Correio da Cidadania

Temer não gosta da presidenta

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“Por orientação da gerência executiva, informamos que a TV Brasil passa a adotar a forma presidente, independentemente do gênero. Deixamos, portanto, de usar presidenta”, foi o comunicado da nova direção da Empresa Brasileira de Comunicação, após receber ordem do apelidado presidente interino Michel Temer. Esse é apenas o último de tantos outros atos misóginos de governo recém-parido das trevas da conspiração.

 

Tudo começou com a decisão do senhor Michel Temer de formar uma equipe ministerial sem mulheres, apesar de o presidente beletrista ser, segundo parece, apreciador de mulheres, muito jovens e, sobretudo, “belas, recatadas e do lar”. A intervenção linguística discricionária surpreendeu até mesmo a mídia, em especial, a Globo, que se contorceu e se contorce para propagandear e promover o golpe institucional e instalar no Planalto este cada vez mais triste personagem, não raro designado carinhosamente, por ela, a mídia, como “Michel”.

 

Na tentativa de remediar a um fato singularmente constrangedor – um ministério tão universalmente barbudo não era visto desde o fim da ditadura militar, em 1985 –, o interino do Planalto deu início a uma verdadeira caça a uma representante do “deuxième sexe” – se possível famosa na esfera global – para assumir a Secretaria de Políticas para Mulheres, situação a que foi rebaixado o antigo MMIRDH, Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos.

Bastava ser reacionária

 

Para o cargo, não necessitava ser “bela, recatada e do lar”. Bastava ser suficientemente reacionária e aceitar a designação de governo espúrio. Após múltiplas e constrangedoras recusas – que engrandecem a mulher brasileira –, Michel baixou o nível de exigências e nomeou para o cargo Fátima Pelaes, uma ex-deputada do Amapá, do PMDB, seu partido. Essa personagem semi-desconhecida, segundo o que dizem, após “conhecer Jesus”, passou a ser contra a descriminalização do aborto, até mesmo nos casos extremos de estupro, de abuso, de perigo à mãe.

 

A posição retrógrada e antifeminina sobre esse tema candente da agora nova Secretária é indefensável, sobretudo em um país onde mais de 20 mil mulheres morrem e cerca de três milhões são internadas, por ano, em razão de complicações decorrentes de abortos clandestinos. Ela não deixa, porém, de ser coerente com o conjunto da obra ministerial do Temer. E certamente constitui um afago ao fundamentalismo evangélico e católico, tão prestigiado nos últimos anos.

 

A última medida misógina do governo interino de proibir que as empresas de comunicação ligadas ao governo continuem usando a forma feminizada do título de “presidente”, mesmo quando ele pertence a uma mulher, tem implicações bem maiores do que parece. A troca de uma letrinha faz, sim, muita diferença. A troca de uma letra de um sobrenome, por exemplo, pode trazer bastante dor de cabeça.

 

Temer pedreiro

 

Suponhamos que Michel Temer não tivesse enriquecido através da política. Suponhamos que ele fosse um pedreiro brasileiro e que tivesse perdido o trabalho por causa da política econômica antissocial e neoliberal do governo de seu país, seja ele golpista ou não-golpista. E, sem trabalho, fosse obrigado a deixar o Brasil e voltar ao vilarejo libanês de seus antepassados, Btaaboura, para ganhar a vida colhendo azeitonas. Uma atividade para a qual certamente se encontraria plenamente qualificado, acreditamos.

 

Contudo, para poder regularizar sua situação, o ex-pedreiro Michel teria que comprovar que seus antepassados pertenciam àquele país e município. E que o sobrenome Temer é o mesmo que o dos Tamer que ali permaneceram. Teria que comprovar que a segunda letrinha do sobrenome foi trocada inadvertidamente pelo escrivão que registrou a entrada no Brasil de seus antepassados. Ou por qualquer outro motivo. Essa simples troca de letrinha poderia proporcionar muitas dificuldades ao pedreiro Michel.

 

Na vida real das línguas vivas, fora do mundo específico dos nomes (antropônimos), patrônimos (sobrenome) e topônomos (nome de lugar), as letras correspondem aos fonemas, isto é, às pronúncias da língua falada. E, nas suas diversas pronúncias, palavras, frases etc., a língua falada abarca o conjunto dos seus falantes. Abarca o modo como eles se relacionam; as contradições entre ricos e pobres, letrados e semiletrados, jovens e velhos, camponeses e citadinos, brancos e negros etc. Expressa os modos diferentes como eles veem o mundo.

 

As costelas de Eva e de Adão

 

As línguas são incessantemente alimentadas pelas trocas verbais entre locutores que pertencem a instâncias sociais diversas e que falam de modo sensivelmente diferente. No fluxo constante dessas trocas verbais, os embates entre as variantes linguísticas acabam produzindo novas formas, novas pronúncias, novas regras de formação das palavras, das frases etc.

 

Em função das relações de poder existentes entre as classes sociais, nos diversos momentos históricos, tais mudanças podem ser aceitas ou rejeitadas. Podem impor-se como formas padrão ou ser silenciadas, permanecendo por ainda mais tempo como variantes estigmatizadas, ou seja, desprezadas. A luta entre as classes se dá, também, no mundo das práticas linguageiras.

 

A contradição de gênero/sexo foi a primeira a surgir na história da humanidade, com a opressão da mulher pelo homem. A dominação patriarcal se manteve durante milênios e segue ainda hoje. Ela deixou nas línguas vestígios tão encravados que a maioria dos falantes não tem consciência de sua presença patológica. E, por não a terem, não questionam essas sobrevivências despóticas, mesmo quando dificultam a comunicação, criando ambiguidades e, sobretudo, ajudando a reproduzir a desigualdade.

 

A língua não pode mudar

 

Um dos vestígios linguageiro da dominação milenar das mulheres pelos homens é a tradição de se considerar o gênero masculino como gênero gramatical não marcado, isto é, neutro. Ou seja, gênero que se refere tanto a homens quanto a mulheres. Ao contrário, em muitas línguas – é o caso do português – o gênero feminino, marcado, refere-se única e exclusivamente às mulheres.

 

Não é difícil perceber que essa praxe ancestral nasceu no contexto de sociedades patriarcais que restringiam a atuação social das mulheres a âmbitos subalternizados e essencialmente domésticos. Nesses tempos, a mulher era, literalmente, escrava de seu senhor, mesmo quando ele era seu marido. Em verdade, comumente, ele tinha poder de vida e de morte sobre sua ou suas mulheres, tidas como seres minorados, imperfeitos, no melhor dos casos.

 

Essa modalidade linguística foi apresentada pela filologia (estudo da língua em textos escritos) e, a seguir, pela linguística estruturalista, como uma característica sistêmica, intrínseca à língua. Isto é, como uma característica quase surgida de uma natureza inexistente das coisas. Contra essa realidade linguística, não haveria o que fazer. Mesmo quando se propunha rejeitar os princípios e concepções patriarcais nas relações sociais. E qualquer infração a essa “norma” gramatical foi e é criticada imediatamente e considerada, no mínimo, como erro no uso da língua.

 

Um homem vale mil mulheres

 

Dizer “boa tarde a todas”, em uma sala com muitas mulheres e um só homem é considerado ofensivo pelo homem. E provavelmente soaria estranho aos ouvidos da maioria das mulheres. Elas também interiorizaram a linguagem de origem patriarcal e sua defesa gramatical. Porém, todos, inclusive as mulheres não acham anormal dizer “boa tarde a todos”, em uma sala com um só homem e mil mulheres. Permitir que essas marcas linguísticas permaneçam inquestionadas significa não questionar a opressão social que as originou. Ou seja, a dominação da mulher pelo homem. Mesmo quando não se tem consciência do sentido desse ato.

 

Quando da eleição de Dilma Rousseff à presidência da República, primeira chefe presidente mulher da história do Brasil, ela sugeriu que a chamassem presidenta, no feminino. Não se tratava, no fato, de uma novidade. Era conforme, é bom lembrar, a uma lei progressista, de 1956, que determina o uso obrigatório do feminino nos nomes de cargos públicos ocupados por mulheres: senador/senadora; deputado/deputada; vereador/vereadora, etc.

 

Como se tratava da iniciativa de uma mulher e de um governo que se propunha de esquerda, a proposta corriqueira chegou logo às manchetes dos jornais, provocando acaloradas discussões e muitas chacotas, em geral, de claro viés machista e misógino.

 

Chefa pode?

 

Os argumentos contrários à feminização de palavra referente ao mais alto cargo da nação apoiavam-se fundamentalmente em aspectos estéticos. Propôs-se que a palavra flexionada no feminino, presidenta, era feia. Desenvolveram-se também esquisitas e casuísticas reflexões gramaticais, que se resumiam à afirmação de que a gramática da língua portuguesa não permitiria esse tipo de flexão nas palavras terminadas em “ente”.

 

Segundo essas gramatiquices, se aceitássemos “presidenta”, teríamos que aceitar que todas as palavras terminadas em “ente” flexionassem em “a”, no feminino, e em “o” no masculino. Teríamos, então, que dizer que “a mulher está contenta” e o homem “contento” etc.

 

Inicialmente, é bom lembrar que, se falássemos apenas o que determinam os gramatiqueiros de plantão, que se consideram senhores da língua e representantes dos senhores do poder, falaríamos ainda latim. Como já foi dito, as línguas decorrem do uso que os falantes fazem delas, queiram os gramáticos ou não. E, sobretudo, trata-se apenas do cargo público ocupado por mulher, o maior cargo público, o de Chefe de Estado, à qual a própria população se referiria como “chefa”, feminização de chef, também não previsto pela gramática, mas usado corriqueiramente para designar mulher em cargo de chefia.

Mulheres no batente

 

A feminização de nomes de profissão, cargos, funções específicas etc., sobretudo de setores socioeconômicos e políticos, sempre tendeu a ser problemática, porque esses setores foram dominantemente masculinos, patriarcais. Enfermeira, cozinheira, faxineira, doméstica, professora, empregada, cabeleireira etc. foram tradicionalmente profissões femininas, menos valorizadas, ao menos no mundo chamado ocidental.

 

Entretanto, quando os homens iniciaram a ocupar esses ofícios, não houve problema algum com a masculinização dos termos correspondentes. Em alguns casos, a palavra/profissão flexionada em “o”, no masculino, valorizou-se até mesmo em relação à forma original: cozinheiro e cabeleireiro tendem a denotar profissões mais prestigiadas que as matrizes originais, cozinheira e cabeleireira.

 

Em sentido oposto, na língua portuguesa, contrariamente a outras línguas, como o francês, não houve particulares dificuldades na feminização de profissões e funções de destaque, à medida que as mulheres conquistaram o direito de desempenharem mais funções e profissões qualificadas, antes privilégio dos homens: as duplas médico/médica, cirurgião/cirurgiã, advogado/advogada, engenheiro/engenheira, contador/contadora, capitão/capitã etc. não são questionadas.

 

Coisa de rainha da Inglaterra

 

A flexão de “presidente” em “presidenta” fazia parte, portanto, da mesma lógica e tradição. Mas não: permiti-la seria, sobretudo para a grande mídia, dar um passo avante, reconhecendo a singularidade da primeira presidenta do Brasil, que certamente fora e era muitas coisas, no passado e no presente, mas não correspondia ao conceito de mulher “bela, recatada e do lar”.

 

Com a exótica determinação compulsória de proibir essa flexão, o senhor Michel Temer, que se apoderou da presidência pela força de um golpe institucional, pretende alçar-se também à autoridade linguística discricionária, na forma nos fatos ditatorial, sempre em detrimento do reconhecimento devido à mulher, como cidadã plena.

 

Intervenções linguísticas de poderes constituídos devem seguir o leito do rio aberto pelos falantes. Devem, através de políticas linguísticas, ajudar a amenizar desequilíbrios sociais, por exemplo, reconhecendo e gramaticalizando formas populares até então consideradas não padrão, apesar de seu uso amplo e corrente. Não é o caso da atual impugnação do Temer, que tem apenas um sentido ideológico, machista e reacionário.

 

E, fora tudo isso, cá entre nós, será que o senhor Temer não tem coisa mais importante para se ocupar do que ponderar sobre a forma de os funcionários públicos falarem e escreverem?! Nem que seja para não dar, dioturnamente, registro de sua singular incompetência. Incapacidade que, até pouco tempo, não era conhecida em toda a sua fluvial plenitude, precisamente porque, enquanto vice-presidente, ele era apenas a nossa Rainha da Inglaterra.

 


Florence Carboni, 63, é linguista e professora do PPG em Letras da UFRGS.

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