Correio da Cidadania

Um discípulo exemplar

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A fé nasce do testemunho. Ninguém adere a uma religião ou Igreja por ter lido um texto doutrinário. Foi o testemunho de Jesus, de Pedro e Paulo, e dos mártires, que fizeram o Cristianismo sobrepujar o Império Romano.

 

Foi o testemunho de Antônio Cechin que fez de mim um militante cristão. No primeiro fim de semana deste mês de novembro, estivemos juntos, em Corrêas (RJ), na companhia de uma comunidade vinculada à Teologia da Libertação.

 

Mais de 50 anos de amizade me ligaram àquele gaúcho alto, esguio, de fala estridente, formado em Letras Clássicas e Direito, e que se fez irmão marista. Conheci-o em 1962, quando retornou da Europa após cursar Catequese, e Economia e Humanismo como aluno do padre Lebret, na França.

 

No Vaticano, secretariou a Sagrada Congregação dos Ritos, responsável pela canonização dos santos. Contava que, ali, perdeu duas ilusões: a primeira, de que católicos eram elevados aos altares como santos apenas por suas virtudes heroicas. Também o dinheiro pesa muito, pois os processos de canonização são muito caros.

 

A segunda, de que o papa nomeia diretamente cada bispo. Certa manhã acompanhou um cardeal ao café da manhã com João XXIII. Ao chegarem, o papa tirou os olhos das páginas de L’Osservatore Romano, órgão oficial do Vaticano, e comentou: “que boa notícia. O padre fulano, que conheci em Bolonha, ontem foi nomeado bispo no Piemonte”.

 

Ao retornar ao Brasil, tornou-se assessor da Juventude Estudantil Católica, cuja direção nacional eu integrava, e implantou o método Paulo Freire na periferia de Porto Alegre.

 

Suas Fichas Catequéticas apresentavam o Cristianismo destituído de moralismo e centrado no compromisso com a justiça social, o que o levou à primeira prisão sob a ditadura, em 1968. A segunda foi em 1972, ao fundar, no Rio Grande do Sul, a Comissão Pastoral da Terra, que na década seguinte daria origem ao MST.

 

Cechin era das raras pessoas a ousarem enfrentar o cardeal Vicente Scherer, de tendência conservadora. O prelado o respeitava por sua coerência e exemplo de vida despojada de qualquer ambição ou apego material.

 

Ao me transferir de São Paulo para o Sul, em 1969, tentando escapar do cerco da ditadura, Cechin foi o meu esteio em Porto Alegre. Era por ele que eu recebia e enviava cartas. Com frequência, dormia no apartamento no qual ele morava com sua irmã Matilde.

 

Fui preso em novembro daquele ano. Cechin se mobilizou em meu favor e hospedou meus pais na capital gaúcha. Era, por excelência, um homem solidário.

 

Com quase 60 anos de idade, decidiu se dedicar aos moradores pobres das ilhas e das margens do Rio Guaíba, que banha Porto Alegre. Nos últimos trinta anos arrancou aquela gente da invisibilidade, criou cooperativas de papeleiros e coletores de material reciclável, ensinou como impedir que o lixo agravasse ainda mais a degradação ambiental. Seu espírito evangélico fez brotar ali a devoção a Nossa Senhora das Águas; a Romaria das Águas, com as barcas deslizando pelo Delta do Jacuí; e a Pastoral da Ecologia.

 

Sua devoção mais profunda, entretanto, era a São Sepé Tiaraju, indígena canonizado pela fé do povo gaúcho. Foi ele quem criou o Caminho de São Sepé, de Rio Pardo a São Gabriel.

 

Cechin viveu entregue intensamente ao trabalho de base, de formiguinha que favorece a consciência cidadã dos mais pobres, conforme relata em seu livro Empoderamento popular – uma pedagogia de libertação (Porto Alegre, Estef 2010).

 

Num país de tanta corrupção, nepotismo, marajás do serviço público e ambição de riqueza e poder, um homem como Antônio Cechin fez diferença por sua fidelidade à proposta de Jesus. Aos 89 anos de idade, ele transvivenciou no último dia 16. Como legado, deixou-nos seu testemunho evangélico embebido de utopia.

 

 

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Fontanar), entre outros livros.

 

 

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