Correio da Cidadania

As mulheres de Kobane e a luta da liberdade contra a opressão

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O sensacionalismo e o desejo incontrolável por uma audiência cada vez maior, além da guerra travada entre as grandes emissoras de televisão do país, expõem a grande maioria dos brasileiros a uma onda de violência e de medo que tende apenas a bloquear qualquer possibilidade de criar soluções em seu dia a dia.

 

É nesse contexto que se instaura a cobertura de um mundo não só afastado geograficamente, mas de uma cultura que, de um modo ou de outro, é diferente e resiste ao modelo ocidental de vida, que se pretende hegemônico e dominante. Trata-se da cultura muçulmana ou islâmica.

 

Nos últimos anos, quem liga um aparelho de televisão ou mesmo folheia os principais jornais impressos do país, pensa que aquele lado do planeta está totalmente dominado pelo Estado Islâmico (EI) e suas atrocidades. Por mais que se tente dizer, em pequenas frases perdidas no meio de imagens de barbáries, que o mundo muçulmano não se resume hoje no Estado Islâmico, fica no imaginário da maioria das pessoas seres humanos sendo mortos com tiros na cabeça.

 

O que a maioria não sabe, entretanto, é que o EI vem sendo arduamente combatido em suas próprias fronteiras. Desde 15 de setembro do ano passado, quando o EI tentou invadir e controlar, com tanques e artilharia pesada, a cidade curda de Kobane, em Rojava (norte do Curdistão sírio), batalhas sangrentas foram travadas em nome da democracia e da liberdade.

No dia 26 de janeiro desse ano, a cidade de Kobane se declarou totalmente livre, após um conflito de 134 dias. Nesse exato momento, uma rica experiência democrática está sendo colocada em prática e a grande mídia televisiva está praticamente calada, omitindo escandalosamente esse fato histórico de seu grande público.

 

Apesar de não ser reconhecida pelo governo Sírio, desde julho de 2012 Rojava se declara como uma república autônoma, adotando um sistema de autogoverno denominado como Confederalismo Democrático. Algumas forças políticas são protagonistas nessa História. A mais antiga dessas agremiações é o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), seguida das Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG) e das Unidades de Defesa da Mulher (YPJ), essa última com uma atuação heróica decisiva no embate contra o EI e sua organização terrorista.

 

Com o apoio de guerrilheiros experientes do PKK, a resistência travada pela YPG e a YPJ chegou inclusive a impedir a entrada do EI na cidade de Kobane. A força política que representa essas facções é o Partido da União Democrática (PYD), que nasceu em 2003 e abriu suas portas para múltiplos grupos étnico-religiosos da região (Assírios, Yázidis, Cristãos, Armênios, Alevis, Árabes Sunitas e Xiitas, Turcos de esquerda, entre outros).

 

Com a junção, em igualdade de condições, de todas essas etnias e grupos, formou-se a atual configuração do PYD, tendo o YPG e o YPJ como forças regulares em um território politicamente autônomo. Antes de se proclamar autônoma, as forças políticas do YPG/YPJ venceram a batalha contra a Frente Al-Nusra, ramificação da Al-Qaeda, entre 2012 e 2013.

 

Essa batalha e a atual fortaleceram um conjunto dos chamados cinco cantões (municípios autônomos) no Curdistão, totalizando algo em torno de 100 vilarejos. A liberdade religiosa e a democracia direta, além da subordinação das autoridades aos intitulados conselhos populares, são os pontos chaves do confederalismo democrático.

 

Segundo o professor de Antropologia, da London School of Economics, David Graeber, que passou dez dias em um dos acampamentos em Rojava, o segredo para compreendermos a estabilidade política do que já podemos chamar de uma nova cultura política é o equilíbrio étnico e o papel das mulheres, que atuam em igualdade de condições nas tomadas de decisões políticas, além de serem igualmente representadas em todos os cargos eletivos. São as mulheres de Kobane atuando como protagonistas, tanto na guerra como na paz.

 

Críticos apontam para a possibilidade do PKK estar encobrindo, em seu discurso democrático, um ranço de autoritarismo stalinista. Por outro lado, revelou Graeber, entre outros especialistas, o partido passou a se inspirar na concepção de ecologia social do anarquista Murray Bookchin⃰⃰ para criar comunidades livres de autogovernos.

 

Escritor anarquista estadunidense, que viveu entre 1921 e 2006, Bookchin criou a Escola da Ecologia Social. Em seu livro Municipalismo Libertário, revelou que sem autogestão nas esferas econômica, ética e política, não será possível transformar os homens de objetos passivos a sujeitos ativos.

 

Fortemente influenciado ainda pelos municípios autônomos, em Chiapas, sul do México, a ecologia da liberdade de Kobane pode estar implantando, na prática, o lema zapatista ― “queremos um mundo onde caibam todos os mundos, um possível mundo sem dominação e sem destruição ambiental, onde as mulheres e a mãe natureza são vistas em pé de igualdade e as diferenças entre os seres humanos são de fato respeitadas e aceitas”.

 

⃰(Bookchin, Murray, Municipalismo Libertário, Editora Imaginária, São Paulo, 1999. Pg. 15). 248

 

 

Guga Dorea é jornalista e sociólogo. Atualmente é educador social nas áreas da comunicação e da inclusão social.

 

 

Participam do Grupo São Paulo Guga Dorea, Elisa Helena Rocha de Carvalho, José Juliano de Carvalho Filho, Thomaz Ferreira Jensen e Silvio Mieli.

Publicado originalmente no Boletim da Rede.

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