Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo

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Por uma dessas coincidências que a razão desconheça, o sociólogo Jessé Souza decidiu lançar seu livro A Tolice da Inteligência Brasileira quase no momento em que a maioria do Congresso Nacional deu uma demonstração inequívoca do nível cultural predominante na elite política brasileira. Elite que tem, ou deveria ter, como pressuposto aquilo que o próprio Jessé classifica, junto com Pierre Bourdier, de “capital social” e “capital cultural”, e supõem serem as condições básicas para o exercício dos poderes econômico, social e político.

 

Apresentado, na contracapa, como “uma abordagem teórica e histórica inédita”, oferecendo “um caminho para devolver ao povo brasileiro a possibilidade de entender as reais contradições de nossa sociedade”, o livro, apesar disso, em seus capítulos finais, brinda os leitores com afirmações que, embora não tendo nada de “inéditas”, confirmam avaliações preciosas, e nada “tolas”, de parte considerável da “inteligência brasileira”.

 

Ele afirma, peremptoriamente, que estamos diante de uma “guinada conservadora” (p.245), numa das “sociedades complexas mais perversas e conservadoras da história moderna” (p.246). Repete que o “mote da ‘corrupção e ineficiência estatal’, contraposta à suposta virtude e eficiência do mercado... É a única bandeira de legitimação do modelo excludente de sociedade ainda no poder real e construído pela ‘intelectualidade orgânica’ do apartheid conservador” (p.246).

 

Confirma que o “mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de ‘corrupção organizada’ (p.247. E que “o 1% dos endinheirados” é “a única parcela que efetivamente tem algo a ganhar quando se encurta o Estado e se mercantiliza toda a sociedade”. O “caráter antidemocrático que vemos nas manifestações dos ‘coxinhas politizados’ não (teria) nada de novo”, pois a “vontade geral indivisa, ilusão autoritária” teria sido “a meta de toda revolta política com base de classe média” (p.256).

 

Em resumo, “esse caldo” tem que “ser mobilizado pela imprensa conservadora... sempre que a política tende a sair do acordo de gabinete dos poderosos e endinheirados para o interesse da maioria da população” (p.256). Só que, agora, “os órgãos de controle... constituem o projeto de substituição das forças armadas como nova instância de ‘poder moderador’ da pseudodemocracia” (p.260), embora quem “continua mandando de verdade em toda a encenação do teatro de marionetes (sejam) os mesmos 1% que controlam a riqueza e o poder, e instrumentalizam a informação a seu bel prazer”.

 

Em outras palavras, Jessé Souza, do ponto de vista político atual, se encontra nas fileiras daqueles que combatem a guinada conservadora e reacionária. Guinada que se materializa na tentativa de confirmar “legalmente” a derrubada golpista da presidente Dilma. Que tenta impor uma reforma na economia que a privatize, a desnacionalize e a primarize ainda mais. Que objetiva penalizar os trabalhadores para garantir os altos lucros do 1% burguês. Que procura substituir a política externa soberana e integradora pela política de subserviência às potências capitalistas, em especial aos Estados Unidos. E que se empenha em liquidar as conquistas democráticas e os direitos sociais da Constituição de 1988.

 

Porém, apesar daquelas afirmações, hoje relativamente consensuais em grande parte da “inteligência brasileira” comprometida com o país e seu povo (embora “inteligência” ainda não “orgânica” no sentido que lhe deu Gramsci), A Tolice da Inteligência Brasileira contém uma série de afirmações e conceitos que, vistos numa perspectiva de longo prazo e do futuro da luta de classes sociais no Brasil, merecem uma crítica mais demorada.

 

De imediato, ao afirmar que a “guinada conservadora” está relacionada à luta “entre dois projetos históricos no Brasil, oportunidade que se abriu com a industrialização comandada por Vargas a partir de 1930”. Ou seja: “ou bem o Brasil se transforma em uma sociedade de consumo de massas e inclui a maior parte de sua população, ou o país mantém intactas todas as estruturas de privilégio e se constitui em uma sociedade de consumo para 20% da população” (p.246).

 

Para quem, como veremos em outros comentários, se insurge contra o “economicismo”, a opção entre capitalismo abastado e capitalismo atrasado é não apenas economicista, mas também extremamente ilusória. É lógico que Jessé procura explicitar melhor o caráter do embate ao nível, digamos, tático, ao afirmar que se trata de “um embate entre um projeto de apartheid excludente e outro um pouco mais inclusivo, que reflete a história política do Brasil moderno, por existirem limites claros para um Estado reformador em meio a uma sociedade conservadora” (p. 247).

 

Em outras palavras, ele reduz o “projeto histórico” inclusivo do Brasil à continuidade da industrialização iniciada por Vargas e ao “processo ‘reformador’ limitado dos governos Lula e Dilma”. Deixa de lado o fato de que a “história política do Brasil moderno” tem contemplado tanto projetos que podemos chamar de estratégicos, como o democrático-popular e o socialista, quanto projetos táticos que abrangem  outras dimensões do papel do Estado e do capital, que poderiam romper os limites do conservadorismo e ampliar a inclusão social e os direitos democráticos.

 

Essa dificuldade em entender as diferenças entre projetos históricos estratégicos e projetos históricos táticos talvez esteja relacionada ao entendimento confuso de Jessé a respeito do “poder político”. Ele afirma, por exemplo, que a “fragilidade das conquistas realizadas pelo segundo modelo (inclusivo) é explicada pela manutenção do modelo anterior (de apartheid), as quais se mantiveram intocadas mesmo depois da eventual perda do poder político” (p.247).

 

Convém perguntar: quem perdeu o poder político, e para quem? Supor que o PT, com Lula e Dilma, “conquistou o poder político” é de uma ingenuidade atroz. Ingenuidade que se explicita mais claramente quando Jessé afirma que “o Estado ousou aumentar o número de incluídos no mundo de consumo”.

 

O Estado brasileiro é um aparato de poder político complexo que, além do governo, ou do poder executivo, engloba as duas casas do parlamento, os múltiplos órgãos do poder judiciário, as forças armadas (incluindo as polícias militares e civis), a burocracia civil et caterva, nas quais estão incluídos, como alerta o próprio Jessé, até mesmo “Juízes Justiceiros”. E, além de incluir o Estado, o poder político engloba uma série considerável de outros instrumentos de poder, entre os quais basta citar a hegemonia da propriedade midiática.

 

Assim, confundir aquele governo, ainda mais governo de coalizão, com Estado e poder político, em termos de análise de qualquer realidade histórica, tem consequências nos seus resultados e, também, na ação social e política. O que procuraremos examinar em outros textos a respeito de A tolice da Inteligência Brasileira, se quisermos pensar a longo prazo.

 

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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