Correio da Cidadania

Israel cada vez menos democrata

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Sempre que podem, os representantes de Israel lembram que se trata da única democracia do Oriente Médio. Informação incorreta, pois o regime do Líbano também é democrata, apesar dos defeitos.

 

Ah, mas Israel, dizem não só israelenses, como também figuras dos EUA e da Europa, Israel é uma democracia perfeita. Talvez nem tão perfeita assim. Há quem considere que seu regime tem no DNA a mancha do apartheid.

 

Citemos alguém insuspeito. Yossi Sarid, ex-ministro da Educação (2008), que disse: “o que age como apartheid, é governado com apartheid e tiraniza como apartheid, não é um pato - é apartheid. O que nos deveria assustar não é a definição da realidade, mas a própria realidade”.

 

Para Sarid, Israel só é democrático em relação a seus cidadãos judaicos. Os árabes israelenses seriam discriminados.

 

O judeu-americano Richard Falk, ex-relator da ONU para a Palestina, concorda com ele. E denuncia que Israel cria condições insuportáveis para forçar os palestinos a deixarem Jerusalém Oriental e a Cisjordânia, tais como “revogação de permissões de residência, demolição de estruturas residenciais construídas sem permissão do governo (quase impossível de conseguir) e despejo forçado de famílias palestinas”.

 

E as coisas ficaram mesmo piores depois que Netanyahu assumiu seu atual governo. Com ele, a imagem de perfeição da democracia israelense começou a virar sorvete. Diante da entrada no país de grande número de etíopes, Netanyahu afirmou: “a onda de imigração ameaça o caráter judaico e democrático do Estado de Israel”.

 

Por isso, fez aprovar lei que pune com três anos de prisão os imigrantes ilegais e com penas que vão até 15 anos para quem os ajudar.

 

Em outra disposição discriminatória, nos casamentos mistos judeu-palestino, é negada entrada em Israel ao cônjuge de origem palestina. Essas leis despertaram indignação entre os setores liberais e esquerdistas.

 

Zahava Gal-On, líder do partido Meretz, considerou “draconianas as restrições nos direitos dos cidadãos árabe-israelenses”. Talvez pelas reações negativas internas e também da comunidade internacional, Netanyahu interrompeu seu furor discriminatório.

 

Até quando vieram os ataques à faca, pedradas e atropelamento contra judeus por árabe-israelenses desesperados. Houve indignação geral. O primeiro-ministro aproveitou a oportunidade para se mostrar um campeão na defesa da população judaica.

 

Seu governo promoveu uma lei que autoriza a prisão de meninos a partir de 12 anos e meninas a partir de 14 anos por assassinato, tentativa de assassinato ou assassinato culposo.

 

Como a maioria dos atentados de crianças é feita através do lançamento de pedras, esse ato poderá ser enquadrado como tentativa de assassinato. Mesmo que cause ferimentos leves ou até que não atinja ninguém.

 

A opinião pública enfurecida com os atentados aplaudiu essa punição rigorosa. Dá para compreender: já que qualquer cidadão israelense pode ser atingido, todos se sentem em grave perigo.

 

Assim, Netanyahu reforçou sua imagem de defensor do seu povo. Por outro lado, vemos que a nova lei está combatendo o ódio palestino pelos sintomas – ou seja, os atentados; não pelas causas – a ocupação e a discriminação.

 

Eliminando os sintomas não se curam doenças. Não vai adiantar reprimir a presente sucessão de ataques de atentados pelos palestinos. Enquanto não se eliminar suas causas – retirando as tropas de ocupação e igualando os direitos de cidadãos judaicos e árabes em Israel – os atentados voltarão, pondo em risco a segurança de Israel e dos seus cidadãos.

 

Além disso, a nova legislação, além de possibilitar a qualificação como crime grave o lançamento de pedras (raramente mortais), ela pune crianças com o rigor com que se pune adultos infratores.

 

O que fere os princípios da Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Esta é a posição do tradicional movimento israelense pró-direitos humanos, o B’Tselem: “em vez de mandá-las (as crianças) para a prisão, Israel faria melhor em mandá-las para escolas onde pudessem crescer em dignidade e liberdade, e não sob a ocupação. Esta lei nega aos menores a chance de um futuro melhor”.

 

Netanyahu deve ter entendido a proposta como uma brincadeira. Ele não está pensando em tirar seu exército da Cisjordânia, nem em direitos humanos.

 

Foi justamente para combater quem os defende que criou outra lei antidemocrática. Por ela, as organizações de direitos humanos que recebem a maioria de seus recursos de entidades de Estados estrangeiros devem informar ao governo a origem e valor desses recursos.

 

E isto através de todos os meios de comunicação: TV, jornais, cartazes e online. Para que? Afinal, a grande maioria das 27 ONGs visadas publica estas informações nos seus sites.

 

Responde John Kirby, porta-voz do departamento de Estado norte-americano. Ele diz que os EUA estão preocupados, pois a lei poderá exercer um “efeito assustador” nas atividades das ONGs.

 

Elas têm denunciado as frequentes violações dos direitos humanos por Telavive. Obrigando-as a divulgarem as contribuições que vem exterior, os dirigentes de Israel esperam que o povo as encare com desconfiança. Devidamente estimulado, poderá considerar as ONGs verdadeiros agentes estrangeiros, que querem sujar o bom nome do país.

 

Pegando carona na chamada “NGO Law”, a Im Titzu, organização radical ligada ao governo, acusou importantes ONGs de direitos humanos  israelenses de serem traidores, financiados por países europeus para criar conflitos em Israel e sujar sua imagem internacional.

 

Talvez até indiretamente responsáveis pela onda de atentados à faca. Não foi sem razão que Isaac Herzog, líder da oposição, denunciou a lei “por indicar, mais do que qualquer coisa, o fascismo nascente que se insinua na sociedade de Israel”.

 

Reforçando a posição de Herzog, a ministra da Cultura, Miri Regev, vem procurando reprimir a oposição política nas artes.

 

Como assinala o The Guardian, de 1-3-2016: “ela tem sido criticada pelos seus ataques à liberdade dos artistas, sendo que o último foi sua proposta de se dar financiamento público somente a artistas leais a Israel”.

 

“O que está acontecendo agora em Israel é fascismo”, comenta David Tartakover, famoso artista gráfico (The Guardian, 1-3-16).

 

A mais recente lei da torrente agressiva do governo determina a suspensão ou expulsão dos parlamentares acusados de incitação racista ou de apoiar movimentos armados contra Israel.

 

Para a oposição, foi feita para atingir os legisladores árabes e princípios democráticos como a liberdade de expressão.

 

Como quem decide é a maioria parlamentar de direita, um deputado árabe israelense que critique a desigualdade de direitos entre seu povo e os judeus poderá ser cassado por “incitação racista”.

 

Contra essa ameaça potencial, ergueu-se a voz do próprio presidente de Israel, Reuven Rivlin, que condenou a nova lei.

 

Ele contesta o poder conferido a parlamentares de condenarem seus próprios colegas. Por sinal, o parlamento é dominado por direitistas, adeptos do governo Netanyahu.

 

Mas a maré de leis antidemocráticas propostas pelo regime não deve refluir tão cedo. Já estão sendo discutidas nas comissões do parlamento legislações que prescrevem pena de morte exclusivamente para palestinos, suprimem a livre expressão e expulsam de Israel as famílias de terroristas.

 

Leis assim irão gerar um isolamento cada vez maior de Israel. Isso não perturba muito Netanyahu.

 

Ele se preocupa mais com a opinião do seu povo. Melhor dizendo, do eleitorado israelense. Que vê atualmente os palestinos como perigosos inimigos. E aprova as leis repressivas de uma ameaça que se eterniza e seu autor, o primeiro-ministro, como um vigoroso protetor do país.

 

Com a nota alta que tem recebido da maioria dos judeus israelenses, iludidos por ele, Bibi espera contar com apoio total nas lutas contra os movimentos palestinos de libertação.

 

Mais do que isso: com seus votos nas próximas eleições. Quanto a pressões da comunidade internacional para que respeite as decisões da ONU em favor dos palestinos, Netanyahu continuará esbravejando.

 

Mas na verdade não estará tão preocupado assim. Ele sabe que, por mais condenações que receber da Europa e protestos dos EUA (deverão cessar no próximo governo), jamais será forçado a adiar a independência da Cisjordânia, como já declarou em comício. Nem a retirar as tropas de ocupação, cessar as violências contra defensores dos direitos humanos e deixar de discriminar os árabes israelenses.

 

Nem brecará a expansão dos assentamentos, antes que ele achar conveniente. Mesmo que a maioria do Conselho de Segurança da ONU vote sanções contra Israel por qualquer dessas violações de direitos internacionais, o novo governo dos EUA, seja Trump ou Hillary Clinton, vetará, na certa.

 

E se Obama ousar no fim do seu mandato propor alguma iniciativa que desagrade Telavive, certamente a oposição dos seus aliados nos EUA obrigará o presidente a desistir.

 

E assim a democracia israelense, que um dia foi quase perfeita e posteriormente tornou-se imperfeita, poderá acabar não sendo democracia.

 

Surpresa! Os EUA ameaçam Israel

 

Acredite se quiser: os EUA estão ameaçando Israel. E, outra surpresa, defendendo direitos humanos de palestinos.

 

Diplomatas norte-americanos do Consulado em Jerusalém Oriental avisaram a Administração Civil da Cisjordânia ocupada que se insistir em destruir o vilarejo de Susya estaria “ultrapassando a linha vermelha”. O que provocaria uma grande reação internacional.

 

Em 1986, o exército de Israel declarou que em Susya seria construído um parque. E, sem mais conversas, expulsou todos os palestinos moradores do vilarejo, demolindo suas casas.

 

De lá para cá, os israelenses não fizeram nada e os habitantes voltaram e reconstruíram as casas que tinham sido demolidas.

 

Novamente, os militares israelenses os puseram para fora, pondo abaixo as construções recém-erguidas.  Nos anos seguintes, os palestinos voltaram a reconstruir e os militares a demolir mais quatro vezes.

 

A última reconstrução foi em 2001, quando uma corte de justiça, alegando que os moradores não tinham permissão para construírem, ordenou a demolição dos seus lares.

 

Eles trataram de pedir essa permissão rapidamente, o que foi negado, como acontece quase sempre em casos semelhantes.

 

Embora posteriormente o Supremo Tribunal tenha autorizado os habitantes de Susya a permanecerem em suas casas, eles não se sentem seguros, pois a Administração Civil continua negando a permissão. Os moradores sabem que não seria a primeira vez que os militares israelenses ignorariam decisões da justiça na Palestina ocupada.

 

Em defesa dos habitantes de Susya, os EUA, desta vez, foram além das habituais demonstrações de “preocupação”: ameaçaram Israel de “severas reações norte-americanas”.

 

A União Europeia e o Reino Unido fizeram o mesmo. Parece que Israel sentiu que a parada poderia ser dura. E admitiu fazer concessões.

 

A Administração da Palestina ocupada aceitou negociar com o povo de Susya os termos pelos quais a permissão seria concedida.

 

No começo deste ano, a questão parecia começar a ser bem encaminhada. Foi quando, em maio, o ultra linha-dura Avigdor Lieberman tomou posse como ministro da Defesa.

 

Pouco tempo depois, ele ordenou o fim das negociações, sem maiores explicações. Enquanto o governo de Israel medita se vale a pena comprar briga com os EUA e a União Europeia, os habitantes de Susya esperam apreensivos.

 

O destino de uma pequena comunidade perdida na Cisjordânia pode ter um significado bem maior do que o desfecho desse drama.

 

Se o governo de Telavive ceder, será a primeira vez que pressões públicas ocidentais o fazem voltar atrás.

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: http://www.olharomundo.com.br/

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