Correio da Cidadania

‘Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos’

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A Copa do Mundo chegou ao final e já estamos voltando à realidade nacional, entrando de cabeça no clima eleitoral e toda a sua renhida disputa política. O debate entre as correntes políticas dominantes e o movimento social continuará em cena, talvez de forma mais intensa do que no período dos jogos. E algumas questões só poderão ser respondidas com o tempo.

 

“Sobre a Copa, houve muito erro tático e estratégico dos movimentos que estavam se organizando para protestar. Eles tinham tudo para ganhar volume, tudo. As condições eram muito favoráveis. Até muito poucos dias antes de a Copa começar, metade da população estava com sentimentos contrários à Copa. Mas não tiveram a capacidade de organizar a insatisfação e dar a ela expressão política sólida”, disse Pablo Ortellado, em nova entrevista concedida ao Coletivo Copa, que se pautou em uma produção jornalística alternativa durante o evento futebolístico.

 

Além da análise da atual dinâmica da movimentação social, com os diversos matizes oferecidos por grupos que vêm ocupando importante espaço na política (que Ortellado entende como um processo de continuidade ao comandado pelo PT desde o final dos anos 70, porém, com movimentos descolados do partido), o ativista oriundo do “autonomismo brasileiro” joga o olhar para os próximos tempos, em sua visão acossados por uma sombria experiência de suspensão de direitos civis básicos, vivida durante a Copa.

 

“Se o PT, principalmente, por ter raízes no movimento social, pensa que suspender direitos, excepcionalmente, não vai deixar marcas profundas na sociedade, está muito enganado. Viveremos durante muito tempo sob a sombra desse regime de exceção. Porque as instituições vivenciaram a experiência de que podem suspender direitos civis e nada acontece. Você acha que é só na Copa, que depois voltaremos a um regime de normalidade? Não vamos voltar à normalidade! Vamos viver dias muito ruins por conta do que aconteceu na Copa. Provavelmente, trata-se de seu legado mais perigoso”, afirmou.

 

 

A entrevista completa com Pablo Ortellado pode ser lida a seguir.

 

Gostaríamos que você falasse um pouco de como, antes mesmo de ser uma referência no assunto mobilização política das manifestações de rua, você se encaixou nas lutas. Como foi sua trajetória de ativismo?

 

Pablo Ortellado: Minha história no ativismo é dos anos 80. Eu sou da geração do punk que fez a passagem para o ativismo no ano de 1987, quando o punk se aproximou do anarquismo, principalmente do velho anarquismo sindical, e nos encontramos no Centro de Cultura Social (CCS), nos anos de 1987 e 1988. Participei das mobilizações do final dos anos 80, na época da redemocratização e da nova Constituição. Segui uma trajetória de militância que no final dos anos 90 passou para o movimento antiglobalização. Em seguida, estava envolvido na fundação do Centro de Mídia Independente e no processo que levou à fundação do MPL. Uma trajetória, do ponto de vista de corrente ideológica, ligada à origem do ‘autonomismo brasileiro’.

 

Tendo então começado pelo punk, teve relação com o skate, o hardcore?

 

Pablo Ortellado: Na verdade, isso é antes do hardcore. Porque nos anos 80 tinha uma cena punk que era uma coisa só, inclusive se misturava com a cena skinhead. Tivemos duas cisões, entre 1986 e 88. A cena punk se dividiu em duas. Depois, teve uma cisão meio de classe, entre punks e hardcores, que ficou uma coisa um pouco mais de classe média, enquanto o punk ficou como uma expressão mais da periferia.

 

Na verdade, não tinha muita coisa na classe média, mas se constituiu uma cena que se cindiu. E houve a cisão ideológica entre os punks e os carecas também. Um grupo foi para a esquerda e outro para a direita. Isso não estava muito bem definido em 1987, por exemplo. Em 1987 e 88 foi quando os punks se aproximaram do Centro de Cultura Social e começaram a organização dos sindicatos. Houve a tentativa de refundar a Confederação Operária Brasileira (COB), que foi o primeiro sindicato anarquista, tentativa que quase decolou nos anos 80. Participei bastante. Tentamos fundar o sindicato dos office-boys naqueles anos. Aí os punks foram para a esquerda, os carecas foram bem para a direita e aos poucos foram seguindo esse ideal meio xenófobo, meio racista.

 

O 1º de maio de 1988, convocado pela CUT, foi um marco. Os punks foram e fizemos a comissão de segurança. O 1º de maio na época era massivo. Foi na Praça da Sé, com 30 mil pessoas, sem nenhum grande show, na época em que o movimento operário se mobilizava de verdade, sem nenhum tipo de atrativo musical. Os carecas organizaram um ataque. Foi um símbolo, uma verdadeira ruptura. Os dois grupos, que eram um pouco misturados, se cindiram. Já havia uma pequena tensão, meio de gangue, mas ali se separou de um ponto de vista ideológico. Os punks estavam com a COB, fazendo a segurança do ato, e os carecas foram lá para atacar. Apanharam feio da CUT e dos punks.

 

Como começou esse problema entre punks e os carecas?

 

Pablo Ortellado: Eu não sei do lado deles. Eu não acompanhei a mudança pelo lado deles e como foram para a direita. Eu não sei dizer, porque eu não acompanhei, estava junto com os punks. Sobre os punks, eu sei dizer. Os punks tinham uma cultura muito de gangue nos anos 80 e uma politização muito confusa. Era muito contracultural, muito antissistêmica, mas no sentido meio existencial. Aí começou um trabalho de base do pessoal da COB. Eu não sei exatamente quem nos levou lá para o Centro de Cultura Social. Eu não sei como começou, mas a gente começou a frequentar o CCS.

 

O CCS tinha sido fundado pelos anarco-sindicalistas derrotados nos anos 30. Quando perderam a hegemonia do movimento operário para os comunistas, optaram pela via de centros de cultura. E o Centro de Cultura Social de São Paulo sobreviveu à ditadura Vargas, do Estado Novo, e depois à ditadura militar, de 1964. Foi aberto e fechado, aberto e fechado, e continuou reunindo aqueles velhos militantes.

 

Os anos de 1987 e 1988 foram o encontro da nossa geração. Éramos moleques, tínhamos 14, 15 anos, alguns eram mais velhos, mas basicamente adolescentes e punks, com esses velhinhos de 70 anos mais ou menos, que tinham militado no movimento operário, participado de toda a história da construção dos anos finais da hegemonia do movimento operário anarquista. Foi um encontro tenso, porque a gente vinha da contracultura e eles vinham do movimento operário. Eram aqueles senhorezinhos de boné e suspensório encontrando os punks da periferia de São Paulo.

 

Como você vê hoje essa organização, até mesmo dos anarquistas e dos punks, em relação aos movimentos sociais e dos trabalhadores?

 

Pablo Ortellado: Eu acho que tal passado deu origem, nos anos 90, a uma série de outras coisas. O punk foi a primeira experiência no Brasil de convergência entre contracultura e ativismo político. Nos anos 60, tivemos a contracultura, meio hippie, que estava completamente desassociada da militância social. Eram grupos antagônicos que tinham profundas divergências, tirando um ou outro caso de gente que circulava pelos diferentes lados. Mas foi muito raro quem tivesse transitado pela contracultura e a militância social nos anos 60 e 70.

 

No punk, quando houve a aproximação no final dos anos 80, foi a primeira vez que a gente teve um movimento contracultural de verdade. O punk é o que o hip hop foi nos anos 90 e no começo dos anos 2000, pelo menos na periferia de São Paulo. Eram movimentos muito amplos, muito disseminados e se politizaram (ao menos uma parte). Essa parte terminou influindo e contaminando o resto. Teve uma parte que realmente se politizou, virou militante sindical e tal. Terminou assim, transbordando para o resto da cultura punk. Politizou-se e foi para a esquerda e o anarquismo.

 

Nos anos 90, ou no final dos anos 80, o movimento também se rompeu por uma questão de classe. A cena hardcore começou a se constituir. Nos anos 80, tinha uma casa de show chamada Dama Xok, que começou a criar um pequeno circuito da classe média de hardcore, diferente dos circuitos dos punks, que passavam mais pelo lado ativista. Tinham os circuitos de shows na periferia e um circuito mais ativista, que ficava em torno do coreto da Praça da República. Esses dois circuitos se separaram. Houve uma separação de classe, não tão precisa assim, mas predominava a classe média no circuito hardcore e a periferia no circuito punk.

 

De toda forma, a politização terminou afetando os dois grupos. Mesmo com a cisão, os dois grupos se politizaram à esquerda. Isso gerou, nos anos 90, vários efeitos de iniciativas políticas. Às vezes só um desses grupos, às vezes misturando os dois. Da origem a um meio ativista, atingiu-se uma maturidade no ano 2000. Durante os anos 90, tem um período de construção, uma formação de grupos como a juventude libertária, o início das campanhas de apoio à formação dos grupos de solidariedade aos zapatistas, já nos anos 90. Amadureceu com o movimento antiglobalização entre 1999 e 2000.

 

O quanto esse movimento foi importante para a criação do conceito de midiativismo?

 

Pablo Ortellado: Tem uma pré-história no punk, com a questão dos fanzines, junto com os movimentos de rádios livres. Há a constituição das rádios livres e dos fanzines na evolução da imprensa alternativa, porque ela rompe com a ideia de simplesmente fazer um veículo diferente em termos de conteúdo, compromissos com as grandes empresas, financiadores etc.

 

O que tanto as rádios livres quanto os fanzines têm é a ideia de que cada um deve fazer sua mídia e retirar a mediação jornalística. Não tem mais, seja com os fanzines, a cultura punk ou as rádios livres, a ideia de algum profissional dos meios de comunicação fazer a comunicação, falar por você, pelos movimentos, em nome do sindicato... São as pessoas falando diretamente. O ideal punk “faça você mesmo”, cada um tendo o seu fanzine. Todos nós da geração dos anos 80 tínhamos fanzine. Tinha banda e tinha fanzine. Fazia parte da cultura punk.

 

Nos anos 90, vimos isso também no movimento de rádios livres, que começou nos anos 80 com a ideia. Acho que o exemplo mais desenvolvido aqui no Brasil é a rádio Muda de Campinas, na Unicamp. Você entrava lá (foi fechada agora, não sei se reabriu), assinava uma lista e ganhava uma hora de programação por semana. Assim você fazia o seu programa. Todo mundo ao mesmo tempo escutava a Rádio Muda e fazia a Rádio Muda. Sem a ideia de ter um produtor, um jornalista, um mediador que fale em nome das pessoas. As pessoas falam, as pessoas escutam. Penso que isso está na gênese.

 

Na origem da interface entre a cultura e o ativismo aqui no Brasil, vimos nascer tal ideia, mas acho que foi amadurecer mesmo com o Centro de Mídia Independente. A primeira reunião deve ter sido em fevereiro de 2000, quando o fundamos. Foi fundado em Seattle, por volta de setembro e outubro de 1999, e uns quatro meses depois fundamos o Coletivo Brasileiro Centro de Mídia Independente. Acho que é um dos primeiros casos no midiativismo.

 

Estava relacionado com a iniciativa do movimento antiglobalização, portanto.

 

Pablo Ortellado: Completamente. Porque nos anos 90 se fundaram várias redes de solidariedades internacionais, principalmente por conta do zapatismo. Houve a realização dos encontros pela humanidade contra o neoliberalismo. O primeiro foi em Chiapas, o segundo foi em Barcelona e o terceiro foi em Belém. É nesse processo que se forma o movimento antiglobalização, a ideia de fazer um movimento global que unifique os movimentos sociais do mundo contra os encontros de cúpulas que estavam promovendo o neoliberalismo, os encontros do FMI, do Banco Mundial, da OMC. Surgiu no segundo encontro zapatista, que foi entre 96 e 97, em Barcelona. Foi feito um segundo encontro na Suíça, acho que esse, sim, em 97. A partir daí, surge a ideia de fazer manifestações simultâneas contra os encontros de cúpulas. Teve uma em 1997, mas foi em 18 de junho de 1998 o primeiro experimento verdadeiramente global. Tinha um desses encontros de cúpula e conseguimos organizar de maneira simultânea umas 30 cidades no mundo para se manifestarem.

 

Isso é raro hoje em dia, temos mobilização por direitos ou contra algo especificamente, mas não contra um modelo, o sistema como um todo. Você vê que, talvez também por uma despolitização, faltem métodos de manifestações, um norte, como, por exemplo, o movimento antiglobalização tinha?

 

Pablo Ortellado: Eu acho que teve um movimento pendular. Houve vários movimentos que reagiram e foram para questões locais por conta de certas dificuldades, ou do que eles entendiam como limitações do movimento antiglobalização. Porque vários dos movimentos que vemos agora, da década de 2010, são de ativistas veteranos do movimento antiglobalização.

 

Mas não estou entre aqueles que acham que fazíamos no movimento antiglobalização uma posição sistêmica abstrata. Eu acho que era muito concreto. Enfatizávamos nas nossas campanhas e estávamos antecipando perigos de que havia uma parte do processo de liberalização econômica que já tinha tido efeitos. Por exemplo, no Brasil tínhamos passado pelas privatizações do governo Collor e depois no governo Fernando Henrique, e elas já tinham sido sentidas pelas pessoas. Nos anos 2000, tivemos a reforma da previdência, com perda dos direitos trabalhistas. Havia uma dimensão concreta que já tinha aparecido.

 

Lembro que fizemos uma campanha muito forte no Brasil contra a ALCA, desde 1999, mas, principalmente, a partir do ano 2000. Era muito de antecipar, e a gente olhava o que tinha acontecido no NAFTA, o que tinha acontecido com o Canadá e o México quando firmaram acordo de livre comércio com os EUA. Houve um processo de quase conseguir a privatização dos Correios porque era entendido que no contexto das regras de livre comércio, trazidas pelo NAFTA, um serviço público era concorrência desleal com os serviços privados. Houve todo o processo da constituição das maquiladoras do México, de desregulamentação econômica, fazendo com que o capital fosse pra onde tivesse a força de trabalho de mais baixo preço e se baixassem todos os padrões de proteção ao trabalho. Fazíamos propaganda dos efeitos, desses processos de liberalização econômica em outros países, mas de uma maneira muito concreta.

 

Assim, toda a nossa campanha contra a ALCA foi construída mostrando os efeitos sociais, de proteção ao trabalho, de proteção ao meio ambiente, de privatização das empresas estatais, que são patrimônio coletivo. Não acho que fazer oposição ao capitalismo internacional era uma coisa abstrata. A gente fazia uma posição concreta, focada nos efeitos concretos que esses acordos de livre comércio já tinham em outros lugares do mundo.

 

No entanto, houve muita gente que entendeu que a campanha não conseguiu crescer na medida em que deveria ter crescido, que nosso movimento enfrentou certos limites por conta do caráter abstrato, por não ser direto, não ser muito concreto, e várias dessas pessoas migraram para pautas muito específicas. Depois vimos o caso da Argentina. As pessoas que estavam no movimento foram apoiar os piqueteiros. O movimento piqueteiro sofreu, digamos, a convergência dos ativistas que chamávamos de movimento global, do final dos anos 90. Aqui, vimos isso no MPL, muito constituído por gente que veio do movimento antiglobalização.

 

Você não acha que movimentos como o MPL têm uma pauta que dialoga mais fácil e didaticamente com um público maior, e tendem a ter uma cobertura da mídia mais difícil de ser deturpada, por se tratar de uma pauta concreta?

 

Pablo Ortellado: Eu não acho. Não mesmo. Do ponto de vista estritamente político, houve muita dificuldade no nosso movimento, tudo bem. A gente era contra os acordos de livre comércio. O que significava? Éramos contra a ALCA e as negociações que estavam acontecendo na OMC. Como a gente demonstrava isso? Fazendo mobilizações de massa simultâneas no mundo inteiro, tentando impedir a realização das negociações. Mas qual era a nossa demanda concreta? Não tinha uma demanda concreta. A demanda concreta era puramente negativa. E não se deu um passo adiante. Organizávamos manifestações pra não dar um passo adiante. Mas tinha muito pouca negociação concreta... A gente não conseguia traduzir a indignação, digamos, em uma ação pragmática específica. Quem terminava fazendo um pouco disso em nome dos manifestantes eram umas ONGs. Mas elas não estavam muito empoderadas, não eram muito legitimadas pelo movimento.

 

É totalmente diferente, por exemplo, do Movimento Passe Livre. O MPL tem uma pauta muito concreta, uma reinvindicação muito direta. Embora por razões da sua própria história, normalmente não negocia sua pauta quando há o aumento da tarifa, pois luta pela redução do aumento da tarifa. Essa demanda é muito mais visível e mais concreta do que era a nossa.

 

Porém, os meios de comunicação não reagem de uma maneira diferente. O MPL, em junho, foi massacrado até o dia 13. Eu fiz o levantamento da cobertura para o livro “Vinte centavos”. Fizemos um tratamento bem sistemático da cobertura de imprensa nos três jornais nacionais (Folha, Estado e Globo), nas quatro principais revistas semanais e nas TVs. O MPL ganha todas as capas desde que começa a campanha contra o aumento. Todas negativas. Ele apanha de todos os lados. Não há nenhuma brecha. Não há ninguém olhando com a menor simpatia. Pra dizer que não, no próprio dia 13 de junho, a Folha deu um texto no ‘Tendências e Debates’ para o MPL. Só. O MPL falando por si mesmo. O resto é só cobertura crítica. Obviamente, depois do dia 13 há uma virada.

 

Eu não vejo que o fato de ter uma demanda clara gere outro tipo de reação dos meios de comunicação. Talvez seja exatamente o contrário. Quando olhamos para os meios de comunicação dos movimentos antiglobalização, uma boa parte da cobertura era favorável a nós. Talvez o fato de ser meio abstrato e não representar um perigo muito imediato tenha feito com que uma parte (não toda a imprensa) apoiasse. Quando a gente olha a cobertura dos meios de comunicação, dos articulistas, muita gente via o movimento com simpatia. Muito mais do que viu o MPL até a primeira metade de junho.

 

Você acha que a cobertura alternativa das manifestações também teve influência para que a mídia mudasse tão radicalmente?

 

Pablo Ortellado: Acho que teve alguma influência, mas não foi uma influência decisiva. O que aconteceu é que o MPL de São Paulo está há dez anos tentando reproduzir uma revolta de transporte em São Paulo. Desde Salvador em 2003, depois Florianópolis 2004, passando por Goiânia, Belém, Vitória, tivemos dez anos de revoltas nos transportes, sempre com a mesma característica: quando aumenta a passagem de ônibus, jovens urbanos, normalmente da periferia, tomam as ruas de maneira mais ou menos espontânea, bloqueando as ruas e pressionando pela redução do aumento das passagens. Em várias cidades do Brasil, isso redundou em redução das passagens. Mais notoriamente em Florianópolis, em 2004 e 2005. Mas em outras cidades também.

 

Portanto, tem um fenômeno social recorrente e regular nas mobilizações por transportes. O MPL sabia que era um movimento social vivo e estava tentando organizar a reação espontânea da juventude contra o aumento dos preços dos transportes. Quando o MPL organizou a campanha de 2013, falou: “dessa vez nós vamos fazer acontecer”. Mudou um pouco a estratégia da campanha de 2011, pensando em atos muito fortes, muito radicais, que acontecessem com pouco intervalo de tempo. Ao invés de fazer uma vez por semana, fazer a cada dois dias, mais ou menos. E tal mudança teve um impacto grande no sucesso da campanha.

 

O que tem a ver com os meios de comunicação? A ação do MPL expressa uma insatisfação muito grande da população com o preço e a qualidade do transporte. Como se sabe que ela expressa? Porque faz dez anos que acontecem revoltas populares de uma maneira regular em todo o território nacional, em grandes cidades brasileiras, embora ninguém tivesse dado atenção até acontecer em São Paulo e no Rio.

 

Mas o MPL estava dando atenção porque sabia que havia um processo espontâneo de oposição ao aumento das passagens. Quando começou a fazer atos grandes, intensos e com curto espaço de tempo, mesmo que os meios de comunicação cobrissem de uma maneira negativa, as pessoas liam e diziam: “baderneiros, estão fechando as ruas, não representam ninguém, é coisa do PSOL, do PSTU”, enfim, o discurso dos meios de comunicação. Por um lado, elas escutavam isso, por outro lado, falavam: “tem gente indignada, tem gente indignada”. Eles conseguiram colocar todos os dias na capa dos jornais informação sobre as manifestações, e na imprensa televisiva também. As pessoas viam o Jornal Nacional (estamos falando do jornal visto por dezenas de milhões de pessoas todos os dias) e diziam: “tem gente indignada, tem gente indignada”.

 

No dia 13 de junho, antes da repressão violenta da polícia, a Folha de S. Paulo fez uma pesquisa de opinião na cidade – antes da violência. Os dados foram processados depois. Era uma quinta-feira e terminaram sendo publicados num sábado. Mas a pesquisa feita na quinta-feira deu que ¾ da população apoiavam a campanha contra o aumento. Na verdade, o jogo já tinha virado antes da repressão policial.

 

O que aconteceu naquela repressão do dia 13? Os meios de comunicação se colocaram contra os atos, em peso, de uma maneira organizada. Tenho dificuldade de achar que foi espontâneo o editorial do Estado de S. Paulo, o editorial da Folha de S. Paulo, o editorial do Jornal Nacional, e o Boris Casoy, na Band, os quatro veículos juntos, pedirem uma intervenção dura da polícia. O apresentador olhando para a câmera e pedindo uma intervenção da polícia para conter os “baderneiros” do MPL.

 

Aí a Folha de S. Paulo fez a pesquisa naquela noite, independentemente da violência da polícia. Houve a violência da polícia, mas, quando se começou a processar a pesquisa de opinião, os meios de comunicação descobriram que eles pediram para bater com rigor, para uma polícia que já é descontrolada, já não respeita os direitos humanos, totalmente sem controle. Eles autorizaram ainda mais a fazer o que quisessem. Eles pediram para a polícia bater sem dó num movimento social que tinha apoio de ¾ da população de São Paulo. Isso gerou uma reorganização completa do debate político, porque eles tinham feito uma enorme cagada. Pediram para bater naquilo que tinha um enorme apoio social.

 

Na sexta, no sábado e no domingo (dias 14, 15 e 16 de junho), vimos uma completa reorientação dos meios de comunicação, que advém do entendimento do fato de que a campanha era extremamente popular e tinha o apoio massivo da população. Quando estamos falando de ¾ de apoio da população de São Paulo, é muito mais do que têm o Geraldo Alckmin, Fernando Haddad, enfim, qualquer governo, qualquer instituição da cidade.

 

Nos protestos contra a Copa, em 12 de junho, na zona leste, vimos uma grande repressão, inclusive aos metroviários, que também faziam um ato em seu sindicato. Nos protestos seguintes, vimos mais violência e até o impedimento deles. Como você enxerga esse cenário, especialmente em relação à polícia e em ocasiões de menor visibilidade?


Pablo Ortellado: Sobre a visibilidade, o que aconteceu no ano passado foi totalmente fora do padrão, não acontece de forma regular. Pesquisas mostraram que 5% da população do país estiveram nas ruas. Um em cada vinte brasileiros. É um nível de mobilização pré-revolucionário, nenhuma sociedade se mobiliza nesse patamar regularmente. Esperar que os protestos de junho de 2013 voltem é completamente ilusório. Foi coisa do tipo Maio de 68, uma explosão que não se sabe de onde vem, como veio, muito excepcional. E medir qualquer coisa naqueles parâmetros é injusto. Não vai acontecer de forma regular.

 

Sobre a Copa, houve muito erro tático e estratégico dos movimentos que estavam se organizando para protestar. Eles tinham tudo para ganhar volume, tudo. As condições eram muito favoráveis. Até muito poucos dias antes de a Copa começar, metade da população estava com sentimentos contrários à Copa. Mas não tiveram a capacidade de organizar a insatisfação e dar a ela expressão política sólida.

 

Correio da Cidadania: Mas quais erros teriam sido esses, em sua opinião?

 

Pablo Ortellado: Não é fácil dizer, não gosto de falar muito do movimento de que não participo ativamente. É injusto. Mas tinha de ganhar legitimidade social, conquistar outras forças políticas, mostrar presença de rua. É difícil falar de fora, pois fui apenas participante de algumas manifestações. Houve um racha entre o Comitê Popular da Copa e o pessoal do ‘Se não tiver direitos, não vai ter Copa’.

 

Quando o Comitê começou o processo de mobilização de rua, parou. No dia 15 de maio, o ato deles foi dispersado muito rapidamente. Eles não deviam estar preparados para isso, pois mal teve 5 minutos de manifestação e deve ter sido muito frustrante. O Comitê teve um processo político de anos abortado e não sei exatamente qual entendimento teve para optar em parar com os atos de rua. Era o movimento que mais tinha legitimidade para fazer a mobilização. Não sei se entenderam que não tinha possibilidade de resposta, de converter os protestos em pautas concretas, ou se o nível de repressão estava grande demais para o que podiam conseguir.

 

Mas o fato é que tais movimentos não conseguiram organizar a insatisfação que estava claramente presente na sociedade brasileira. E podia ter se expressado em um nível mais alto de mobilização.

 

E diante do atual cenário, que também está repleto de greves, por todo o país – metroviários, rodoviários, garis, professores –, não tem faltado união e diálogo mais efetivos entre a classe trabalhadora e os movimentos sociais, a fim de aumentar esse nível de mobilização que você mencionou?

 

Pablo Ortellado: As coisas são interligadas. Boa parte das greves que vimos foram feitas contra as direções sindicais, pelo menos metade, eu diria. Isso é um legado de junho. Embora várias pessoas não vejam assim, junho foi uma vitória. Pesquisa da Folha mostrou que 70% das cidades com mais de 200 mil habitantes reduziram a tarifa. É uma vitória absurda. Em termos materiais, é quase um Bolsa-família. Conseguido num golpe, com uma semana de mobilização. Em um monte de cidade pequena, de interior, com 10 ou 20 mil habitantes, a população cercou e ocupou suas câmaras municipais para pressionar pela redução. E conseguiu. Isso é um aprendizado muito forte. Quem mora em São Paulo e foi às manifestações, quando passava o bilhete único e novamente via ‘3 reais’, sentia: “eu que consegui”. Tem um efeito psicológico e de empoderamento da luta social muito forte.

 

Tivemos dois fenômenos. O da mobilização sindical contra as lideranças, por meio de métodos de mobilização direta e em alguns casos ‘greves selvagens’, isto é, contra as direções. E teve um processo de ocupações que está muito além do MTST. O movimento é a expressão mais visível, mas a periferia teve um boom de ocupação urbana que não víamos desde os anos 80. É muita ocupação, pra todo lado. E acho que advém do sentimento de empoderamento e da vitória que foi junho de 2013.

 

O Brasil é muito grande, mas, olhando para São Paulo, ainda bem que o MTST conseguiu combinar o fenômeno de ocupação urbana com passeata de rua, que chamou muita atenção da mídia e deu visibilidade ao processo. Porque poderia ter acontecido que tal processo da periferia ficasse invisível, assim como foi invisível por 10 anos a luta pelo transporte. Está ocorrendo um processo de mobilização na questão da habitação, assim como no setor sindical, em diversas categorias. E vejo ligação com o que houve em junho.

 

As ações de tomada de rua de forma mais universal (até porque o transporte é tema universal), que transcendem determinada categoria, ensaiaram uma convergência com a movimentação sindical, no caso da greve dos professores do Rio de Janeiro. Também acho que teve alguma falha de não se entender a potência de convergência entre as duas tendências. No Rio, a greve dos professores teve passeata com 100 mil. Não têm 100 mil professores no Rio. Era a população aderindo ao movimento dos professores. Foram as maiores manifestações do país após junho. E não conseguimos reproduzir tal fenômeno. Os metroviários ensaiaram no final de sua greve, com apoio maior da população, mas não houve sequer tempo para ver o resultado.

 

No entanto, pelo jeito a repressão veio para ficar, a ponto de vermos atos que são simplesmente impedidos pela polícia de ocorrerem, e com posturas dos políticos que avalizam totalmente esse nível de arbitrariedade, a exemplo do governador de São Paulo (entre outros).

 

Pablo Ortellado: Na questão dos metroviários, entrou a Copa. Primeiro que eles aproveitaram o momento e a conjuntura pra ganharem visibilidade, ameaçando entrar em greve na véspera da Copa. Isso assustou o governo, que precisava garantir a mobilidade dos torcedores para o estádio, visto que os trilhos são o melhor meio de acesso. Mas, por outro lado, a Copa autorizou o regime de exceção que estamos vivendo. A repressão e demissão dos metroviários é absurdamente inconstitucional. E vemos de forma recorrente em todo o Brasil, não só em São Paulo. Manifestação em dia de jogo não podia ocorrer, nem concentração. Se tivesse concentração, não poderia andar. Foi assim em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, sempre seguindo o mesmo roteiro.

 

Se não é explícito, há um acordo de intenções e pontos de vista entre os meios de comunicação, judiciário, Ministério Público e todas as esferas de governo, isto é, os dois grandes polos do debate político nacional: PT e PSDB. Eles estão de acordo. Nisso, há um silêncio monumental pela suspensão do direito civil mais básico, de reunião e livre expressão. Tal direito foi suspenso no país em dias de jogo. Procure na Globo, Estadão, Época... Não saiu nada sobre isso. E provavelmente trata-se do legado mais perigoso da Copa.

 

Se o PT, principalmente, por ter raízes no movimento social, pensa que suspender tais direitos, excepcionalmente, não vai deixar marcas profundas na sociedade, está muito enganado. Viveremos durante muito tempo sob a sombra desse regime de exceção. Porque as instituições vivenciaram a experiência de que podem suspender direitos civis e nada acontece. Você acha que é só na Copa, que depois voltaremos a um regime de normalidade? Não vamos voltar à normalidade! Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos. Porque as pessoas das instituições sabem que podem fazer isso de forma indolor, inócua, e nada acontece. Vamos viver dias muito ruins por conta do que aconteceu na Copa.

 

A única manifestação que não foi praticamente proibida, nesses últimos dias, foi a do MPL, em 19 de junho. Gostaríamos que você comentasse como foi esse dia, em que black blocks tentaram agir por conta própria, atacando o que consideram símbolo capitalista, e membros do MPL tentavam impedi-los, entrando em clara divergência. Como é o movimento tentar impedir o black block de agir à sua maneira e como esse grupo se desenvolveu?

 

Pablo Ortellado: Do jeito que eu falo, parece até que sou um grande defensor do black block. Acontece que eles foram massacrados. No meu histórico ativista, sempre fui muito crítico da tática black block. Mas sofreram um ataque tão duro, visando deslegitimá-los como atores políticos, que achei importante defender.

 

Eles começaram a atuar na Alemanha, como espécie de grupo de autodefesa do movimento autônomo alemão. O que não é novo, dado que todo movimento de rua sempre teve alguma tática de autodefesa. E no caso alemão a denominação se deu até na brincadeira, por conta da característica visual dos atos de lá. Eram manifestações organizadas em blocos. Havia o bloco verde, dos ambientalistas, o bloco vermelho, dos sindicatos e do Partido Comunista. Por analogia, tinha o bloco negro, do movimento autônomo. Eles não inventaram nada, apenas desenvolveram a tradição de praticar a autodefesa, fechando os braços para impedir que agentes provocadores interferissem nas manifestações e criassem tumulto ou conflito. Ou faziam um bloco pra enfrentar a polícia e a manifestação passar.

 

Esse black block foi ressignificado nos protestos de Seattle. Advém de um debate interno do movimento norte-americano, que debatia as táticas gandhianas de desobediência civil não violenta, um paradigma desde que o movimento negro as utilizou com sucesso na luta por direitos civis e o fim da segregação. O movimento negro usava a desobediência civil não violenta e resistência passiva. Por exemplo, não podiam entrar na lanchonete, por lei, mas mesmo assim entravam, fazendo o chamado sit-in. Depois, a polícia vinha cumprir a lei, de forma violenta, e os manifestantes não reagiam. A reação violenta da polícia, batendo em manifestantes que defendiam um princípio de justiça muito claro, flagrante, chocava a opinião pública. Foi o que Gandhi fez na independência da Índia e Luther King retomou nos EUA pra lutar pelo fim da segregação racial. Foi extremamente bem sucedido, os EUA ficavam chocados de ver a polícia batendo em manifestantes que lutavam por direitos de igualdade supostamente previstos em sua Constituição. Isso virou paradigma nos EUA e todos os movimentos dos anos 70, 80 e 90 utilizaram a desobediência civil não violenta nos moldes de Gandhi e Luther King.

 

Em 1999, houve um debate sobre isso dentro do movimento que viria a ser chamado de antiglobalização. E o grupo do movimento ambiental já avisara: tal forma de desobediência civil não funcionava mais, há tempos. Porque os meios de comunicação não cobrem a violência policial. Se não cobrem, não tem como a opinião pública ficar chocada com ataques a manifestantes que defendem princípios de justiça. Como a mídia não cobre, não faz sentido persistir na tática. A polícia brutaliza, tortura e até assassina militantes e a imprensa não dá a mínima. Se não dá a mínima, a tática perdeu sentido.

 

Esse debate foi feito pelo grupo que originou o black block de Seattle. Decidiram fazer um ato de desobediência que atacasse o coração do sistema jurídico e da defesa da propriedade privada. Com quebras de propriedade e destruição sistemática e seletiva, como solução para recuperar a atenção dos meios de comunicação. Foi a grande controvérsia do movimento nos anos 90. Ativistas e movimentos da ação direta ficaram putos na época. Mas de fato partiu-se pra destruição de bancos e outros grandes símbolos do capitalismo, poupando o pequeno comércio, e a mídia voltou a dar atenção a certos protestos.

 

No meu entender, qualquer tática tem de ser colocada no plano da estratégia, do movimento. Claro que pode fazer sentido ter um grupo que faça frente à repressão policial. Mas é caso a caso, precisa saber aonde, como, quando, por que... Esse ataque principista, de ser contra ou a favor do black black, como se fosse um grupo definido de pessoas, não é o ponto. Mas do ponto de vista de princípio, o fato de serem pessoas mascaradas, e qualquer um poder entrar, deixa uma vulnerabilidade muito grande, é muito fácil infiltrar alguém.

 

Diante do que você disse sobre o tamanho dos protestos de junho, que em condições normais não voltarão a ocorrer, e pelo fato de tal momento ter desencadeado novas lutas, até contra as direções, você concorda com a tese de que tivemos um crescimento muito mais qualitativo do que quantitativo nas mobilizações, através de lutas setorizadas, mas também mais frequentes e aguerridas?

 

Pablo Ortellado: Não devemos medir o que estamos vivendo por junho. Devemos medir por maio de 2013. O que estamos vivendo é outro patamar de mobilização social. Quem estava nas ruas antes de junho de 2013 sabe muito bem que estamos em outro patamar. Junho foi extraordinário, não vamos revivê-lo tão cedo. Devemos medir pelo que tinha antes. E o que aconteceu, na verdade, foi uma espécie de correção de rumo em relação à história do PT.

 

O PT é um partido com histórico nas mobilizações, é o partido dos movimentos sociais. Muita gente pensa que no Brasil as pessoas não se mobilizam, mas é uma ideia completamente falsa. Mobilizam-se muito. O que vivenciamos no fim dos anos 70 e começo dos anos 80 foi um padrão elevadíssimo de mobilização. A sociedade se desmobilizou porque optou pela via institucional. O PT não é um partido comunista ou socialista clássico, que de forma leninista se infiltra nos movimentos e tenta dar-lhes linha e orientação política. Pelo contrário, é um partido de movimentos sociais que se federaram e fundaram um partido. Em determinado momento esse partido resolveu optar, fortemente, pela via institucional. Ganhar eleições de prefeito, governador, presidente. Conquistar o poder político. Essa opção, do decorrer dos anos 80, principalmente do final da década, foi altamente desmobilizadora. Uma opção pela luta institucional. E tudo que vimos nos anos 90 foi um processo de declínio da mobilização, que estava em patamar muito elevado. Nos anos 2000, tivemos um patamar muito baixo, por conta da opção do PT.

 

Aconteceu que os jovens dos anos 90 e 2000 tiveram de reinventar o movimento social, de maneira completamente descolada do PT. Pois nos anos 90 havia basicamente o MST, fora isso pouca coisa. Foi preciso reconstruir os movimentos fora da órbita do PT. Não é à toa que junho tenha começado com o MPL, um movimento de jovens que reconstruiu o ciclo de mobilização por fora do PT. Tais movimentos estavam ocultos e uma das coisas mais surpreendentes, para mim, é ver as pessoas chocadas em ver uma luta contra a tarifa ganhar a dimensão que ganhou. Mas estava lá há 10 anos. Se olharmos o que aconteceu em Florianópolis, entre 2004 e 2005, teve mobilização maior que a de junho, proporcionalmente à sua população, da menor capital do Brasil. Tinha 5% da população na rua contra o aumento. Isso acontecia em Goiânia, Salvador, Belém, mas ninguém prestava atenção. Se não for em São Paulo ou Rio, dizem que é “fenômeno local”. Mas fenômenos locais em todo o território nacional têm uma sistematicidade, expressam algo que ocorre na sociedade.

 

E ninguém prestava atenção, não apenas os meios de comunicação. Nenhum partido incorporou a pauta, nem PT, nem PSOL, nem PSTU. Ninguém na esquerda deu centralidade à pauta por transporte, embora já fosse um fenômeno social recorrente. A universidade tampouco prestou atenção. Faz 10 anos que acontecem tais lutas e existem apenas três teses dissertativas a respeito de um fenômeno social dessa magnitude. Aí, quando acontece, ficam perguntando “nossa, de onde veio?”. Depois vemos as explicações mais estapafúrdias de sociólogos tentando analisar. Pô, veio de onde veio, ou seja, do transporte. Porque é assim mesmo, começa pequeno e de repente explode. Estava acontecendo há 10 anos e ninguém prestou atenção. É um fenômeno novo, uma espécie de reconstrução do movimento social de maneira desvinculada do ciclo que culminou no Partido dos Trabalhadores.

 

Voltando à pergunta, penso que os meios de comunicação, academia e partidos estão olhando para novos fenômenos sociais, que estão além daquele ciclo do movimento de habitação, do movimento de carestia, dos sindicatos dos anos 70 e 80, do próprio MST...

 

O que pensa do decreto 8.243/14 , que versa sobre a participação popular em instâncias de decisão, através de conselhos? Pensa que o PT pode vir a tentar recuperar o terreno perdido no movimento social?

 

Pablo Ortellado: Não sei se é recuperar. Está na gênese do PT o participacionismo, faz parte do DNA do partido. Se olharmos, a origem do PT e esse novo ativismo social não são dois fenômenos desligados. Fazem parte da mesma coisa. Mas o PT sofreu o desvio de rota que falamos. Quando olhamos, o movimento nascido dos anos 70 em diante é muito diferente dos anos anteriores. Quem conhece militantes mais antigos sabe que os movimentos sociais pré-anos 70 são de natureza muito diferente. Eles não eram participacionistas, não defendiam a democracia como forma de organização do movimento social. E o PT já está inserido no contexto seguinte, em seus primórdios. O PT é um fenômeno mundial, porque é um partido de movimentos sociais que se institucionalizou de forma muito abrupta. E também vitoriosa, porque conquistou o poder político. A única coisa parecida, em minha visão, é o Partido Verde alemão, de trajetória parecida.

 

Mas em lugares onde o movimento social não optou pela via institucional, vemos que foi amadurecendo. Primeiro é participacionista. O PT é muito assim, tem a ideia de democracia participativa, de tudo passar por assembleia, conquista de bases, o que antes se chamava basismo. Vemos outros movimentos sociais do mundo passarem por tal processo. Depois se radicalizam, se convertem em crítica ao leninismo, à ideia de que as assembleias devem ser de disputa por corrente, o que é ruim para o movimento. Isso no sentido de ser preferível optar por movimentos menos confrontativos, em favor de processos orientados ao consenso. Daí vem a crítica ao leninismo, em favor de um processo no qual se defendam as assembleias gerais permanentes como forma de gestão dos movimentos.

 

Se os movimentos sociais que constituíram o PT não tivessem entrado nas instituições de forma tão abrupta, conforme optaram, teriam passado por esse processo de radicalização democrática, teriam completado o processo de aprofundamento democrático e se encontrado com o novo ativismo. Fariam parte, digamos, do mesmo processo. Mas tal caminho foi interrompido pela opção institucional do partido. E foi mais ou menos resgatado pela nova geração. Não são coisas completamente diferentes ou dois processos diferentes. Acho que fazem parte de um processo de aprofundamento democrático dos movimentos sociais, que vem desde os anos 70.

 

No atual momento, considera possível convergir a via institucional com as lutas dos movimentos sociais, de modo a unir forças entre ambas as frentes?

 

Pablo Ortellado: O que eu gostaria (para além da minha opinião) que saísse da atual experiência, e vejo condições totais de fazermos isso no Brasil, é uma retomada dos movimentos sociais, no sentido de equilibrarem-se com o poder político. Entendendo que os movimentos precisam converter a mobilização social em transformação institucional. Porque a coisa passa por isso. Redução de tarifa: passa por processo institucional. É decisão de governo. Há uma certa leitura no novo movimento social de que basta gritar para acontecer. Não é verdade. No lado de dentro, na coxia do palco, acontecem vários processos em que o movimento precisa intervir. Mas para intervir não precisa se institucionalizar, não precisa eleger deputado, ninguém precisa virar deputado ou prefeito. Precisa de interlocução, mais ativa e independente, com o poder institucional.

 

Eu gostaria que o resultado do atual processo fosse duplo. Primeiro, o fortalecimento da mobilização social, que esvaziamos durante os anos 80 e principalmente nos anos 90. Esvaziamos as ruas, a mobilização direta, o processo de greve, a reivindicação de rua. Tudo foi completamente esvaziado. Que o processo de retomada das ruas continue se fortalecendo. Mas, por outro lado, que se fortaleça de maneira a converter a insatisfação e mobilização em mudanças concretas, aprendendo que se optarmos por uma via institucional direta matamos a mobilização. No meu entender, o que devemos tirar como legado é um processo de construção de mobilização social que saiba dialogar de maneira independente com o poder político. É um equilíbrio muito difícil.

 

O PT foi fundado pelo movimento social e até muito recentemente partido e movimentos eram praticamente a mesma coisa. Isso se refletia no governo, em um jogo puramente institucional. Começamos a esboçar um jogo de outra natureza, de mobilização social e instituições, sem identidade entre ambas. E nossas referências de movimento que dialoga com o poder político de forma independente são muito antigas, não temos mais militantes que vivenciaram isso.

 

O MTST é o exemplo mais próximo do que você fala? Alguém, seja partido ou movimento, tem demonstrado capacidade de aglutinar esses dois polos?

 

Pablo Ortellado: Acho que há avanços. O MTST e o MPL são dois exemplos diferentes. O MTST não é movimento de tipo tão novo. Tem uma forma de organização muito vertical. Não tenho acompanhado de perto, mas já acompanhei. Acabou de demonstrar de forma brilhante a capacidade de mobilização de rua sem se confundir com o poder político, conseguindo um conjunto de vitórias espetaculares. A última campanha do MTST foi muito bem desenhada e muito bem sucedida. Já o MPL, totalmente de tipo novo, horizontal, de base, antiinstitucional, também tem muito mais capacidade, em relação aos movimentos anteriores, de converter a insatisfação que expressa em mudança institucional. Tem acumulado conjunto de vitórias bastante expressivo. Mas tem, pela sua própria história, muita dificuldade de dialogar com as instituições. Pelos bons motivos.

 

O MPL foi fundado muito por conta da experiência da Revolta do Buzu, de Salvador, em 2003. Um levante espontâneo de jovens, por conta de um aumento de 20 centavos. Organizaram-se de maneira horizontal, assembleária, tomaram as ruas, começaram a bloqueá-las durante várias semanas, estrangulando a cidade e pressionando pela redução das passagens. Mas não tinham uma expressão política, um movimento, lideranças constituídas. O poder público não sabia com quem negociar. E começou a negociar com a UNE, que por sua vez passou outra agenda, outra pauta, que não era a revogação das passagens. O movimento se sentiu traído e daí nasceu o MPL. De uma experiência, digamos, derrotada da Revolta do Buzu, se constituiu como expressão política da revolta espontânea dos jovens contra a tarifa. E que busca ser fiel à reivindicação, para não trair o movimento. Como não trair o movimento? O MPL tem uma pauta única: redução das passagens.

 

Na revolta de 2013, o prefeito falou que o movimento era intransigente, não queria negociar. Mas o MPL não pode negociar, é da sua natureza. Ele foi concebido para não negociar, porque a negociação de tipo antigo era subordinar uma agenda de movimento a uma agenda de partido. E ele nasce como organização política que só tem a agenda do movimento, por isso não quis falar de qualquer outro assunto que não fosse transporte. A agenda do MPL é quando tem aumento ou redução do aumento. E quando não tem aumento, é lutar pela tarifa zero. De onde o MPL extraiu sua agenda? Das ruas, é uma reivindicação espontânea, demonstrada empiricamente pelas mobilizações sociais que já estão no território nacional inteiro há 10 anos. Por um lado, o MPL não dialoga, o que é verdade. Mas, por outro lado, não dialoga por razões muito compreensíveis, que explicam sua própria natureza política, de não ser um partido.

 

Não precisamos fundar um novo PT. Já tivemos a experiências de os movimentos chegarem ao poder. O projeto já deu seus erros e acertos. Tivemos óbvios ganhos sociais, a meu ver, em programas sociais, benefícios etc., mas também há óbvios limites. Não faz sentido tentar reproduzir tal experiência. Por outro lado, a mobilização antiinstitucional, que se recusa ao diálogo, vira uma espécie de mobilização autoexpressiva, fica muito próxima da arte, o que tem a ver com a gênese na contracultura de tais movimentos. A gênese na contracultura do novo ativismo social deixa marcas. É muito autoexpressiva. No movimento antiglobalização, fazíamos um esforço enorme para não transformá-lo num grande carnaval, porque expressamos nossa insatisfação sem nenhum sentido estratégico, se esgotando na autoexpressão, numa negatividade vazia.

 

Temos de encontrar um ponto intermediário em relação à manifestação autoexpressiva e contracultural... Até nos movimentos convencionais vemos ações desprovidas de sentido, que dizem ser “pra motivar a militância”. Isto é, algo puramente autoexpressivo. E é uma tendência histórica dos movimentos sociais. O desafio é converter a necessidade de autoexpressão da indignação e subordiná-la a uma estratégia, sem institucionalizar os movimentos.

 

 

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A entrevista coletiva é parte do projeto Copa 412, idealizado pela Revista Vaidapé, que reúne diversos veículos e coletivos midialivristas em torno de uma produção jornalística alternativa durante a Copa do Mundo.

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Editado por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.


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