Correio da Cidadania

A liberdade da empresa jornalística

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Liberdade de expressão não é para qualquer um e está à venda para poucos. Algumas vezes, essa premissa de uma suposta liberdade volta à pauta – em doses homeopáticas para manter o espectador alienado e desinformado – e a grande mídia, com o fim de garantir seus interesses econômicos e políticos, trata de desvirtuar o tema e a atenção do público.

 

Eis que no dia 30/10 foi a vez de o Diário Catarinense defender a manutenção de sua própria ordem. No editorial “A liberdade de expressão não pode ser constrangida”, o jornal do conglomerado de mídia Grupo RBS, afiliado ao Grupo Globo, busca igualar uma eventual proposta de Dilma Rousseff para a “regulação econômica da mídia” a ameaças à liberdade de imprensa e de expressão. A pérola fica por conta da ilustração do editorial, que reproduz a capa da Constituição de 1988 e faz referência ao artigo 220 da Carta Magna:

 

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

 

O editorial do DC põe luz ao mesmo artigo da Constituição que os donos da mídia tentam encobrir: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (art. 220, § 5º). Ainda mais elucidativo, o DC mostra apreço a uma lei cuja ausência de regulamentação serviu para a Justiça Federal extinguir uma ação proposta pelo Ministério Público contra o próprio grupo midiático. A ação, de janeiro de 2009, tinha o objetivo de anular a aquisição do jornal A Notícia; reduzir o número de emissoras de televisão do Grupo RBS e estabelecer percentuais de programação local da radiodifusão televisiva com a finalidade de produzir e expressar a cultura de Santa Catarina nos termos do artigo 221 da Constituição Federal. Diante da ausência de regulamentação do Capítulo V da Carta Magna, conforme argumentação do juiz, a ação do Ministério Público foi julgada improcedente e então extinta.

 

Desinformar e manipular

 

A RBS é a mais antiga afiliada ao Grupo Globo e a maior rede regional da televisão brasileira, atuando somente nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Hoje, o Grupo RBS concentra uma cadeia de 18 emissoras de TV aberta afiliadas à Rede Globo, duas emissoras de TV por assinatura local, 24 rádios, oito jornais e também opera uma empresa digital e tem participação em uma variedade de outras empresas (editora, imóveis, carros, eventos, emprego, empresa de logística, fundação empresarial, gráfica, empresa de educação executiva e gravadora). Para ter uma ideia da liberdade de expressão a que estamos submetidos, a RBSTV, canal de TV aberta do Grupo RBS, reproduz 85% da grade de programação da Rede Globo e transmite apenas 15% de produção local.

 

Em síntese, se a proposta de regulação da mídia no Brasil saísse do papel, o Grupo RBS deixaria de ser uma afiliada da Rede Globo e teria que produzir sua programação regional. Aliás, o Grupo RBS, como hoje está consolidado, deixaria de existir como tal e suas licenças teriam que ser separadas e divididas entre outros proponentes.

 

A reinvindicação dos movimentos sociais que há muito defendem a democratização e regulação do setor de comunicação no Brasil não é para restringir ou controlar o conteúdo, mas impedir que um determinado grupo exerça semelhante controle sobre o volume de informação. O paradoxo é que exatamente os grandes conglomerados de comunicação rotulam de atentado à liberdade de expressão qualquer tentativa de propiciar maior diversidade no setor. Prova que não se trata apenas de defender o direito de informar, mas de manter os sustentáculos de poder sem qualquer tipo de controle e sem qualquer limite aos planos de expansão e concentração.

 

Outra verdade censurada pelo editorial do Diário Catarinense: a regulamentação dos artigos 220 a 224 da Constituição Federal – que além do combate à formação de monopólio e oligopólio trata da regionalização do conteúdo da programação, da defesa dos direitos humanos e do combate à discriminação na comunicação, por exemplo – deve ser realizada por uma proposta de emenda constitucional (PEC), o que demanda um longo processo de discussão no Congresso Nacional, e não pode ser feita arbitrariamente pela presidenta Dilma Rousseff.

 

Além de desinformar e manipular a opinião pública para que defenda os seus interesses comerciais, o editorial do Diário Catarinense reforça o artigo constitucional que não somente carece de regulamentação, mas que nos parágrafos seguintes traz uma medida tão importante quanto a citada para a liberdade de expressão: “As leis federais para regulamentação do setor devem estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão” (art. 220, § 3º, inc. II).

A censura dissimulada

 

Essa tentativa do Diário Catarinense em debater propostas de políticas de comunicação e de regulamentação do setor como se de fato fosse um atentado à liberdade de expressão e um cerceamento à liberdade de imprensa não é uma exclusividade do jornal catarinense. Esse discurso é há tempos rotulado nas assembleias da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e comumente defendido pelos monopólios midiáticos em todo o mundo. Com esse mesmo argumento, eles manipulam a opinião pública, defendem seu poder econômico e limitam o acesso à informação.

 

Em 2009, na apresentação da proposta de regulamentação da radiodifusão na vizinha Argentina, os jornais Clarín e La Nación tentaram manipular a opinião pública ao afirmar que a aprovação da lei traria riscos à independência da mídia, à liberdade de expressão e à atividade jornalística. A aprovação da lei argentina atravessou um longo período de discussão na Suprema Corte, entre liminares, manifestações populares e debates acerca de sua constitucionalidade para, finalmente, ser sancionada em 2013.

 

Ainda não é possível assimilar o impacto da aprovação na democratização do setor, já que as licenças estão sendo revistas e as concessões delimitadas. Só o Grupo Clarín, maior do setor de comunicação no país, é responsável por 58,6% da abrangência de TV a cabo, 41,8% da abrangência das rádios e 38,7% dos canais abertos. Com a nova lei, o Grupo Clarín terá que se adequar a 35% de abrangência na radiodifusão e a 24 licenças. Hoje, só o grupo detém 237 licenças de TV por assinatura.

 

Outro caso argentino, o Papel Prensa, diz muito sobre as palavras de ordem empregadas por esses grupos midiáticos. Desde 1976, os diários Clarín e La Nación – que figuram entre a preferência de leitura da direita conservadora argentina – controlam a Papel Prensa, empresa argentina que fabrica e fornece papel para 170 jornais argentinos, abastecendo 75% do mercado. Os dois grupos detêm 71,5% das ações, sendo 49% do Clarín e 22,5% do La Nación. Durante oito anos, de 2001 a 2009, Alberto Jorge Mitre (La Nación) e Jorge Carlos Rendo (Clarín) ocuparam os cargos de diretores da Papel Prensa com o claro propósito de controlar a atividade societária. Também neste período, junto a outros 16 pequenos diários, detinham 80% da composição acionária da agência DyN, criada em 1982.

 

Em troca do alinhamento editorial da agência, sobretudo nas notícias de política e economia, Clarín e La Nación subsidiavam parte do valor do papel para os 16 diários acionistas. O diário Crônica, na época com tiragem diária de 700 mil exemplares, precisava do fornecimento de 1,5 mil toneladas de papel e passou a receber apenas 300 toneladas. Por não ser acionista do grupo Papel Prensa, o diário pagava 58% a mais pelo insumo e logo a tiragem de 700 mil passou para 70 mil.

 

Antes de um espaço de construção da realidade, as grandes corporações de comunicação são grupos econômicos que defendem seus interesses políticos e de mercado. São grupos que querem manter seus monopólios de edição e distribuição, sem restrições. E matam, uns aos outros, por este fim.

 

Em 2006, com a compra do jornal A Notícia, o Grupo RBS protagonizou nova demonstração do compromisso da empresa jornalística com a liberdade de expressão e com o direito à informação. A compra do jornal de Joinville não representa apenas o aumento da abrangência midiática do Grupo RBS, mas a quase total hegemonia das comunicações no estado por um único grupo econômico.

 

O empastelamento do A Notícia, ou a reprodução do jornal tal qual o Diário Catarinense e o Jornal de Santa Catarina, perpetua uma situação em que alguns míseros grupos têm voz enquanto a maioria da população permanece sem a possibilidade de exercer sua liberdade de expressão no espaço público.

 

Por trás do discurso de garantir a liberdade de expressão reside uma prática de censura dissimulada, praticada graças à omissão do judiciário e em comum acordo com o poder legislativo.

 

 

Manoela de Borba é jornalista e mestranda em Jornalismo pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

Publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

Comentários   

0 #1 ladronesana lía pujato 07-11-2014 13:12
sólo faltó contar cómo se adueñaron de papel prensa, durante la dictadura militar, con la complicidad de éstos, claro.

con prisión y tortura de los legítimos dueños, una historia sangrienta cuyos responsables civiles aún están libres.
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