Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – colônia e patrimonialismo

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Por não se dar conta das incongruências de Weber, A Tolice da Inteligência Brasileira se mantém firme na ideia de que, a “partir de um fundamento comum na leitura unilateral da tese weberiana da especificidade do Ocidente”, foi constituída “uma leitura hegemônica das ciências sociais contemporâneas, cujo núcleo é um ‘equivalente funcional’ do racismo científico”.

 

Ou seja, o que “outrora era legitimado como diferença racial e biológica”, passou “a ser obtido pela noção de ‘estoque cultural’...”. O antigo “predomínio do ‘primitivo’, ‘pessoal’ e ‘corrupto’, como marca da sociedade patrimonialista”, teria sido substituído pela “afirmação da ‘modernidade’, ‘impessoalidade’ e ‘confiança’ típicas das sociedades centrais”. O “racismo culturalista” teria se desdobrado “em uma noção central e outra periférica” que “permitiria determinar o sentido da ação social em qualquer contexto”, visando “legitimar científica e politicamente... a superioridade norte-americana em relação a todas as outras sociedades”.

 

Não deixa de ser interessante que Jessé Souza concentre toda sua crítica na “superioridade norte-americana”, deixando de lado a “superioridade europeia”, e a “superioridade nipônica”, como se estas fossem inexistentes. Os impérios coloniais espanhol, inglês (“onde o sol nunca se punha”), francês, belga, e alemão, são misteriosamente omitidos. Eles parecem nada ter a ver com o “racismo culturalista”, que teria sido o “esquema interpretativo... utilizado também para as sociedades periféricas... para explicar suas próprias sociedades”.

 

Porém, tratando-se do Brasil, não há como esconder o império colonial português. Este, “desde a prematura centralização e unificação do Estado... medieval”, “por um lado, (permitiu) a concentração dos recursos necessários à aventura ultramarina, por outro (guardou) em si um efeito não esperado e perverso, o impedimento de condições propícias para o desenvolvimento do capitalismo industrial”. Isto é, o “impedimento da constituição de uma sociedade moderna..., ao inibir “o exercício das liberdades econômicas fundamentais”.

 

Ou seja, Jessé Souza quase chegou lá, ao proclamar que a revolução de Avis (é disso que se trata quando fala da centralização do Estado medieval) foi incompleta. Isto é, seu “patrimonialismo”, por um lado, criou as condições para a “aventura ultramarina” mercantilista. Obteve financiamentos e técnicas holandeses. Apoiou os mercadores, e transformou parte dos senhores feudais em “joões-sem-terra”, para comandarem as frotas e dirigirem as novas terras coloniais. Por outro lado, não criou a massa de camponeses expropriados que poderia servir de força de trabalho livre para a indústria, a “liberdade econômica fundamental” para o desenvolvimento industrial.

 

A pequena população pode ter sido um fator negativo na consecução incompleta desse processo de acumulação primitiva do capital em Portugal. No entanto, qualquer que tenha sido o motivo, o fato é que esse reino, embora tenha o mérito pioneiro de enfrentar os dragões mitológicos do mar salgado, quase da mesma forma que os chineses, não completou seu processo de modernização.

 

Sua riqueza acumulada foi sendo dilapidada nas relações com a crescentemente capitalista Inglaterra. Portugal transformou-se num simples intermediário entre as colônias que formalmente eram suas, principalmente as Províncias do Grão-Pará e do Brasil, e a metrópole do império mundial britânico. Assim, talvez por haver percebido a impossibilidade de Portugal se transformar numa sociedade “moderna”, Jessé Souza subestime o papel do “patrimonialismo português” na formação da estrutura social brasileira.

 

Ao contrário de Faoro, para quem o “estamento patrimonial” que controlava o Estado brasileiro “de forma corrupta” teria sido herdado de Portugal, Jessé Souza considera que “todos os pressupostos, tanto os históricos quanto os sociológicos, da análise de Faoro”, seriam “falsos”. Seu argumento contra a “análise patrimonialista”, aplicada “ao Brasil contemporâneo”, tem por base a suposição de que tal “patrimonialismo, ou a existência de um estado forte” não teria se contraposto “ao desenvolvimento norte-americano”.

 

A “expansão territorial e econômica” norte-americana teria resultado justamente do “poderio militar” de seu patrimonialismo. Já no “caso brasileiro, só em meados do século 20” teria se constituído “uma verdadeira burocracia com os meios para a atuação em todo o território nacional, mas já em um contexto de desenvolvimento capitalista intenso e rápido”. Portanto, aqui, “jamais” teria existido “no período colonial qualquer coisa semelhante ao estamento burocrático chinês”. Como vemos, Jessé Souza salta do patrimonialismo norte-americano para o estamento burocrático chinês como se estivesse diante de irmãos siameses. Mas sua comparação é forçada.

 

Para ser mais correto, talvez nem mesmo na Ásia tenha havido “qualquer coisa semelhante ao estamento burocrático chinês”, um fenômeno só capaz de ocorrer numa civilização de grande população com mais de cinco mil anos de história. Portanto, está fora de lugar, assim como a afirmação de que a “colonização do (Brasil) foi deixada nas mãos de particulares que eram verdadeiros soberanos nas suas terras, onde o Estado português apenas de modo muito tênue conseguia impor sua vontade”.

 

Jessé Souza tenta dar credibilidade a essa afirmação ao sustentar que a “falta de qualquer estrutura de controle e administração levou a uma forma extremamente descentralizada de desenvolvimento das ‘capitanias’”. Exceção histórica a isso teria sido “o ataque fiscal aos lucros das minas na província de Minas Gerais na segunda metade do século 17, sem que isso tenha levado à constituição de um estamento nacional...”.

 

Tentando traduzir: a) o “patrimonialismo”, ou um Estado forte, não seria impedimento ao “desenvolvimento capitalista”; b) o Estado português jamais teria conseguido impor sua vontade aos “particulares” das terras brasileiras; c) a falta de controle e administração da metrópole portuguesa teria levado ao desenvolvimento “extremamente descentralizado” das “capitanias”, com exceção do controle “fiscal” sobre as minas auríferas, no século 17; d) porém, nem mesmo esse controle teria levado à “constituição de um estamento nacional”; e) portanto, não teria existido “patrimonialismo” no Brasil.

 

Assim, estamos diante de uma síntese bizarramente weberiana da história da colônia brasileira de Portugal, tendo o “desenvolvimento norte-americano” como um bode no meio da sala. Na verdade, as capitanias foram um experimento logo deixado de lado. Na província do Brasil, a monarquia portuguesa as substituiu pela cessão de sesmarias a nobres e mercadores portugueses, para implantar a cultura da cana e engenhos de açúcar, com base no trabalho escravo. Na província do Grão-Pará, a coroa portuguesa proibiu a escravidão indígena e estimulou as ordens religiosas a instalarem “reduções” para a coleta e a exportação das “drogas do sertão”, que concorriam com as “especiarias indianas”.

 

A monarquia portuguesa também agiu para instalar “governos gerais” e “câmaras municipais de homes bons”, já no século 17, de modo a estabelecer o controle sobre um território muito mais vasto do que o da própria metrópole. Ao mesmo tempo, promoveu “bandeiras” e “entradas”, em busca de ouro, prata, diamantes e outros minérios preciosos. E conseguiu evitar que se tornassem perenes as tentativas de ocupação do território por outras potências europeias. Além disso, foi suficientemente capaz de manter o monopólio da Coroa sobre toda a produção brasileira de açúcar.

 

Nos séculos 17 e 18, durante o predomínio espanhol sobre a monarquia lusa, os representantes portugueses no Grão Pará e no Brasil aproveitaram a situação para expandir-se territorialmente para oeste. E, após a descoberta das “minas gerais”, a monarquia portuguesa foi suficientemente capaz não só de organizar o “controle fiscal”, mas também de impedir o despovoamento do território português, em virtude da “febre do ouro” que estimulou uma migração massiva para o Brasil.

 

No século 18, a monarquia portuguesa também foi firme na extinção das “reduções indígenas”, estendendo o escravismo às regiões em que aquelas reduções estavam implantadas. Unificou a província do Grão-Pará à província do Brasil e impôs a ferro e fogo o idioma português a todo o território, proibindo o nhengatu e outros dialetos aparentados. Ao mesmo tempo, proibiu qualquer tentativa de produção manufatureira no território colonial.

 

Portanto, supor que a colonização foi “deixada nas mãos de particulares” não passa de força de expressão. Na verdade, a colonização portuguesa instituiu no Brasil uma sociedade escravista que, além de realizar a matança indiscriminada de centenas de milhares de indígenas (ou alguns milhões, como supõem alguns estudiosos), constituiu em seu topo, como classe dominante, os senhores de canaviais, engenhos e escravos, e os “fazendeiros de gado”. Como classes intermediárias, constituiu os comerciantes, com uma forte fração de traficantes de escravos, os mineradores, os empregados livres a soldo, os posseiros livres que se disseminaram durante o auge da mineração, e os “agregados” das fazendas de gado. E, como classe subalterna e oprimida, os escravos.

 

A representação do Estado monárquico português na colônia, além de expandir para oeste o território que lhe cabia pelo tratado com a Espanha, foi capaz de uma série considerável de ações de vigor “patrimonialista”. Impediu que as rebeliões e as fugas de escravos se disseminassem. Sufocou as rebeliões de setores intermediários da população. Manteve firme o monopólio sobre a produção mercantil colonial. Expandiu o uso da língua portuguesa pelos escravos e indígenas “amansados”. E, mais importante do que tudo, garantiu que a produção do ouro e dos diamantes da colônia fosse transferida em segurança para a metrópole, e jogasse um papel proeminente da acumulação primitiva do capital na Europa Ocidental.

 

Assim, quando a monarquia portuguesa se viu obrigada a fugir das tropas de Napoleão, com o auxílio da armada inglesa, a colônia brasileira era não só aquela que lhe oferecia maior segurança em relação ao alcance das tropas napoleônicas, mas também a que permitia à monarquia portuguesa manter-se como tal. O que não foi pouco, convenhamos.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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