Correio da Cidadania

Aonde estão os imortais?

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“Não se deve jogar futebol para ganhar, mas para que lembrem de você”, disse certa vez Sócrates, em uma das inúmeras respostas dadas a quem lhe perguntava sobre os valores da democracia corintiana e a compreensão de sua própria carreira de jogador.

 

Pois bem. Em um mês onde tragamos futebol por todos os poros com a dobradinha Copa América e Euro, fica a sensação de que os grandes jogos e exibições rareiam cada vez mais.

 

O texto reflete um pouco as discussões com família, amigos, jornalistas e papagaios que acompanharam o combo de jogos que ainda nem teve fim. Após o bicampeonato chileno em New Jersey e o drama em torno da frustração de Messi, a discussão sobre o desempenho dos chamados supercraques do futebol atual ganhou corpo.

 

Introdução

 

Hoje, a Europa concentra os principais jogadores num punhado cada vez menor de clubes, o que tem tornado a própria Champions League um torneio de desfecho cada vez mais repetitivo. Aparentemente, consequência natural do mesmo processo verificado nas ligas nacionais na transição para este século.

 

Os clubes mais ricos são praticamente transnacionais, com alto grau de capitalização e poder de compra incomparável para os trópicos. Com muita mídia e publicidade, convenceram o mundo de que futebol de qualidade só se joga por lá e o resto é resto.

 

Nos primórdios da globalização do jogo, elogiava-se o fato de que na Europa ainda se mantinha o hábito de o jogador passar a maior e melhor parte da carreira no mesmo clube.

 

Isso não existe mais. Um Suárez faz uma temporada brilhante no Liverpool e logo vem o Barcelona pescá-lo para seu superelenco. Os clubes holandeses sumiram do mapa dos títulos. Um dos motivos pelos quais o Arsenal tanto fracassou em grandes desafios se deve ao fato de ter vários jogadores pinçados por milionários de ocasião. E não faltariam outros exemplos.

 

Desse modo, os grandes atletas ficam rodeados de outros grandes atletas que, ainda que menos brilhantes, conformam um esquadrão que passa 80% dos jogos da temporada amassando adversários sem alternativa, a não ser se defender alucinadamente pra tentar pintar uma zebra na tabela.

 

“Num elenco com 20 caras ganhando 1 milhão por mês ninguém precisa mesmo chamar a responsa, ninguém precisa ser ‘O cara’. Cada um faz sua parte e vê o que dá no fim, sendo mais provável ganhar naturalmente”, me resumiu certa vez o colega de Central3 Paulo Junior.

 

Outro ponto necessário de lembrar é que a Liga nem é tão dos Campeões. Messi e Cristiano Ronaldo nunca passaram um ano sem jogá-la, ao passo que até o início dos 90 só o campeão nacional se classificava. E as restrições aos estrangeiros limitavam as compras de qualquer clube, por mais rico que fosse.

 

Nos célebres campeonatos italianos vencidos pelo Napoli, os craques da época se espalhavam. Juve, Torino, Inter, Milan, Samp se emparelhavam muito mais, na bola e nas compras. Querem coisa mais impensável do que Zico migrar pra Udinese? Nos demais centros, a mesma tendência. Assim, é até feio alguém argumentar que Messi ou qualquer outro ganharam mais ligas que Maradona.

 

O papel das seleções

 

Nas seleções, a coisa muda de figura. Cada um vai pra seu país, as forças se diluem e o equilíbrio é um pouco maior do que na maior parte dos jogos dos principais clubes.

 

Aí entra outra pegadinha: os mesmos donos da bola criaram o mito de que hoje em dia não é mais na seleção o lugar onde se prova quem é craque com passaporte para a eternidade. Se fizer na Champions League, já vale (na Libertadores, não, só pra não deixar faltar o carimbo colonial).

 

O detalhe é que hoje em dia as seleções jogam muito mais do que antes. Se após o Maracanazo o Brasil levou mais de dois anos pra voltar a campo, depois do 7 a 1 não se esperou mais de 45 dias para o compromisso seguinte. Foram seis partidas somente no segundo semestre de 2014. A estreia na Euro contra a Ucrânia foi a vigésima partida dos alemães após o tetra no Maracanã.

 

Outro ponto “fantástico”: ao mesmo tempo em que se tira o peso da história escrita com as seleções, vendem-se recordes nas mesmas: Neymar se enche de gols em amistosinhos chinfrins e está quase “superando” Zico, Romário, Ronaldo... Cristiano toma o recorde de Eusébio por Portugal, Guerrero suplanta Teófilo Cubillas, Klose passa Gerd Müller...

 

Quer dizer, na hora da boa e rentável notícia, seleção vale, e muito.

 

Aqui, defendo que os grandes torneios, em especial a Copa do Mundo, continuam sendo a melhor “bienal do futebol”, em termos de atualizar a todo o público terráqueo em que pé está o jogo bretão, suas últimas novidades e tendências, quedas e ascensões.

 

Desce-se do pedestal da meia dúzia de bilionários que mandam no centro do futebol e espalham-se os melhores por diversas equipes nacionais, menos rodeados de coadjuvantes de alto garbo. Seria lugar ideal para realizarem atuações individuais que comprovem sua superioridade frente aos comuns.

 

No entanto, não é o que vemos ocorrer, nem na França e nem nos Estados Unidos. Cristiano aceita passar um jogo enfiado entre torres islandesas, deslocando-se pra fora da área apenas nos últimos dez minutos; Lewandowski não fez nenhum gol em quatro partidas pela Polônia; Neymar não fez nada especial em duas Copas América etc. etc.

 

E, por mais que queiram nos encher a barriga com Barcelona, Real Madrid e Bayern, continuamos saudosos das glórias da camisa amarela; o argentino quer um título da albiceleste; o polonês prefere que Lewa faça milagres pela sua seleção; o portuga quer o mesmo de seu CR7.

 

A tese é: para a imortalidade do futebol, ainda são necessárias façanhas em nome de sua gente, de sua aldeia. Mas, como mencionado pelo Pedro Buccini em texto anterior, tudo parece um grande Rotary Club a proteger seus sócios.

 

Enquanto nada estupendo é jogado nas competições em tela, temos uma mídia que viaja para o exterior e desfruta da proximidade com os astros – com a Broadway, como diria Fernando Toro e seu Futebol Urgente – e caça variadas desculpas pra justificar a falta de brilho na hora agá. “Evolução tática” é a nova muleta pra explicar a infinidade de joguinhos que mais lembram um handeball sobre a grama na atual edição da Euro.

 

Conclusão

 

Talvez, eles não sejam tão geniais assim. Não deveria doer admitir. Mas logo me vem à mente uma propaganda da Copa de 2014, com as atrações da vez ao lado dos maiores de todos os tempos de seus países, e entendo a incapacidade de crítica.

 

Estamos diante de uma mídia que há muito derrubou o muro que separava o departamento jornalístico do comercial. A mudez da corneta nada mais é do que a proteção do próprio produto que se vende e precisa dar retorno.

 

É simples: que me perdoe Messi, até porque torci muito para aquela bola aos 2 minutos do segundo tempo contra a Alemanha deslizar pelo cantinho da rede, mas não basta um calhamaço de números e recordes para explicar a imortalidade. Para o torcedor, futebol é uma experiência sentimental, sensitiva, emocional, afetiva, comunitária, uma abstração da aridez da vida real. O mundinho dos especialistas e suas toneladas de fatos e dados não nos acrescenta nada de... concreto.

 

É preciso fazer partidas transcendentais em ocasiões igualmente transcendentais para ganhar um cantinho no grande panteão que cada coração carrega em si.

 

 

Leitura recomendada:

 

O espelho de uma geração

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania e colaborador da webrádio Central3.

 

 

 

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