Correio da Cidadania

O Théo não está mais entre nós

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Deve ter sido no verão de 1982. Eu era professor visitante no Programa de Pós-Graduação de História da UFRJ, onde introduzira a questão da escravidão, em uma ótica marxista. Théo, igualmente marxista, advogado do Banco do Brasil, preparava sua dissertação na UFF e abraçara igualmente com vigor a proposta de Jacob Gorender sobre o escravismo colonial, modo de produção historicamente novo.

 

Foi me visitar no bairro Equitativa, onde iniciamos longas conversas sobre a escravidão, o Brasil e o mundo. Eram tempos de salário baixo. Abri o refrigerador e vi que não tinha nada para oferecer, além de um conhaque horrível que trouxera do Sul, sinceramente não sei por que. Ele bebeu e gostou. Eu acompanhei, para não ficar de fricote. Afinal, era bebida dos gringos da Serra!

 

Nas visitas seguintes, terminamos com a garrafa. Mais tarde, volta e meia, quando recordávamos nosso encontro, Théo reconstituía, quase literalmente, o que conversávamos. Sempre me impressionou sua memória de elefante. Ele era capaz de citar livros, autores, diálogos, reflexões, mesmo passados longos anos. Eu, daqueles encontros no verão abrasador do Rio de Janeiro, além dos temas gerais abordados, me lembrava apenas como era ruim o conhaque!

 

Deixei o Rio de Janeiro, para jamais ali residir, a não ser por seis meses, em 1988, a convite do inesquecível amigo e colega Werneck, para celebrar o Centenário da Abolição na UFRJ. Sempre que passava pelo Rio de Janeiro, chamava o Théo e íamos jantar - em geral no Arnaldo, em Santa Teresa. Começávamos pela caipira e a recordação do conhaque maldito. Ele sempre defendeu que não era tão ruim. Chegou a encomendar-me uma garrafa do Sul, já que procurara no Rio sem o encontrar! Se falava sério, não sei.

 

Participamos de encontros, de bancas, sempre com as mesmas visões gerais sobre a escravidão, sociedade amiga dos escravistas, despótica para os escravizados. Ideias que nos deixavam cada vez mais estranhos no meio acadêmico em que vivíamos.

 

Publicamos no Sul, na coleção Malungo, anos mais tarde, a sua dissertação. PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Crise e resistência no escravismo colonial: Os últimos anos da escravidão na província do Rio de Janeiro [Passo Fundo: UPF Editora, 2002] que esgotou os mais de seiscentos exemplares em poucos anos. Ficamos de fazer uma segunda edição, mas nunca fizemos. De vez em quando, pode-se encontrar um exemplar, na Estante Virtual, a preço salgado.

 

Falávamos por telefone, volta e meia. Com assunto ou sem assunto. Théo me colocava ao dia quanto às movimentações, brigas, modismos etc. na galáxia dos historiadores. Ninguém mais do que ele adorava os movimentos e as disputas acadêmicas e administrativas. Simpático, diplomático, sempre disposto a ajudar e contribuir com os que necessitavam, terminou bastante enrolado pelas funções administrativas.

 

Uma vez brincando, disse que nós, os historiadores comuns, sonhávamos, todos, em escrever uma grande obra que ficasse para sempre, mesmo que, no nosso caso, o sempre tem sempre perna curta. Acrescentei que esse parecia não ser o caso dele. Que ele sonhava em ser reitor da UFF! Não é que me olhou meio torto, e me disse: “não é uma má ideia!” Verdade seja dita, havíamos já derrotado algumas cervejas.

 

Há poucos meses, Théo me telefonou, avisando que me enviara sua tese de doutorado: Os simples comissários: negociantes & política no Brasil Império. [Niterói: EdiUFF, 2014.] Li com enorme prazer e atenção. Trabalho incontornável. Denso, escrito com singular elegância, pensado com extrema precisão. Escreveu a tal de grande obra que todos queremos. Mas terminou não sendo reitor da UFF!

 

Não sei quando Théo perdeu as travas com o cigarro. Eu sempre lhe avisava, pois também fui um tabagista que exigia crescentes e astronômicas quantidades de nicotina. Aos trinta anos, fumava três pacotes e meio por dia. Consegui parar, através de um esforço insano. Aprendi como era difícil. Falava sempre pro Théo. Ele tentou diversas vezes, mas não conseguiu.

 

A última vez que esteve em Porto Alegre, para subir a rua da Ladeira, parou umas dez vezes. Me assustei. E me assustei, ainda mais, quando me escreveu, mais tarde. Pensava vir a Porto Alegre para um tratamento específico. Já estava mal. Visitei-o em Niterói. Não foi possível conversar muito, já que sua pressão arterial disparava quando falava. Depois, a mudança para São Paulo, para tentar um transplante, como derradeira possibilidade. E a volta para o Rio de Janeiro, que enfrentou, como tudo mais, com enorme coragem.

 

Nos últimos meses, nos comunicamos por e-mail, em uma certa volta ao início. Pediu-me um artigo, que abordasse nossas ideias, para um número de revista que não saiu. Enviou-me para ler um outro, que escrevera a pedido de uma sua colega e amiga querida, para uma outra revista. Me propôs iniciarmos uma discussão mais sistemática. Trocamos ideias e concordâncias sobre o conceito “segunda escravidão”.

 

Depois, o desenlace. O meu e o mundo de muita gente boa ficou irremediavelmente menor. Mas o que não posso aceitar é que o Théo se foi décadas antes do desenlace ao qual estamos todos destinados. Devido ao cigarro, negócio terrível, de comerciantes da morte, contra os quais nossos governos literalmente nada fazem.

 

Para mim, o Théo se foi, mas tem culpado nisso aí.

 

 

Mario Maestri é historiador.

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