar de tudo o que sai nos jornais. Neles, muitas vezes a única coisa verdadeira é a data.

 

A propósito, vale recortar da edição do dia 13 de setembro da Folha de S. Paulo, caderno Dinheiro, uma entrevista de página inteira com o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Nela, o banqueiro de Boston que administra o cerne da política econômica do governo Lula deitou e rolou. Está com a corda toda. Ele se considera o fiador maior do "sucesso" econômico do governo e, como tal, distribuiu conselhos, profecias e até anátemas em relação aos postulantes da próxima disputa presidencial. Indagado sobre se exclui seu próprio nome daquela disputa, considerou "inadequado falar sobre isso" e, modesto, deu de ombros: "estou aqui para tirar o Brasil da crise".

 

Se os grandes meios de comunicação de massas não fossem tão avassalados pela ditadura do pensamento único, alguns trechos da referida entrevista teriam que provocar, pelo menos, alguma polêmica. Não parece razoável que revelações tão espantosas tenham passado quase despercebidas. Ninguém bateu palmas, protestou, chiou ou mugiu. No próprio corpo da matéria, tais revelações estão submersas no mar de letras pequenas, fora dos títulos e destaques da entrevista. Como diria Oswald de Andrade, o entrevistador escreve o que ouve e não se ocupa do que houve.

 

O poderoso Meirelles, perguntado sobre o momento mais delicado da crise, define uma data: sexta-feira, 10 de outubro de 2008. Estava na matriz, Washington, reunião do FMI, quando tudo desabou. No sábado decidiu voltar às pressas para o Brasil, onde reuniu no domingo à noite a diretoria do Banco Central, ocasião em que teriam sido tomadas as medidas que, segundo ele, "evitaram danos severos ao país". Na seqüência da entrevista, sem que fosse perguntado sobre tal tema, Meirelles resolve informar o seguinte: "grandes empresas brasileiras tinham assinado contratos de derivativos, vendendo dólares equivalentes, em alguns casos, a anos de exportação. Com a depreciação cambial, o prejuízo destas empresas aumentou enormemente. Elas ficaram insolventes".

 

A novidade mais explosiva, no entanto, viria na seqüência: "Eram empresas grandes, não se sabia quantas nem quais. Elas tinham contratos majoritariamente com bancos internacionais. Só que mantinham linhas de créditos com grandes bancos nacionais – aqui, de novo, não se sabia quantos nem quais". Quem sabe o milagre há de saber o santo, logo este engenhoso "nem quantos nem quais" é, para dizer o mínimo, pouco crível. O espantoso "segredo" revelado na entrevista, no entanto, é o referente à saúde do sistema financeiro. Na crise ainda em curso, a propaganda enfatiza tanto a solidez do nosso sistema bancário que poucos brasileiros suspeitaram que ele bordejasse o precipício da insolvência. É o que está afirmado, com todas as letras, pelo presidente do Banco Central.

 

A entrevista de Meirelles fornece agora informações antes omitidas ou negadas de forma peremptória. A crise sistêmica e o risco de insolvência geral, prejuízos de proporções monumentais que rondaram os acontecimentos, teriam sido afastados. A pronta intervenção do Banco Central, com destaque para a liberação de R$ 100 bilhões do compulsório para os banqueiros, teria nos salvo da catástrofe. Pelo discurso redondo da ideologia dominante, que defende a injeção maciça de recursos públicos nos pontos fortes do poder privado, voltamos ao céu de brigadeiro. Aquela marolinha que ainda nem chegara, agora já passou. O cidadão, escaldado, não pode esquecer que a mentira metódica é uma das feições da crise.

Léo Lince é sociólogo.

 

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