Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – Soluços industrializantes

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A Tolice da Inteligência Brasileira, ao invés de fazer uma análise aprofundada das relações de produção presentes após a libertação dos escravos, para deslindar os problemas históricos do desenvolvimento capitalista no Brasil, preferiu saltar diretamente para a análise da “época em que as relações de subordinação econômica ao capitalismo internacional pareciam possíveis de serem superadas a partir de uma direção política adequada”.

 

Essa suposição, ainda segundo A Tolice..., teria feito com que o “tema do estatuto de subordinação econômica, ou seja, ‘como’ a subordinação econômica brasileira era produzida e reproduzida” se tornasse o “aspecto central do debate” economicista. Teria sido nesse contexto que Florestan Fernandes avançou “na questão de refletir sobre a ‘reprodução simbólica’ do capitalismo periférico..., aspecto principal de uma sociologia crítica do Brasil contemporâneo”.

 

Afinal, continua A Tolice..., “o ‘trabalho da dominação social’, que esconde privilégios, só pode ser percebido pela reconstrução de uma reprodução simbólica muito peculiar ao capitalismo”. Nesse sentido, a Crítica à razão dualista, de Francisco Oliveira, “mostra os limites do economicismo marxista para explicar a expansão do capitalismo brasileiro acompanhada de um modelo de consumo restrito à classe média (no) processo de industrialização” pós-1930.

 

Portanto, como já vimos em outros momentos, A Tolice... continua com o hábito de saltar etapas econômicas e sociais da história, como se isso fosse de menor importância. Pensa que, se os conceitos ou categorias sociológicas de “trabalho de dominação social” e de “reprodução simbólica” podem explicar e responder a tudo, para que preocupar-se com os detalhes históricos? Para que remoer o prolongado domínio dos latifundiários de diversos tipos (canavieiros, cafeeiros, pecuários etc. etc. etc.), não só sobre as terras e seus agregados, mas também sobre as políticas locais, regionais e nacionais brasileiras, se isso “aparentemente” nada tem a ver com a “reprodução simbólica muito peculiar ao capitalismo”?

 

“Aparentemente”, porque as relações de produção (agregação) praticadas pelo sistema latifundiário brasileiro tiveram muito a ver, durante um largo período, com a existência “esquálida” das relações de produção assalariadas, próprias do capitalismo. Mesmo no colonato de café, a relação assalariada aparece e se firma como um “híbrido” da agregação. Se examinarmos o papel histórico do antigo sistema latifundiário no Brasil, que se reproduziu sem grandes mudanças até meados dos anos 1960, podemos dizer que ele representou um entrave ao desenvolvimento de qualquer tipo de reprodução capitalista, inclusive a “simbólica”.

 

Simbolicamente, primeiro porque forjou uma ideologia agrarista, segundo a qual o Brasil seria o “celeiro do mundo”, sendo desnecessário desenvolver a indústria e, portanto, mudar o sistema de meação, cambão e endividamento que subordinava quase totalmente seus trabalhadores. Depois porque, associada ao agrarismo, forjou também a ideologia da superioridade da produção industrial europeia e norte-americana, segundo a qual o “nacional é inferior”, e “vale mais a pena importar”.

 

Materialmente, porque mantinha em suas terras a maior parte do estoque de trabalhadores do país (mais de 70% nos anos 1950), fazendo com que sua ausência nas lutas ocorridas nos centros urbanos não contribuísse para forçar, como ocorreu em diversos outros países do mundo, um desenvolvimento industrial. Nessas condições, o desenvolvimento do capitalismo, marcado principalmente pela industrialização, como já dissemos em outros momentos, se caracterizou no Brasil por uma série de “soluços”.

 

Bem atrás, no final do século 18, o “soluço” das tentativas de implantação de oficinas e pequenas manufaturas, boicotado tanto pela monarquia imperial, que tinha horror ao trabalho livre, quanto pela Inglaterra, que tinha asco a qualquer concorrência. Depois, novo “soluço”, já na segunda década do século 20, quando a eclosão da primeira guerra imperialista mundial abriu espaço para a “substituição das importações” que vinham da Europa.

 

Desse “soluço” sobraram algumas tecelagens e outras manufaturas de bens de consumo, assim como uma primeira geração da classe operária, cujas lutas eram tratadas como casos de polícia. Para que ocorresse um terceiro “soluço”, foi preciso uma “revolução liberal”, em 1930, comandada por setores latifundiários “opostos tanto à ‘socialização’ das perdas da cafeicultura, quanto às temerosas revoluções comunistas. Essa “revolução” transformou o Estado brasileiro num instrumento de industrialização.

 

No entanto, supor que o processo de industrialização capitalista nacional teve curso livre nos anos seguintes a 1930 não passa de desconhecimento rasteiro. É verdade que, entre meados dos anos 1930 e meados dos anos 1940, aproveitando-se das contradições interimperialistas, a ditadura Vargas estimulou investimentos em várias indústrias de base, sempre reclamando da falta de visão, ou da “burrice”, da burguesia cabocla, submissa tanto aos latifundiários quanto às determinações do capital externo. Por isso, o final dos anos 1940 e a primeira metade dos anos 1950 foram de crise do terceiro “soluço”.

 

O quarto “soluço”, iniciado na segunda metade dos anos 1950, com o Plano de Metas de JK, dependeu fundamentalmente da mudança na política de exportação de capitais dos países capitalistas avançados, principalmente dos Estados Unidos. Com montanhas de capitais excedentes, obtidos durante a segunda guerra mundial, e para manter alta sua taxa média de lucro, esses capitais precisavam ser exportados, tanto na forma de empréstimos quanto na forma de investimentos, para países agrários de mão de obra barata.

 

Mão de obra que, no Brasil, havia se expandido, seja pelo crescimento populacional natural, seja pelas migrações internas, do Nordeste para o Sul-Sudeste, e daí para o Centro-Oeste. Algumas centenas de milhares de nordestinos “retirantes” migraram, fugindo das dívidas e da subordinação ao latifúndio. Aproveitaram-se das secas que castigaram aquela região por vários anos, e da atração de empregos nas novas obras e indústrias do período. Enquanto isso, outras centenas de milhares de gaúchos, mineiros e paulistas, sem terra ou com pouca terra, migraram para posses nas terras devolutas das novas fronteiras agrícolas.

 

Porém, o contingente de força de trabalho livre para operar nas novas indústrias, pertencentes principalmente aos capitais estrangeiros, não era suficiente para atender ao crescente interesse de investimentos dos capitais internacionais. Além disso, crescia a luta de classes, corporificada em movimentos sociais que exigiam não só atitudes nacionalistas diante dos capitais estrangeiros, mas também reforma agrária, livre acesso às posses em terras públicas, salários maiores e diversos outros direitos sociais e políticos.

 

Nessas condições, o quarto “soluço” de desenvolvimento capitalista brasileiro entrou em crise geral no início dos anos 1960. Diante do perigo dessa crise se transformar numa nova “revolução comunista” na América Latina, a intervenção militar norte-americana só não se materializou porque as forças armadas brasileiras cumpriram seu papel de gendarmes, e instituíram sua ditadura “modernizante”.

 

Afora os “atos” de coerção, cerceamento e repressão políticos, o ato ditatorial mais importante no campo econômico e social foi o Estatuto da Terra, destinado a transformar os velhos latifúndios, carregados de grandes contingentes de força de trabalho semilivre, em latifúndios maquinizados, com pouca mão de obra, mas assalariada, para a produção e exportação de commodities agrícolas.

 

Em outras palavras, o primeiro e o mais importante ato ditatorial no “sentido capitalista”, com um simbolismo sequer vislumbrado por economistas e sociólogos weberianos, foi a “modernização agrícola”. Ela “libertou” a maior parte da força de trabalho estocada nos latifúndios para o trabalho nas indústrias, e também no moderno “agronegócio”. A esse ato seguiu-se a ampla abertura da economia aos investimentos estrangeiros, propiciando as condições para o projetado “milagre econômico” ditatorial.

 

No entanto, subordinado às leis de desenvolvimento determinadas pela dependência ou subordinação às potências estrangeiras norte-americana, europeias e japonesa, esse quinto “soluço” de desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo “milagroso”, tendia a despencar tão logo aqueles capitalismos entrassem numa de suas crises periódicas. O que ocorreu a partir de 1973, com as crises do petróleo e do dólar, que abalaram o mundo.

 

Como é possível, com tais lacunas, e com a caracterização da “expansão do capitalismo” como “modelo de consumo restrito à classe média (no) processo de industrialização”, pretender acusar “os limites do economicismo marxista”?

 

Pode-se transformar o singular e complexo desenvolvimento ou expansão do capitalismo no Brasil num simples “modelo de consumo restrito à classe média”? Ou isto é um exemplo economicista muito mais rasteiro do que todos os conhecidos exemplos de marxistas que se tornam economicistas por não dominarem, como deveriam, o método e os conceitos básicos descobertos por Marx?

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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